Fim do privilégio branco nas universidades ressuscitou discursos usados no período da abolição; em mais de 1000 páginas, pesquisador da FFLCH analisa o debate que houve no Parlamento entre os que eram a favor e contra a Lei de Cotas
Aprovada em 2012, a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) garante 50% das vagas em instituições públicas de ensino superior para estudantes de escolas públicas, entre esses, os de baixa renda, pretos, pardos, indígenas e com deficiência. A principal missão da lei era democratizar o acesso ao ensino superior, uma vez que a educação desigual deixava os estudantes da rede pública em desvantagem em relação aos alunos da rede particular no vestibular.
Apesar da sua vitória no Congresso Nacional, a discussão da lei começou dez anos antes de ser sancionada. Em sua tese de doutorado, Sérgio José Custódio, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, analisou o processo político que se desenvolveu no Parlamento ao longo dos anos a partir do debate entre a coalizão que era a favor e a coalizão que era contra a Lei de Cotas.
Para além de uma análise de argumentos, o estudo revelou como a coalizão que era contra a Lei de Cotas ressuscitou discursos discursos racistas usados por aqueles que se opunham à abolição da escravatura no século 19 para estigmatizar a coalizão a favor da lei: “O tempo todo foi um jogo de colar estigmas, preconceitos e, na prática, mobilização do racismo brasileiro”. Esses discursos reforçavam, sobretudo, a hierarquia social instituída na história brasileira que a coalizão queria manter.
Duas coalizões e uma disputa
A luta pelo direito à universidade via políticas públicas começou diante de um cenário comum a quase todos os estudantes da rede pública: “Eles terminavam o ensino médio e tinham duas alternativas: pagar universidades particulares ou enfrentar os vestibulares tradicionais. Mas havia um grande problema na educação pública brasileira. Mesmo enfrentando os vestibulares, eles não conseguiam entrar nas universidades públicas”.
Essa desvantagem era comprovada através das fotos e dos números dos aprovados. “A fotografia dos calouros aprovados nas universidades públicas era um escândalo, apenas rostos brancos. E as estatísticas também mostravam isso: nos principais cursos superiores, 90% dos alunos tinham o mesmo perfil social, isto é, branco oriundo da rede privada”.
Esses foram os principais motivos que levaram estudantes, movimentos sociais e cursinhos populares a marcharem até Brasília em 2002 para pedir uma política de inclusão que democratizasse a entrada dos jovens de baixa renda ao ensino superior. Custódio pontua que antes de apresentarem esses argumentos no Congresso Nacional, eles recorreram às universidades: “Por encontrarem as portas das universidades fechadas, eles migraram para o Parlamento, o que vai ser uma longa caminhada motivada, principalmente, pelas vitórias de comissão a comissão”.
Se, de um lado, havia o argumento de uma educação desigual que impedia que os jovens da rede pública tivessem as mesmas chances de concorrência nos vestibulares, do outro, o argumento apresentado era de que, no Brasil, existia uma igualdade formal, material, substancial e racial: “Aqueles que eram contra a Lei de Cotas levantaram o argumento da igualdade e de cunho meritocrático. Então existiria no país, condições iguais de competição para o acesso às universidades”.
Logo, para a coalizão contra a Lei de Cotas, a existência de uma política pública nas instituições se tornava desnecessária: “O discurso dominante era: ‘se fulano ou ciclano conseguiu, você também pode’. Eles comemoravam as exceções [da escola pública] que passavam no vestibular, mas não havia uma atenção para a entrada de toda uma geração negra ou indígena em peso na universidade”.
Além da hierarquia social, o pesquisador ressalta que a coalizão fez a defesa incansável do status quo, ou seja, não promover nenhuma mudança em políticas para o acesso desses jovens às universidades: “Eles queriam deixar tudo exatamente como estava, que os negros e os indígenas da escola pública continuassem no seu lugar. Então, na verdade, o que eles defendiam era a cota do privilégio branco na universidade, que é a mais antiga. Porém, já não havia mais lugar para a cota privilegiada da branquitude”. O conflito se instala a partir do momento que aqueles a favor da Lei de Cotas decidem reivindicar o seu espaço: “Essa disputa, marcada pela vitória da coalizão dos Pés Descalços, foi violenta tanto no Parlamento quanto na sociedade brasileira”.
Lei de cotas: A nova abolição do Brasil
Custódio classifica a Lei de Cotas como a nova abolição do Brasil, uma vez que, através da lei, o número de estudantes oriundos de escolas públicas nas universidades federais aumentou significativamente. De acordo com dados do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da UFRJ, de 2013 a 2019, a variação percentual de estudantes negros, pardos, indígenas e de baixa renda foi de 205%. “Tem que comemorar a vitória da Lei de Cotas, pois ela reconhece que a riqueza de uma nação é a sua juventude”.
Para além das estatísticas, o pesquisador salienta a importância dessa política pública para trazer diversidade nos espaços universitários e inspirar as novas gerações: “A criança pequena que está na escola pública, quando vê que seu irmão mais velho passou na Medicina na USP, tem seu horizonte ampliado, além passar a sonhar com convicção”.
Custódio completa que não basta apenas estender o tapete para aqueles que querem estudar, é necessário que as universidades ofereçam políticas de permanências para que os alunos tenham condições dignas de continuar estudando. Apesar da USP ter sido a última universidade do país a aderir a Lei de Cotas, o pesquisador chama atenção para esse papel de permanência que a instituição vem cumprindo: “Ano passado, a USP criou a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), o que mostra um engajamento com a lei”.
A PRIP-USP tem como objetivo promover a diversidade, assegurar oportunidades e oferecer condições para que alunos, servidores e docentes vivenciem a melhor experiência acadêmica: “Isso prova que a Universidade de São Paulo está atenta ao debate e produzindo inovações institucionais. Isso é uma forma importante de garantir a sustentabilidade no tempo infinito da Lei de Cotas, pois ela veio para ficar”.
Indicação ao Prêmio Capes de Teses
Defendida em abril do ano passado, a tese de doutorado de Sérgio Custódio, intitulada Lei de Cotas: mudança estrutural em política pública e vitória suprapartidária da Coalizão dos Pés Descalços no Parlamento do Brasil, foi indicada ao Prêmio Capes de Teses 2023, uma premiação nacional que reconhece os melhores trabalhos de doutorados defendidos em programas de pós-graduação.
Para além da indicação, a importância do estudo do pesquisador na sociedade é refletida em números. Disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, a tese de doutorado já recebeu mais de 700 acessos e 440 dowloads. Para acessá-la em PDF, clique aqui.