Nascimento de Agatha Christie

Mundialmente conhecida por seus livros policiais, Agatha Christie é autora de obras como "E Não Sobrou Nenhum" e "Morte no Nilo"

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Nascimento de Agatha Christie
Segundo Jean Pierre Chauvin, "É justamente por ter enfatizado as contradições humanas, portanto, universais, que a obra de Agatha Christie seduz leitores de todas as faixas etárias". (Arte: Alice Elias)

 

Agatha Christie nasceu em 15 de setembro de 1890, na Inglaterra. Mundialmente conhecida por sua vasta obra de livros policiais, também escreveu romances, contos e peças teatrais. Em cerca de quarenta anos, escreveu oitenta obras policiais, tais quais E Não Sobrou Nenhum, Assassinato no Expresso Oriente, e Morte no Nilo.

Agatha Christie apresenta retratos físicos e morais complexos que contribuem para o desenvolvimento de suas tramas. Frequentemente, as interações com os suspeitos dos crimes propiciam discussões sobre temas profundos e motivações humanas, como o amor, a ambição ou o ciúme. Conversamos com Jean Pierre Chauvin, professor da pós-graduação no Programa Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre a autora de “elevada qualidade literária”. Confira:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Agatha Christie?

Jean Pierre Chauvin: Agatha Christie nasceu na Inglaterra em 1890, onde também faleceu em 1976. Apesar de não ter escrito apenas romances, peças e contos policiais, certamente é pelos livros detetivescos que se tornou mundialmente conhecida. De tempos em tempos, suas obras são transformadas em filmes de enorme bilheteria, dentro e fora dos cinemas, a exemplo das adaptações de Testemunha de Acusação, Morte no Nilo, A Casa Torta, Assassinato no Expresso Oriente, E não sobrou nenhum etc. Afora as numerosas biografias existentes sobre a autora, inicialmente recomendaria a leitura de sua Autobiografia. Lá ela reconta seus passos, entre a infância e a maturidade, revelando os métodos que encontrou na formulação de suas tramas engenhosas. Por sinal, o livro ajuda a desconstruir certa mitologia em torno da sua figura. Oriunda de uma família vitoriana de relativas posses, a escritora teve formação escolar e extracurricular rigorosa. Cultivou as línguas estrangeiras e as artes; além disso, tinha grande repertório literário - o que incluía as letras greco-latinas, as Escrituras, Shakespeare, Jane Austen, além de incontáveis parceiros de ofício que também se dedicaram à prosa policial.  

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita da autora?

Jean Pierre Chauvin: Agatha Christie foi uma escritora prolífica: em cerca de quatro décadas, escreveu oitenta obras policiais de variados gêneros (romances, contos e peças teatrais). A despeito da popularidade, que logo adquiriu, um de seus críticos mais severos foi Edmund Wilson (autor do célebre O Castelo de Axel). Ele atribuiu às pouquíssimas obras que dela leu o caráter de "romances-formulário". Embora possamos reconhecer a similaridade de algumas estruturas e estratégias narrativas, o parecer é injusto. Diversos romances de Dame Agatha têm elevada qualidade literária, considerando-se especialmente o horizonte de expectativas de um leitor aficionado à temática policial e as tópicas demandas por essa literatura. Até recentemente, parte da crítica literária denominava o romance policial como "subliteratura"... Isso é curioso, pois estamos diante de uma produção que retoma o modelo imortalizado por Sir Arthur Conan Doyle (criador da dupla Sherlock Holmes e John Watson), mas refina a caracterização das personagens e o acento psicológico, na investigação dos crimes (em 2005, a psicanalista Sophie de Mijolla-Mellor comprovou que Agatha Christie e Sigmund Freud foram leitores recíprocos). Ou seja: é uma literatura produzida para entretenimento, o que não impediu que a escritora apresentasse retratos físicos e morais complexos, que estimulam a solidariedade do leitor com determinadas criaturas de papel que ela inventou. Em contrapartida, há figuras francamente autoritárias (como a matriarca de Encontro com a Morte), capazes de provocar rejeição em todos nós. Ao lado da habilidade em criar retratos marcantes, suas tramas são muito bem urdidas. Aliás, em vários enredos percebemos que as entrevistas com os suspeitos dos crimes constitui pretexto para discussões mais profundas, por narradores e personagens, sobre essas e outras motivações humanas (amor não correspondido, ambição financeira, ciúme, capricho, loucura, histeria etc.).

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Jean Pierre Chauvin: Há pelo menos dois modos de responder a essa pergunta. Comecemos por elencar uma relação de obras que se destacam temática e esteticamente em comparação com as demais. É o caso de O Assassinato de Roger Ackroyd, E Não Sobrou Nenhum, Assassinato no Expresso do Oriente, Poirot Perde uma Cliente, Cem Gramas de Centeio, A Casa Torta, Morte no Nilo, Hora Zero, Um Passe de Mágica, dentre outras. A segunda maneira de abordarmos as contribuições da escritora reside nos artifícios que ela empregou, ao construir suas personagens e ambientá-las, bem como em armar enredos que estimulam a curiosidade mórbida do leitor - afinal, estamos a lidar com a representação da morte - elemento fundamental do romance detetivesco.
O economista Ernest Mandel escreveu um ótimo ensaio (no Brasil, traduzido como Delícias do Crime) em que não só reconstruiu o contexto em que as "histórias-de-detetive" nasceram, mas também desvendou as ideologias subjacentes ao romance policial. Muito resumidamente, poderíamos dizer, aproximados da perspectiva dele, que tramas dessa natureza fazem da experiência de leitura um jogo de gato-e-rato, em que a busca pela verdade e a sanha justiceira se irmanam ao desejo de reordenação social por parte do leitor. Dessa ótica, o romance policial permite a recomposição de um ideal de vida que poderíamos vincular à sedimentação das classes trabalhadoras, mas especialmente do ideário burguês, pelo menos desde a primeira metade do século 19. Essa interpretação sugere que há múltiplas camadas de fruir o romance policial. Um leitor que se aventure nas tramas arquitetadas por Agatha Christie deve ficar atento aos detalhes, por exemplo, os móveis que compõem o cenário onde os diálogos se desenrolam; a correspondência entre o clima atmosférico e a tensão narrativa; os juízos emitidos por narradores e personagens etc. É natural que muitos escritores tentem imitá-la, mas os resultados frequentemente resultam questionáveis, especialmente nos casos em que os autores novatos não discernem bem os limites entre a linguagem fluida e o pernosticismo pseudo acadêmico. Caberá a nós condenar a prosa policial devido ao fato de ela não soar como um romance de Stendhal, Proust ou Balzac? É preciso considerar os limites de cada obra e os propósitos do escritor. A exemplo do que acontece ao romance histórico, ao romance gótico e à literatura de horror, o romance policial tem suas regras e seus lugares-comuns. Isso significa que há certos expedientes quase obrigatórios a que o fabulista deve recorrer. Entretanto, o risco de esses ingredientes soarem artificiais é grande, talvez porque mesmo os fãs da literatura policial subestimam as competências literárias inerentes ao difícil ofício da boa escrita. Não custa lembrar que Agatha Christie não produziu a partir do zero, ou do nada. Ela tinha grande bagagem de leitura, conhecimento de línguas e experiências apreendidas nos cenários mais domésticos ou exóticos que frequentou. Dessa ótica, ler uma boa prosa de sua autoria não só entretém o leitor em busca de passatempo; permite-lhe rediscutir certos temas, inclusive mais sérios, como a relação assimétrica entre cônjuges; as falhas de caráter diagnosticadas numa personagem suspeita de pequenas fraudes; as disputas pessoais ou profissionais entre homens e mulheres; os preconceitos verbalizados por determinadas criaturas; a postura sobressalente de determinadas figuras etc. É justamente por ter enfatizado as contradições humanas, portanto, universais, que a obra de Agatha Christie seduz leitores de todas as faixas etárias. Isso talvez explique o fato de sua obra repercutir com alarde nos palcos de teatro, telas de cinema, grupos de fanfics, associações de escritores etc. No caso de Agatha Christie, o best-seller não implica falta de qualidade.

Jean Pierre Chauvin é mestre e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH, professor da pós-graduação e orientador de pesquisas de mestrado e doutorado no Programa Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da mesma instituição. Além disso, coordena o Projeto de Pesquisa Letras, Retórica, Poética e Outras Artes, séculos XVII, XVIII, XIX na FFLCH, e é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Para quem se interessar sobre o tema, é autor de Crimes de Festim: ensaios sobre Agatha Christie (2017), assim como O Alienista: a teoria dos contrastes em Machado de Assis (2005), O poder pelo avesso na literatura brasileira: Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto (2013), José Saramago: Literatura contra Mercadoria (2021) e Sete Falas (ensaios sobre tipologias discursivas) [2022].