Kabengele Munanga destaca a importância das cotas e da inclusão na universidade

Durante a apresentação da aula magna de 2022, o docente fez um histórico sobre a questão racial e as políticas afirmativas e afirmou que as instituições têm autonomia para manter estas políticas

Por
Eliete Viana
Data de Publicação

professor Kabengele Munanga
Kabengele Munanga, que é referência sobre a questão racial e a importância das políticas de ações afirmativas, durante apresentação da aula magna - Foto: Fábio Nakamura / FFLCH-USP


No final da tarde desta quarta-feira, dia 27 de abril, o semestre letivo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP foi oficialmente aberto com a aula magna de 2022, proferida pelo professor Kabengele Munanga, do Departamento de Antropologia, com o tema O papel da Universidade na luta contra o racismo e em defesa das políticas afirmativas. 

A realização presencial deste evento de forma presencial foi destacada pelos docentes que fizeram parte da mesa da cerimônia. Pois, foi o primeiro institucional promovido pela Faculdade após a volta das aulas presenciais – sem contar as sessões do colegiado e os eventos organizados pelos Departamentos e Comissões da Faculdade.

A aula do professor Munanga atraiu a presença de docentes de várias áreas da Faculdade, inclusive muitos aposentados, estudantes de graduação e pós-graduação da FFLCH e de outras Unidades da USP, até mesmo fora da Cidade Universitária, lotando o Auditório Nicolau Sevcenko do Edifício Eurípedes Simões de Paula e ocupando também parte do Auditório Milton Santos, ao lado. E teve um público de mais de mil pessoas acompanhando a transmissão ao vivo pelo canal da FFLCH no YouTube (veja abaixo o link).
 

mesa cerimônia aula magna 2022
(Da esq. p/ dir.) A vice-diretora da FFLCH, Ana Paula Torres Megiani; a vice-reitora da USP, Maria Arminda do Nascimento Arruda; o diretor da FFLCH, Paulo Martins; e o professor Kabengele Munanga, do Departamento de Antropologia - Foto: Fábio Nakamura / FFLCH-USP


Início

A cerimônia teve início com as falas dos dirigentes presentes na mesa. A vice-reitora da USP, Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da FFLCH na gestão anterior e docente do Departamento de Sociologia, agradeceu o professor Munanga pelas bandeiras que ele levantou e defendeu. Maria Arminda também adiantou que na próxima sessão do Conselho Universitário, que será realizada no dia 3 de maio, será colocado em pauta a aprovação da criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP, a qual vai abordar, entre outras questões, as políticas de ações afirmativas também. 

"Essa homenagem que a nossa Faculdade lhe presta é um reconhecimento, certamente, de todo o trabalho que você vem desenvolvendo nesta área há muito tempo. Mas é também um momento de afirmação do que pensamos para a universidade e afirmamos direitos e a necessidade de romper todas as formas de preconceito", ressaltou.

A vice-diretora da FFLCH, Ana Paula Torres Megiani, falou do sentimento de pertencer a esta Faculdade, neste momento olhar para uma plateia presencial e agradeceu a presença de todos. "Teremos certamente uma aula para refletirmos a respeito de toda a experiência e ideias que o professor Kabenegele sempre nos trouxe e vai continuar nos trazendo"

"[Este momento] supera uma aula de erudição, é um momento de resistência. A Faculdade será nossa resistência", frisou o diretor da FFLCH, Paulo Martins, antes de passar a palavra para o ministrante.
 

público aula magna 2022
Parte do público presente na aula magna de 2022 - Foto: Fábio Nakamura / FFLCH-USP


Aula magna 

O professor começou seu discurso da aula magna alertando que têm coisas que são difíceis de dizer, mas são necessárias e que não se faz ciência sem consciência dos problemas da sociedade.

Munanga fez um histórico sobre a questão racial e as políticas afirmativas, desde quando os negros só eram estudados ao se falar de tráfico negreiro, escravidão e abolição, "como se suas histórias estivessem congeladas"; o mito da democracia racial no Brasil; o debate sobre as cotas no país, que para os críticos iriam promover a segregação dos mestiços em relação aos pretos, mas que na realidade "é a inclusão, não a separação" que pretende se realizar; a implementação das cotas nas universidades federais; e as discussões e reflexões realizadas sobre desigualdade racial e políticas afirmativas no âmbito da USP, que foram pioneiras mas, por causa da meritocracia, demoraram a aprovar as cotas raciais e sociais na universidade.

Ele destacou também que as universidades têm autonomia para continuar com as cotas e que as universidades têm de realizar um inventário crítico para saber como está sendo implementada e realizada estas políticas, como onde há menos ou mais alunos e porque, "para [assim] rever condutas, redesenhar novos rumos para aperfeiçoar o sistema"


Confira a aula magna de 2022 da FFLCH no link abaixo:  

 

Conversa com Kabengele

Antes da aula magna, foi feito um bate-papo com o professor Kabengele Munanga na sala do Centro de Estudos Africanos (CEA) da FFLCH, no qual atua como professor sênior e já foi diretor. A conversa foi uma prévia do que ele abordaria diretamente na aula magna, mas também falou-se sobre outras questões relacionadas.

Sobre o fundo de US$100 milhões criado pela Universidade de Harvard para políticas de reparação da escravidão, que foi anunciado no dia 26, o professor disse que, apesar do valor modesto para os padrões da instituição dos Estados Unidos, a iniciativa é "um gesto de reconhecimento daquilo que a história fez". 

Em relação às políticas afirmativas, lembrou que não foram criadas nos Estados Unidos, como muitos imaginam, mas sim na Índia, na década de 50, para inclusão da casta dos Dalits (ou intocáveis) na sociedade indiana, e que até hoje está em vigor. Porque não é rápido o processo de inclusão após muitos anos e até séculos de segregação, como foi no Brasil, já que é um longo processo "e estamos apenas entrando no túnel", disse comparando o processo de apenas 10 anos da implementação da lei de cotas. E afirmou que as cotas ajudaram a população negra a se autodeclarar e se autoafirmar, a ter mais orgulho

Ao ser ​​perguntado se as suas áreas de pesquisa sempre foram seu foco - Antropologia da África e da População Afro-Brasileira, com ênfase em temas como o racismo, políticas e discursos antirracistas, negritude, identidade negra versus identidade nacional, multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais -, ele respondeu que veio ao Brasil para estudar África na Antropologia, na década de 70, e não sobre racismo. Pois não sabia que existia racismo no Brasil, visto que antes de chegar aqui ele acompanhava futebol e carnaval e via o branco e o negro juntos nestes ambientes e de forma integrada, mas no país descobriu que existia e então "sentiu essa necessidade". 

Para finalizar, foi pedido para ele destacar algo que ache importante e ele pontuou que não se pode levar em consideração no Brasil como única referência o modelo dos Estados Unidos sobre a questão racial, porque estes dois países tiveram e tem modelos de racismo diferentes. "O racismo brasileiro é diferente, é uma questão não falada, não dita pelas pessoas, são outros discursos".