"Dom Quixote", de Cervantes, é publicado

A obra é reconhecida como precursora de um novo gênero literário

Por
Alice Elias
Data de Publicação

 "Dom Quixote", de Cervantes, é publicado

 

Em 1605, Miguel de Cervantes publicou Dom Quixote, obra de grande importância para a formação do romance como um novo gênero literário. Inovadora e distante dos moldes contemporâneos da época, a obra se destaca por criticar e dialogar com diferentes formas literárias.

A temática da amizade, frequentemente abordada em suas obras, é desenvolvida ao longo das aventuras vividas pelo protagonista e seu escudeiro. O personagem principal, leitor assíduo, enlouquece e busca imitar a vida dos cavaleiros andantes retratados na literatura. “Este pode ser considerado como o impulso inicial da obra que já assinala, na sua essência, uma questão que será amplamente desenvolvida ao longo de toda a narrativa: os vínculos que a obra mantém com a leitura, com o leitor e com os livros e, consequentemente, as relações entre vida e arte”, afirma Maria Augusta da Costa Vieira, professora de Literatura Espanhola na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

O texto do século 17 se mantém atual em pleno século 21, uma vez que se aproxima e dialoga diretamente com o leitor. Inclusive, o leitor possui papel fundamental na obra, que o acompanha a partir de diversas intervenções da voz narrativa. Confira a entrevista completa com a professora Maria Augusta Vieira:

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Dom Quixote para a Literatura? Em linhas gerais, quais as temáticas abordadas pela obra?

Maria Augusta Costa Vieira: Sem dúvida, a importância de Dom Quixote para a Literatura é muito grande e, de modo muito especial, para a formação do romance como um novo gênero literário. Para poder dimensionar essa grandeza, é preciso ter em conta algumas referências históricas e recordar, entre outras coisas, que nos tempos de Cervantes, isto é, séculos 16 e 17, não existia o conceito de literatura tal qual dispomos hoje. De um modo geral, se utilizava o termo “poesia” para referir-se a qualquer obra, fosse ela em verso ou em prosa, porém regida por uma série de preceitos artísticos que constituíam um verdadeiro repertório de regras e modos de composição.

Apesar de respeitar os preceitos poéticos vigentes, Cervantes acaba compondo uma obra que se destaca muito em relação às demais narrativas contemporâneas, como, por exemplo, colocar em cena um personagem que é um leitor inveterado e que quer imitar na vida as muitas leituras que fez. Ou seja, um personagem que acaba ficando louco de tanto ler e, como expressão de sua loucura, decide transformar-se num cavaleiro andante aos moldes dos velhos tempos, ignorando as diferenças históricas e contextuais entre ele próprio e os textos ficcionais. Este pode ser considerado como o impulso inicial da obra que já assinala, na sua essência, uma questão que será amplamente desenvolvida ao longo de toda a narrativa: os vínculos que a obra mantém com a leitura, com o leitor e com os livros e, consequentemente, as relações entre vida e arte. Sendo assim, pode-se dizer que o Quixote é um texto que, por meio de diferentes perspectivas e estratégias, dialoga com algo tão inovador na época, que era a possibilidade de imprimir e fazer circular diversos tipos de livros impressos com uma característica muito especial: a de produzir uma obra de entretenimento e, ao mesmo tempo, criticar e dialogar com as mais variadas formas literárias vigentes.

O que é importante destacar com isso é que ao escrever o Quixote, Cervantes estava entrando em um território ainda não explorado por outros escritores. Até o momento, não havia uma narrativa que tivesse como seu protagonista um personagem leitor de muitas obras e que, além de ser um intelectual (como diríamos hoje), padece de um tipo de loucura de ideia fixa. Ao seu lado, igualmente importante, seu maior interlocutor, Sancho Pança, que faz as vezes de seu escudeiro, e que se define como um lavrador rústico e analfabeto. Com essa combinação de protagonistas, a obra se desenvolve de aventura em aventura, abrindo espaço para a introdução de uma galeria de personagens com os quais ambos dialogam e contracenam, criando momentos de verdadeiro deleite para o leitor de hoje e de sempre. Para compor esse vasto horizonte de situações narrativas, Cervantes vai misturando diferentes zonas de imaginação, dialogando com diferentes formas tais como a picaresca, a pastoril, a sentimental, a dos livros de cavalaria, entre outras, e o resultado dessa mistura acaba desembocando numa obra, o Quixote, que abarca todas essas formas, as critica implicitamente  e, ao mesmo tempo, compõe algo diverso, semeando, assim, os fundamentos do que mais adiante viria a ser o gênero romance.

Cabe ainda destacar que, embora a obra esteja enraizada num mundo no qual as distinções sociais eram muito marcadas, Cervantes, sendo o narrador privilegiado que é, concede voz aos personagens provenientes dos mais diferentes estamentos sociais, pondo em cena aqueles pertencentes aos quadros aristocráticos e sobretudo aos provenientes das classes subalternas. Este princípio – democrático, como diríamos hoje – oferece também uma perspectiva importante para seu leitor e para a formação do romance como gênero, que começava a despontar, ao dedicar um tratamento especial à vida social em sua variedade.

Quanto às temáticas, cabe dizer que elas são inúmeras e, não é por coincidência que a obra suscita as mais diversas abordagens a partir de diferentes áreas do conhecimento. Além de uma multiplicidade de estudos no âmbito literário, há outros de caráter filosófico, psicológico, psiquiátrico, histórico, sociológico, médico, religioso, linguístico, antropológico, enfim, uma pluralidade de estudos que a obra despertou e continua despertando apesar de seus quatro séculos de existência. De todo modo, se é o caso de destacar um tema caro a Cervantes presente não apenas no Quixote mas também em outras obras suas, o tema da amizade se sobressai. É o que vemos ser construído ao longo das andanças que realizam o cavaleiro e seu escudeiro. 

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Cervantes em Dom Quixote?

Maria Augusta Costa Vieira: Inicio essa resposta reportando-me às frequentes observações dos alunos do Curso de Letras da FFLCH-USP. Observações que se pautam pelo frescor próprio daqueles que, pela primeira vez, tomam contato com o Quixote e que se sentem autorizados a manifestar suas múltiplas impressões sobre a história, sobre o cavaleiro e seu escudeiro, sobre o autor ficcional árabe, Cide Hamete Benengeli, e seu tradutor, sobre os jogos narrativos, sobre a comicidade, a melancolia e a loucura, apesar de a obra trazer consigo o peso de ser uma obra clássica da literatura universal.

Em meio aos comentários dos alunos que vão surgindo espontaneamente, é com grande frequência que uma observação se destaca: a surpresa de se ter em mãos um texto do século 17 que, notavelmente, se aproxima e conversa diretamente com seu próprio leitor, em pleno século 21. Essa suposta familiaridade com o texto, manifestada pelos alunos, justifica-se plenamente uma vez que para o autor do Quixote, o leitor tem uma importância fundamental e quase seria possível afirmar que ele próprio, o leitor, ganha um certo protagonismo, ou melhor, ocupa um espaço fundamental dentro dessa obra e é seguido de perto por meio de inúmeras intervenções da voz narrativa.
Na realidade, essa aparente familiaridade ou naturalidade na linguagem é decorrente de um conjunto de artifícios que atuam de modo criterioso na composição do texto, deixando para o leitor a impressão de que a palavra escrita é a reprodução verossímil e fluente da fala. Afinal, talvez Cervantes seja um dos últimos representantes de um preceito bem difundido ao longo do século 16, que defendia a ideia do “escribo como hablo”, isto é, quando os escritores passaram a adotar um princípio que consistia em fazer com que os textos escritos reproduzissem a língua falada. Além do propósito de dignificar a língua oral e de elevar o castelhano ao patamar de uma língua culta, havia também a ideia de conceder à língua escrita uma maior naturalidade, precisão, clareza e simplicidade. Desse modo, a clareza era considerada como uma das virtudes da elocução, enquanto que a obscuridade e a afetação não passavam de um vício. É preciso ter em conta que na época a língua castelhana tratava de conquistar um estatuto próprio e ainda era bem recente a publicação de sua primeira gramática escrita por Antonio de Nebrija e publicada em 1492. Alguns autores se empenhavam em escrever seus textos nessa língua e não em latim, como ocorria na maior parte das vezes, e, nesse caso, o “escribo como hablo” estava associado, não apenas à naturalidade na escrita, mas também à utilização da língua romance, isto é, o castelhano.

Quando Cervantes publica a primeira parte do Quixote, em 1605, esta tendência já começava a entrar em desuso, no entanto, a obra cervantina e sobretudo o Quixote seguem de perto essa orientação. Nesse sentido, a familiaridade experimentada pelo leitor da obra é também resultado de uma opção poética do autor. Creio que para o espaço dessa entrevista, talvez esse seja o traço da escrita de Cervantes que mais se destaca. 

Maria Augusta da Costa Vieira é Professora Titular da Literatura Espanhola junto ao Departamento de Letras Modernas, da FFLCH e pesquisadora do CNPq. Seu campo de pesquisa concentra-se nos séculos 16 e 17 da literatura espanhola e, em particular, na obra de Miguel de Cervantes. Coordena o grupo de pesquisa “Cervantes: poética, retórica e formas discursivas na Espanha dos séculos XVI e XVII (CNPq)”.

Tem artigos publicados em periódicos especializados, anais de eventos e diversos capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior. Publicou, em 1998, O dito pelo não dito: paradoxos de dom Quixote (Edusp/Fapesp). Por ocasião das comemorações dos 400 anos da publicação da primeira parte do Dom Quixote organizou um livro que reúne estudos críticos de autores de diversos países intitulado Dom Quixote: a letra e os caminhos (2006, finalista do Prêmio Jabuti) e, paralelamente, organizou um Simpósio Internacional sobre a obra de Cervantes (setembro de 2005). Em 2012 publicou A narrativa engenhosa de Miguel de Cervantes: estudos cervantinos e recepção do Quixote no Brasil (Edusp/Fapesp, Prêmio Jabuti 2013, categoria Teoria e Crítica Literária).