Nascimento de Jane Austen

Para além de um romance entre duas pessoas, as obras da autora buscam propor um resgate do senso do dever social e da conduta moral da sociedade inglesa do século 18

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Lívia Lemos
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Nascimento de Jane Austen
“Do ponto de vista estético, Jane Austen trouxe contribuições importantes não apenas para a literatura inglesa, mas também para o romance, enquanto gênero literário”, destaca Renata Colasante [Montagem: Lívia Lemos]

Nascida no dia 16 de dezembro de 1775, Jane Austen foi uma das mais importantes escritoras inglesas que se consolidou – e ajudou a consolidar – no gênero literário romance. Suas obras, ao todo 6, giram em torno da sociedade inglesa contemporânea, tendo como pano de fundo a história social de famílias que possuíam propriedades rurais na Inglaterra do século 18. A partir dessa estrutura, seus romances sempre partem de histórias de moças da classe média-alta que estão prestes a se casar.

Para além de criar narrativas de amor entre duas pessoas, Austen busca trazer, em suas obras, um resgate da conduta moral que deveria compor uma sociedade, conforme destaca Renata Colasante, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês: “Jane não estava preocupada com os processos psicológicos ou emocionais dos relacionamentos amorosos ou interpessoais, e sim com as condutas pessoais e com a exploração da aderência às normas sociais”.

Embora tenham grande importância para a literatura mundial, quando foram publicadas, no século 19, as obras da autora não foram aclamadas pelo público e crítica devido ao fato do “gênero romance ainda ser novo e visto como entretenimento barato para mulheres”, como pontua Isabela Sabbatini, pesquisadora do Departamento de Letras Modernas. Apesar da falta de reconhecimento de sua época, hoje Jane Austen é considerada como uma das autoras que mais contribuiu para a literatura, justamente por ser uma das primeiras a empregar o discurso indireto livre em sua escrita. “O discurso indireto livre é a voz narrativa em terceira pessoa que tem livre acesso aos pensamentos e sentimentos dos personagens e os compartilha com o leitor. Austen faz uso magistral dessa técnica com efeitos ora irônicos, ora sensíveis”, explica Isabela.

Confira a entrevista completa com as duas pesquisadoras:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Jane Austen?

Isabela Sabbatini: Jane Austen foi uma escritora inglesa que nasceu em 1775 e faleceu em 1817. Ela escreveu seis romances e, com isso, mudou o mundo. Foi filha de um pastor anglicano e de uma mãe que adorava escrever versos, a filha número seis em uma família de sete filhos, a segunda mulher. Viveu uma vida “sem muitos acontecimentos”, segundo seu sobrinho biógrafo, mas escreveu desde a adolescência até o momento em que pode segurar uma pena; foi uma mulher “com status e nenhuma grana”, como coloca Rita von Hunty (vídeo “Mulheres foda #2”); que nunca se casou em uma época em que essa era a única expectativa de mulheres de sua classe social. Austen é conhecida como o maior talento literário inglês depois de Shakespeare.

Renata Colasante: Jane Austen foi uma escritora inglesa que nasceu em 16 de dezembro de 1775 e faleceu em 18 de julho de 1817. Considerada na atualidade uma das maiores escritoras da Literatura Inglesa, escreveu 6 romances que se tornaram clássicos: Sense and Sensibility (Razão e Sensibilidade), publicado em 1811, Pride and Prejudice (Orgulho e Preconceito), publicado em 1813, Mansfield Park, em 1814, Emma, de 1815 e Persuasion (Persuasão) e Northanger Abbey (A Abadia de Northanger). Além da primordial importância que Austen tem para a literatura, a autora veio a se tornar um fenômeno literário, com fãs espalhados pelo mundo todo, centenas de traduções de suas obras para os mais diversos idiomas, adaptações de seus romances para o cinema, para a televisão, quadrinhos e outras mídias. Atualmente, há uma quantidade considerável de websites e perfis em redes sociais dedicados à autora e seu legado literário dos mais diversos tipos, desde fanfics até sites dedicados à pesquisa.

Além de ter conquistado o gosto do público, há também um número considerável de críticos e estudiosos da literatura de diversos países que se debruçam sobre Austen e sua produção literária, com um número inesgotável de publicações acadêmicas sobre sua obra, entre livros, periódicos e artigos.

Serviço de Comunicação Social: O que caracteriza as obras de Jane Austen? Quais são os temas tratados em seus livros?

Isabela Sabbatini: Jane Austen escreveu comédias que tratam de “apenas um pedaço de marfim de apenas duas polegadas, pintado a pincel finíssimo” – para usar suas próprias palavras (em uma carta ao sobrinho). Os romances sempre contam as histórias de moças de classe média-alta de sua época, em idade de casarem-se e vivendo no interior da Inglaterra. Para a sociedade dessa época, o amor é apenas um dos pontos levados em consideração quando se pensa em casamento; dinheiro é tão importante (ou mais) que amor, assim como classe social, (bons) modos e inteligência. A autora é conhecida por seu comentário irônico e astuto da sociedade assim como por seus heróis românticos.

Renata Colasante: O grande tema tratado por Austen em suas obras foi a sociedade inglesa contemporânea. A questão é que este é um tema bastante complexo e diversificado e Jane Austen tinha um olhar aguçado para perceber o mundo que a cercava. Durante muito tempo, a autora foi acusada por parte da crítica de ter ignorado os grandes eventos históricos de sua época, tais como a ascensão da burguesia, as revoluções liberais que ocorreram após a segunda metade do século 18, entre as quais está a Revolução Francesa, as Guerras Napoleônicas e a Revolução Industrial. Porém, conforme argumenta o crítico inglês Raymond Williams, os temas tratados por Jane Austen são tão ou mais importantes do que a inclusão desta corrente da história em seus romances. A obra deixada pela autora retrata a história social das famílias que possuíam propriedades rurais na Inglaterra do século 18 e é precisamente este o eixo central sobre o qual estrutura seus romances. As personagens de seus romances são os membros de uma classe social à qual a própria autora pertencia: os proprietários rurais ingleses de sua época, ou “landed gentry”, os quais eram parte da complexa classe média inglesa do fim do século 18.

Assim, com um olhar atento às mazelas no comportamento desta classe de famílias, o projeto da obra de Jane Austen se torna claro à medida que lemos seus romances: sua  obra busca propor um resgate do senso do dever social e da conduta moral daquela sociedade. Jane Austen, ao contrário do que muitos pensam, não está preocupada com os processos psicológicos ou emocionais dos relacionamentos amorosos ou interpessoais. Conforme postulou Raymond Williams, sua preocupação era com as condutas pessoais e com a exploração da aderência às normas sociais, às quais se associam a preocupação com as rendas geradas pela exploração da terra e com as posições sociais, os quais são os elementos essenciais de todos os relacionamentos que se formam.

Uma questão essencial a se observar é que a condição de Jane Austen enquanto mulher, solteira e dependente financeiramente dessa mesma sociedade que criticava poderia a ter impedido de escrever sobre assuntos que poderiam causar desagrado àqueles que a cercavam. Entretanto, ela genialmente cria um narrador distanciado e estabelece um tom o qual serviria de base para seu estilo de narrativa: a ironia. Eu diria que a sutilidade com que emprega este recurso é uma das características principais da obra da autora.

Serviço de Comunicação Social: Qual sua contribuição e importância para a literatura?

Isabela Sabbatini: Do ponto de vista do conteúdo, era inovador e (proto-) feminista que as histórias cotidianas de mulheres fossem tratadas com seriedade e verossimilhança – eram “gente como a gente”, portavam-se com as mesmas inconsistências e falavam à maneira de pessoas reais. Como leitores temos a sensação de conhecer intimamente os personagens e de partilhar suas paixões. Austen conseguia este feito como uma inovação em sua forma de escrever. Há discussões sobre quem de fato inventou a técnica literária conhecida como discurso indireto livre, mas Austen foi uma das primeiras e mais famosas autoras a empregá-la. O discurso indireto livre é a voz narrativa em terceira pessoa que tem livre acesso aos pensamentos e sentimentos dos personagens e os compartilha com o leitor. Austen faz uso magistral dessa técnica com efeitos ora irônicos – como em Emma, Orgulho e Preconceito e Northanger Abbey –, ora sensíveis – como em Persuasão e Mansfield Park.

Renata Colasante: Do ponto de vista estético, Jane Austen trouxe contribuições importantes  não apenas para a literatura inglesa, mas também para o romance, enquanto gênero literário. Uma inovação na técnica narrativa trazida por Austen é o emprego do discurso indireto livre, inserindo as falas ou pensamentos das personagens inseridas dentro do discurso do narrador. Ainda com relação ao ponto de vista, raras vezes, e apenas se estritamente necessário, Austen permite que seu narrador se distancie da personagem principal, o que faz com que o leitor acompanhe os desdobramentos do enredo junto com a personagem. Para citar um exemplo, em Pride and Prejudice, por exemplo, o leitor apenas toma conhecimento do verdadeiro caráter e sentimentos do herói, Mr. Darcy, juntamente com a personagem principal, Elizabeth Bennet, e, até então, permanece, durante o desenrolar da trama, influenciado pelas impressões de Elizabeth. Em parte, a adoção desse ponto de vista está relacionada à grande importância que Austen atribuía ao realismo.

E embora a questão do realismo seja um assunto complexo demais para tratar tão brevemente neste espaço, em seu conhecido estudo sobre a ascensão do romance, o crítico inglês Ian Watt, fala de outra grande contribuição de Austen para a literatura, quando afirma que ela teria conseguido unir a proximidade psicológica dos romancistas Samuel Richardson e Defoe à análise irônica e distanciada empregada pelo romancista Henry Fielding, conseguindo conjugar numa “unidade harmoniosa as vantagens do realismo de apresentação e as do realismo de avaliação, das abordagens interior e exterior da personagem.” Assim, ela teria criado uma nova forma de escrever romances.

Serviço de Comunicação Social: Hoje, as obras de Jane Austen são consideradas clássicas da literatura inglesa, mas na época em que foram publicadas, suas obras sofreram um preconceito por aqueles que não consideravam o gênero romance como relevante. O que mudou?

Isabela Sabbatini: O romance hoje é um gênero de prestígio, em parte graças ao talento de Austen e de seus contemporâneos – Walter Scott, Fanny Burney e Maria Edgeworth são exemplos conterrâneos, para não mencionar outros romancistas despontando em outros países. Este não era o caso na época de Austen, quando o romance ainda era novo e tido como entretenimento barato para mulheres. A própria Austen tem muito a dizer sobre o assunto – recomendo aos leitores que leiam o trecho em Northanger Abbey na qual a narradora desvia da trama de Catherine Morland para fazer uma defesa do romance como uma obra na qual “os maiores poderes da mente estão à vista, na qual o mais completo conhecimento da natureza humana, a mais feliz das delineações de sua variedade, a mais viva efusão de perspicácia e humor, são transmitidas ao mundo na linguagem mais bem escolhida” (tradução minha).

Renata Colasante: Eu diria que Jane Austen vivenciou o preconceito contra o romance mais como uma leitora do que como escritora. Que ela tenha testemunhado esses debates, seus primeiros romances não deixam dúvida. Em Sense and Sensibility (Razão e Sensibilidade), a autora aborda (e critica) a discussão da leitura de romances e os supostos devaneios da imaginação, sobretudo a feminina e, em Northanger Abbey (A Abadia de Northanger) ela vai ainda mais longe. O enredo desse romance gira em torno da leitura de romances e a escritora chega a dedicar um trecho de extensão considerável para uma defesa veemente do gênero romanesco. Entretanto, apesar de ambos os romances terem sido escritos no fim do século 18, uma época em que o romance ainda era considerado um gênero do mais absoluto desprestígio na literatura, foi apenas em 1811 que Sense and Sensibility foi publicado e Jane Austen nem chegou a ver a publicação de Northanger Abbey, que ocorreu postumamente, em 1817. Na época em que ela começa a publicar, o preconceito contra o romance e os debates mais acalorados sobre o gênero já estavam mais arrefecidos e autores como Walter Scott ganhavam popularidade e fama.

Penso que foram outros fatores que contribuíram para a popularidade modesta que Jane Austen teve em vida. O fato de morar no campo e estar, portanto, longe de grandes centros, fizeram com que ela dependesse do irmão Henry para intermediar contratos com editoras. Henry, que também não tinha muitas relações na cena artística londrina, utilizou o pouco conhecimento que possuía e foi muito infeliz com a escolha da editora que publicou os primeiros romances. Era uma editora não especializada e sem inserção no mercado de ficção, que fez uma tiragem modesta, e creio que bem pouca publicidade. Outro fator relevante é a ascensão do movimento Romântico no início do século 19, cujas produções se distanciavam grandemente do racionalismo de Jane Austen.

Assim, creio que Jane Austen foi mais prejudicada por sua própria condição social e pelas dificuldades que encontrou para entrar no mercado editorial do que com o preconceito contra o gênero romanesco.  

Isabela Sabbatini é formada em Letras Modernas pela FFLCH-USP (2012) e possui mestrado em Estudos da Tradução (2017). Desde 2015 é membro do Grupo de Estudos de Adaptação e Tradução (GREAT-USP), na qual realiza pesquisas em temas como adaptação, Jane Austen, tradução, transmídia e comunicação.

Renata Colasante possui graduação em Letras pela Universidade Metodista de Piracicaba (2000) e mestrado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo (2005). Em 2020, defendeu seu doutorado na mesma universidade, intitulado Cartas de Jane Austen: estudo e tradução anotada.