Imprensa contribuiu para a construção de medo do comunismo

Em quase 400 matérias, O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo propagaram o anticomunismo no começo do regime militar

Por
Thais Morimoto
Data de Publicação

Foto com símbolos em vermelho de proibido e comunismo e papéis no fundo
Fotomontagem: Arte por Astral Souto

Até hoje, parte dos brasileiros temem que o país seja tomado por comunistas, um medo que vem de décadas atrás. Segundo dissertação de mestrado da USP, entre 1964 e 1968, O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo propagaram o anticomunismo. Os jornais também apoiavam o regime militar em ações repressivas e de controle social.

Suelen Cristina Marcelino de Campos estudou como ocorreu a construção da narrativa anticomunista nos jornais da mídia hegemônica do Brasil. Defendida no Departamento de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a pesquisa aponta uma constante tentativa de criar o medo do comunismo na população brasileira por meio da realidade política e social. 

“O discurso do perigo segue as questões do cenário político interno e externo. Às vezes quando a gente pensa no ideário anticomunista dá-se a entender que era algo que estava descolado e distante, mas na realidade esse ideário está presente em todas as esferas, em todos os momentos. Os jornais tentam corresponder às vivências do cotidiano dos brasileiros para trazer sentido e justificativa para as ações de caráter repressivo. Uma ideia de medo só é efetiva se é colocada o tempo inteiro e apresentada de diversas maneiras”, explica Suelen.

Outra questão estudada pela pesquisadora foi a relação ambígua e ambivalente da mídia com o regime militar. “Ora os jornais vão atuar como denúncia do regime, ora vão ser justamente os porta-vozes dos ideais dele”, diz. Não é possível definir uma divisão maniqueísta das mídias estudadas durante o período. “Elas não são só boas e só sofreram com a censura e nem são só ruins e só ajudaram o regime militar. Elas têm essa questão dual”.

Suelen analisou as edições lançadas no segundo domingo do mês. O dia escolhido era próximo à data de pagamento e tinha maior circulação entre a população. Ao todo, foram quase 400 matérias que fazem menção ao pensamento anticomunista. Na dissertação, há uma planilha com os títulos, a data e o resumo das matérias. 

Diferenças e semelhanças

Foto de perfil da pesquisadora Suelen de Campos
Suelen Cristina Marcelino de Campos. Foto: Arquivo pessoal

Durante o período estudado, os três jornais tiveram posicionamentos semelhantes em relação ao comunismo. A pesquisadora explica o resultado pelo histórico dos jornais. O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo eram comandados por grandes grupos empresariais e tiveram origens parecidas: “Esses jornais saem do mesmo lugar, de uma origem conservadora e liberal ao mesmo tempo, e foram construídos por famílias tradicionais, pessoas de influência em determinadas questões”. 

Mesmo com semelhanças, Suelen também pontua as diferenças nas abordagens dos três jornais entre 1964 e 1968. “O Estado de S. Paulo, por exemplo, falava muito sobre as questões da educação, trazendo esse ideal de comunista fervorosamente dentro dos palcos das universidades. Folha de S.Paulo e O Globo falavam muito sobre política externa, tentando passar a ideia de que o mal estava lá fora e iria chegar no Brasil”, compara.

Um dos exemplos é um dicionário anticomunista criado em um editorial publicado em abril de 1967 no jornal O Globo. Intitulado “Linguagem comunista cinquenta anos depois”, a matéria traz um dicionário com termos que mudaram de significado depois de 1917. Segundo Suelen, o editorial mostra “o comunista como a pior parte da população, que tem que ser visto, compreendido e identificado até com as palavras que são utilizadas, como se tivessem desenvolvido uma linguagem própria”.

Entender como os três veículos de comunicação abordaram os assuntos na época do regime militar é importante para compreender as nuances do pensamento autoritário e pensar em novos futuros. “Às vezes quando estudamos o passado temos a impressão que ele só apresenta atrocidade enquanto tentamos viver uma história diferente. Mas não tem como viver uma nova história se não acertarmos as contas com o passado. A gente fica sempre nessa questão cíclica e não consegue vislumbrar novos horizontes”.

O mestrado A construção do 'inimigo interno' e o papel da grande mídia brasileira nos anos de 1964-1968: O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo, de autoria de Suelen Cristina Marcelino de Campos e orientada pela professora Maria Aparecida de Aquino, foi defendida em maio de 2023.