Publicação de “A metamorfose”

Obra de Kafka permanece atual por permitir diversas interpretações

Por
Larissa Gomes
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HOMEM COM PAISAGEM ATRAS
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. [Arte por: Larissa Gomes]

Em certa manhã, Gregor Samsa acorda e se encontra metamorfoseado em um inseto monstruoso. Gregor, que colabora para o sustento da sua família, se encontra do dia para a noite impossibilitado de realizar qualquer atividade. 
O que pode ser considerada uma possível crítica ao sistema capitalista, A metamorfose de Franz Kafka desperta interesse entre leitores de todo o mundo.

Para conhecer mais sobre a obra, confira o texto escrito por Sâmella Russo, Doutora pelo Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Escrita em novembro de 1912, A metamorfose já completou mais de um século. Apesar disso, o texto de Franz Kafka ainda desperta bastante interesse entre leitores do mundo todo, estando sua frase introdutória entre as mais célebres da literatura: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. 
Ao longo da narrativa, Gregor vivencia a angústia, o desconforto e a dúvida da sua existência: de filho e funcionário a inseto. A metamorfose traz como tema central as funções que indivíduos desempenham na sociedade moderna, observando-as, questionando-as, por certo. 
 
Na esfera familiar, Gregor é o filho e o irmão que colabora para o sustento da casa. Do dia para a noite, a sua atividade de caixeiro-viajante torna-se impedida, ao ter o seu corpo transformado e impossibilitado de transitar por qualquer lugar que não o seu quarto. A narrativa sugere que, impossibilitado de contribuir, Gregor passaria a ser um fardo não apenas indesejado, mas sem utilidade alguma, em uma possível crítica ao modelo capitalista já bastante desgastado na virada do século 19, mas ainda mais vigoroso dois séculos depois. Despertado inseto, o espaço que ocupa na casa da família torna-se ainda mais limitado, e ele então apenas incomoda, envergonha. Ao deixar de ser filho, irmão, funcionário, resta-lhe encontrar uma nova forma de participar, de pertencer, ou seja, Gregor encarna a busca de todo indivíduo, em especial o de hoje. 
 
Muito se especula sobre simbologias na obra de Kafka, e isso porque grande parte dos seus textos apresenta desafios de interpretação, convidando os leitores a estabelecerem suas próprias reflexões. Isso se deve em especial por se tratar de uma forma de escrever muito íntima, muito interiorizada. Kafka falou, sobretudo, de um mundo muito particular seu. O que significaria ir dormir e acordar transformado em algo “repugnante” e “asqueroso”, afinal? Fato é que o autor nunca teve a intenção de decretar um único sentido ao seu texto. Prova disso é quando, em 1915, Kafka interferiu diretamente na editoração do livro, exigindo que, quando da publicação de A metamorfose, o inseto não fosse ilustrado de forma alguma. Isso certamente colabora para a atribuição de simbologias ao texto por diversos de seus leitores, ainda que, muito provavelmente, A metamorfose seja mais uma das tantas tentativas do autor de lidar com as suas inquietações.
Mas o que afinal quereria tal história dizer? Em abril de 1917, dois anos depois de publicada, um leitor desconhecido, Dr. Siegfried Wolff, enviou uma carta a Kafka suplicando que ele lhe explicasse a história. Uma resposta a tal carta é todavia improbabilíssima.
Também por essa abertura, essa possibilidade de distintas interpretações, A metamorfose mantém-se atual tanto tempo depois. E Kafka certamente sabia o valor disso. Muito se fala sobre o seu desejo, já nos últimos anos da sua vida, de atear fogo em tudo que havia escrito. Ainda que haja algum exagero nesse desejo do autor, não se pode perder de vista que, em seu último “testamento” escrito e de que se tem notícia, de novembro de 1922, Kafka foi explícito ao incluir A metamorfose entre suas obras de “valor”. E ele certamente tinha razão.

Sâmella Russo é Doutora em Germanística no Departamento de Letras Modernas da FFLCH - USP. Desenvolve pesquisa na área de Literatura, atualmente tem interesse em, textos autobiográficos, tradução e no autor Franz Kafka.