Nascimento de Mary Wollstonecraft

Autora britânica escreveu sobre a condição da mulher em uma sociedade patriarcal, tanto em ficções literárias quanto em obras políticas

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“Wollstonecraft enfatiza que considerar as mulheres inferiores aos homens, condenando-as à vida doméstica, era um modo de privá-las de humanidade”, afirma Eunice Ostrensky (Arte: Gabriela Ferrari Toquetti/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Ícone feminista, Mary Wollstonecraft nasceu em Londres no dia 27 de abril de 1759, em um ambiente familiar disfuncional e tóxico. Foi autora de obras célebres como A Vindication of the Rights of Women (1792) e Thoughts on the Education of Daughters (1787) e, embora não tenha completado a educação formal, abriu uma escola para meninas com sua irmã e uma amiga. Por esses e outros motivos, Wollstonecraft é considerada uma das fundadoras do movimento feminista.

A escritora e filósofa fazia oposição aos ideais de sua época, que criavam hierarquias sociais, condenavam as mulheres à vida doméstica e materna e retratavam o sexo feminino como frágil e dependente dos homens. Os princípios revolucionários de Wollstonecraft denunciavam a violência e a incoerência dos discursos masculinos, buscando, assim, a libertação das mulheres.

A ideologia criticada por Wollstonecraft é reproduzida até hoje nas mais variadas esferas – por exemplo, na falta de representação feminina na política, na perpetuação dos papéis de gênero tradicionais e na busca incessante pelos ideais de beleza criados para satisfazer os homens. Ela foi, ainda, uma grande influência para outras autoras que vieram depois, como Jane Austen e Virginia Woolf.

“Wollstonecraft adota um tom que oscila entre a denúncia, o sarcasmo e a indignação. Ela faz um apelo aos leitores para finalmente se darem conta de que a condenação das mulheres ao espaço doméstico prejudica a sociedade como um todo. Isso se aplica também à escravidão e, por isso, vale a pena lembrar que Wollstonecraft se engajou no movimento abolicionista, que exigia o fim do comércio e transporte de escravizados africanos para as colônias na América. Para a autora, mulheres, como escravizados, nem sequer detêm poder sobre o próprio corpo, sendo vistas como extensões dos corpos de seus maridos/senhores”, explica Eunice Ostrensky, professora associada de Teoria Política Moderna do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Mary Wollstonecraft, para os leitores que ainda não a conhecem?

Eunice Ostrensky: Mary Wollstonecraft nasceu em 27 de abril de 1759, em Londres. O pai, Edward Wollstonecraft, dissipou em bebidas e empreendimentos fracassados a herança proveniente da fabricação de seda. Apenas Ned, o filho mais velho, usufruiu uma parte dessa herança e foi o único, aliás, a receber uma educação completa. A violência do pai e a submissão da mãe, Elizabeth, levaram Mary Wollstonecraft a deixar a casa da família em 1778, aventurando-se nas poucas profissões reservadas a mulheres. Em 1784, junto com a irmã Eliza e a amiga Fanny Blood, criou, primeiro, uma escola para meninas e jovens em Islington, e, em seguida, em Newington Green. O fato de a própria Wollstonecraft não ter completado a educação formal e mesmo assim ter fundado duas escolas é um indício da precariedade das instituições educacionais para mulheres de classe média no século 18. Em Newington Green, bairro que abrigava uma comunidade de dissidentes, Wollstonecraft conheceu o Reverendo Richard Price, seu futuro mentor intelectual, e Joseph Johnson, editor que em 1788 a convidou para escrever na Analytical Review. Entre 1786 e 1789, ela escreveu e publicou Thoughts on the Education of Daughters, livro no qual criticou a educação voltada para o mercado do casamento, a novela Mary, a Fiction, além de Original Stories from Real Life, que na edição de 1796 contou com ilustrações de William Blake, e The Female Reader. A carreira literária de Wollstonecraft, nessa altura, permite-nos descrevê-la como uma filósofa, embora mulheres não fossem reconhecidas como tais.

A Revolução Francesa marcou decisivamente a trajetória intelectual de Wollstonecraft. A Vindication of the Rights of Men (1790) é a primeira das várias respostas a Reflections on the Revolution in France, de Edmund Burke. O argumento de Wollstonecraft é o de que a sociedade aristocrática é injusta, desigual e opressiva, por se basear na suposição de que existem hierarquias naturais entre os seres humanos. Em A Vindication of the Rights of Women (1792), sua obra mais conhecida, Wollstonecraft retorna ao tema da educação pública das mulheres, tratando-o como um problema social de profundas repercussões políticas, que entretanto os revolucionários franceses imbuídos da formação de uma nova sociedade decidiram ignorar. Para Talleyrand-Périgord, responsável pela redação do projeto educacional francês, as mulheres deveriam se dedicar às tarefas domésticas e maternas para as quais seus corpos as haviam preparado. Ao objetar a Talleyrand, Wollstonecraft enfatiza que considerar as mulheres inferiores aos homens, condenando-as à vida doméstica, era um modo de privá-las de humanidade.

No final de 1792, Wollstonecraft viajou para a França. An Historical and Moral View of the Origin and Progress of the French Revolution, livro que ela começou a escrever em 1793, constitui uma tentativa de manter vivos os princípios revolucionários, apesar das experiências do Terror na França e da contrarrevolução na Inglaterra. Com os ataques dos jacobinos aos girondinos e às escritoras políticas francesas, como Madame de Roland e Olympe de Gouges, Wollstonecraft  se refugia em Le Havre, onde em 1794 dá à luz a Fanny Imlay. Ao regressar definitivamente à Inglaterra, ela inicia a redação de The Wrongs of Woman; or Mary. Dessa época, data o início de seu relacionamento amoroso com o filósofo William Godwin. Em agosto de 1797, nasce a filha Mary Wollstonecraft Godwin, futura autora de Frankenstein e esposa do poeta Percy Shelley. Dez dias após o parto, Mary Wollstonecraft morre de febre puerperal.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita e as ideias da autora?

Eunice Ostrensky: Mary Wollstonecraft escreveu ficções literárias e obras políticas cujo tema principal é a condição das mulheres numa sociedade patriarcal. Seus escritos iniciais buscam se afastar tanto da literatura da Sensibilidade, gênero em voga entre as escritoras, como dos tratados voltados para a educação feminina escritos por homens. Nos dois casos, Wollstonecraft julga que as mulheres são retratadas como frágeis e dependentes, emotivas, incapazes de exercer a razão, ansiosas pelo casamento.

A ficção de Wollstonecraft muitas vezes se apresenta como uma crítica à sociedade que enaltece e glamouriza a doçura e a beleza como os mais importantes atributos femininos, já que contribuiriam para o casamento, a grande finalidade da vida das mulheres. Os escritos teóricos, por sua vez, buscam deslegitimar os discursos masculinos, sejam eles enunciados por partidários da sociedade tradicional inglesa, sejam os enunciados por revolucionários. Nas influentes obras de Burke e de Rousseau, por opostos que sejam os campos do espectro político nos quais se situam, as mulheres existem para agradar aos homens. A fim de rebater as afirmações sobre a inferioridade das mulheres, Wollstonecraft adota um tom que oscila entre a denúncia, o sarcasmo e a indignação. Ela faz um apelo aos leitores para finalmente se darem conta de que a condenação das mulheres ao espaço doméstico prejudica a sociedade como um todo. Isso se aplica também à escravidão e por isso vale a pena lembrar que Wollstonecraft se engajou no movimento abolicionista, que exigia o fim do comércio e transporte de escravizados africanos para as colônias na América. Para a autora, mulheres, como escravizados, nem sequer detêm poder sobre o próprio corpo, sendo vistas como extensões dos corpos de seus maridos/senhores.

Em A Vindication of the Rights of Woman, Wollstonecraft adota várias estratégias discursivas, como antinomias, dicotomias e contradições. Sua finalidade é evidenciar as tensões e incoerências dos discursos masculinos. Os homens são menos racionais do que eles próprios afirmam, já que são governados pelo desejo de dominação característico dos tiranos e pelo sensualismo típico dos déspotas. Os direitos do Homem, a cidadania, a racionalidade e a virtude aparecem como ideais discriminatórios e carregados de preconceitos. A autora então propõe novos significados para esses termos.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a filosofia e para a literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Eunice Ostrensky: Em The Wrongs of Woman; or, Mary, a heroína exibe traços que são autênticos por serem os da própria autora, a qual, por sua vez, é também a narradora. Essa característica se encontra também nas novelas sentimentais, mas, no caso da obra de Wollstonecraft, há uma singularidade. Além de evitar os incidentes melodramáticos, Wollstonecraft projeta sua experiência pessoal de mulher independente nos sentimentos da protagonista, permitindo que esta frequentemente reflita sobre si mesma e sobre o que ela representa para os outros, num movimento que parte da vida interior para a exterioridade. Uma técnica narrativa semelhante será utilizada por autoras como Jane Austen, Katherine Mansfield e mesmo Virginia Woolf, grande admiradora de Wollstonecraft.

Até hoje, colocar as mulheres no centro de textos literários e políticos pode suscitar reações negativas. Wollstonecraft ajudou a lançar luz sobre os dispositivos de dominação que perpassam todas as sociedades e muitas vezes se mantêm invisíveis, ou porque ocorrem no interior das famílias ou porque não adquirem uma voz pública e coletiva. Ela também chamou a atenção para a adesão, inconsciente ou tácita, das próprias mulheres a mecanismos que perpetuam a opressão. Infelizmente, um exemplo ainda atual é o das mulheres que sacrificam a saúde e a própria vida em busca de ideias de beleza criadas para satisfazer os desejos dos homens. Também é de certo modo chocante que as mulheres ainda ocupem poucos espaços políticos e sejam agredidas ou difamadas quando não se enquadram nos papéis sociais convencionais. É bastante comum, entre as intérpretes da obra de Wollstonecraft, afirmar-se que ela evidenciou como o pessoal é também político. Ou seja, ao enfocar o confinamento à esfera doméstica, a das relações familiares, Wollstonecraft não só revelou modos de opressão social, como também insistiu na necessidade de olharmos para a vida doméstica como um espaço ocupado pela política.

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Eunice Ostrensky é professora associada de Teoria Política Moderna do Departamento de Ciência Política da FFLCH, onde orienta pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado, além de colaboradora do programa de pós-graduação em Filosofia, ambos na Universidade de São Paulo. Seu atual projeto de pesquisa se intitula O abolicionismo de Mary Wollstonecraft.