Gilberto Gil: ditadura militar, racismo e Tropicalismo

Tese de doutorado analisou a trajetória e a discografia do cantor e compositor baiano desde o início da carreira até sua partida para o exílio na Inglaterra, durante a ditadura militar

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

Gilberto Gil no exílio em Londres - Foto: Reprodução/Instagram
Gilberto Gil no exílio em Londres - Foto: Reprodução/Instagram

Gilberto Gil é um dos maiores nomes da MPB. Baiano nascido em Salvador, o cantor e compositor fez parte do Tropicalismo – movimento que revolucionou a cultura brasileira na segunda metade da década de 1960 – ao lado de outros grandes artistas como Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé e Maria Bethânia. Hoje, Gil é um símbolo da cultura brasileira, mas nem sempre suas obras foram reconhecidas pela mídia. Além disso, alguns momentos de protesto na trajetória de Gilberto Gil ainda são pouco conhecidos do público, como é o episódio da recusa do prêmio Golfinho de Ouro em 1970.

Em sua pesquisa de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Patrícia Anette Schroeder Gonçalves analisou a discografia do cantor entre 1963 e 1969 – período que vai do início de sua carreira até seu exílio em Londres durante a ditadura militar no Brasil. A pesquisadora conta que ainda não existem muitos estudos sobre música na literatura, o que motivou suas pesquisas sobre a canção popular brasileira.

Caetano na capa da Romântica - Foto: João Fontes
Caetano na capa da Romântica - Foto: João Fontes

Para escrever a tese, Patrícia examinou vários acervos de documentos, desde revistas da época até arquivos da ditadura. A pesquisadora relata que, apesar de a mídia destacar compositores como Caetano, ela parecia ignorar Gilberto Gil. A autora não encontrou, por exemplo, nenhuma revista em que Gil aparecesse sozinho na capa, por maior que fosse sua influência no movimento tropicalista. Ela acredita que essa discriminação pode revelar um recorte racial feito pela indústria cultural da época.

Ditadura militar e racismo

A autora analisou, também, a relação de Gil com a censura imposta pela ditadura. Dias depois da decretação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968, o compositor foi preso pelos militares sob a acusação de “incitar a juventude à rebeldia”. Ficou alguns meses no cárcere e partiu para o exílio na Inglaterra, para escapar da perseguição política.

Esse período revelou um lado do artista que nem todos conhecem. De acordo com Patrícia, “a imagem que temos dele hoje é a de uma pessoa pacífica e calma”, mas Gil sabe se posicionar. A canção Aquele Abraço (1969), que soa como uma carta de despedida ao Brasil antes do exílio e é até hoje uma das mais conhecidas do cantor, foi premiada em 1970 com o Golfinho de Ouro, concedido pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Em um texto publicado no jornal O Pasquim (Recuso + Aceito = Receito), Gil recusou o prêmio.

A letra da canção premiada é ambígua, o que era uma das principais marcas das obras produzidas pelo Tropicalismo. Mas ele acreditava que a música havia sido mal interpretada pelo museu e chegou a falar em fascismo cultural. “O tom de Gil nesse texto é surpreendente, porque é muito ácido e menciona diretamente o racismo da instituição que o premiou”, afirma a pesquisadora.

No texto publicado em O Pasquim, Gil definiu os limites da ambiguidade de Aquele Abraço. O cantor começou a se aprofundar mais em questões raciais e explicitou seu posicionamento político contrário à opressão dos militares.

“Eu não tenho por que não recusar o prêmio dado para um samba que eles supõem ter sido feito zelando pela ‘pureza’ da música popular brasileira. Eu não tenho nada com essa pureza. Tenho três LPs gravados aí no Brasil que demonstram isso. E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que Aquele Abraço não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar’. Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil”, escreveu Gil.

A tese de doutorado No avesso do espelho: Gilberto Gil e a metacanção tropicalista, de autoria de Patrícia Anette Schroeder Gonçalves e orientada pelo professor Ivan Francisco Marques, foi defendida em outubro de 2023 no âmbito do programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira na FFLCH.