Pesquisa da USP estuda as diferentes construções da feiticeira no teatro português nos anos 1960 e 2006
No passado, as feiticeiras eram consideradas uma ameaça para a sociedade, sendo perseguidas e queimadas na fogueira. A partir dos anos 1960, contudo, sua figura passou a ser explorada na cultura como um símbolo de força feminina, atingindo países como França, Estados Unidos, Reino Unido e por fim, Portugal, país no qual a imagem da feiticeira foi explorada no teatro. Para além de uma dualidade de negativa ou positiva, a figura da feiticeira no teatro português reflete a situação da mulher na sociedade portuguesa, ora se tornando vítima, ora ocupando o espaço de resistente às pressões sociais.
Em sua tese de doutorado, Robin Driver, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, analisou a construção da feiticeira em quatro obras dramáticas portuguesas escritas em períodos históricos diferentes: “Duas foram publicadas em 1959 e as outras duas em 2006. Todas falam da figura da feiticeira como espelho da mulher portuguesa, ora como vítima, ora como figura de empoderamento.”
As feiticeiras em 1959: mulheres livres são uma ameaça
Em 1959, Portugal estava enfrentando o Estado Novo, período marcado pelo autoritarismo, nacionalismo, tradicionalismo e corporativismo. Assim como ocorreu no regime militar do Brasil, a livre manifestação de pensamentos era vista como uma ameaça pelo governo. Foi nesse contexto sociopolítico que o poema dramático Comunicação, de Natália Correia, foi escrito: “Nessa obra, a personagem principal, a Feiticeira Cotovia, é realmente uma feiticeira. Mas, ao mesmo tempo, ela é uma espécie de personagem metafórica, porque ela é feiticeira e poetisa. Então, na verdade, sua magia é a poesia.”
Em suas poesias, a Feiticeira Cotovia faz críticas às regras sociais impostas às mulheres e defende, entre outras coisas, a liberdade sexual de todas, sendo condenada à fogueira por três figuras: o Padre, o Patriotra e a Solteirona. Para além de críticas contra os padrões impostos ao gênero feminino, a obra de Natalia Correia realiza uma crítica ao regime autoritário do Estado Novo: “A falta de liberdade sexual das mulheres é apenas uma faceta da repressão do Estado Novo. E as três figuras que acusam a feiticeira, o Padre, o Militar e a Solteirona, representam as bases do Estado Novo, respectivamente, Deus, pátria e família”, explica Driver.
Enquanto é queimada pela sua comunidade, a Feiticeira Cotovia declama um novo poema: “Dessa vez, ela anuncia uma nova era. Ela vai morrer, mas a sua poesia carregada de críticas, que é sua magia, vai sobreviver, instaurando uma nova época”. Essa época, de acordo com o pesquisador, é um governo sem repressão do Estado Novo e uma nova ordem social que dá liberdade às mulheres.
Diferente da primeira, na segunda obra, O Crime de Aldeia Velha, escrita por Bernardo Santareno, a personagem principal Joana não é, de fato, uma feiticeira: “Temos uma menina que é acusada de estar possuída por um mal por não corresponder às normas sociais, sendo também morta.” Assim como a Feiticeira Cotovia, a morte de Joana reflete as pressões que a sociedade portuguesa colocava sobre os comportamentos que as mulheres deveriam seguir.
47 anos depois: feiticeiras como um símbolo de força
Em 2006, Portugal, assim como outros países europeus, estava enfrentando ondas de movimentos feministas a favor do aborto, que seria legalizado no país em 2007. Além das ruas, as manifestações feministas invadiram a arte. Dessa vez, a imagem da feiticeira ganhou um novo significado no teatro português: agora ela era o retrato não só de mulheres resistentes, que buscavam a autonomia de seus corpos, como também de mulheres unidas.
Em Feiticeiras, a autora, Maria Teresa Horta, explora a questão da sororidade que as mulheres construíram durante esse período: “Essa obra é um poema dramático que foi escrito para ser encenado como ópera. Então temos um coral composto por um grupo de mulheres. Diferente das obras de 1959, nesse poema a feiticeira não está sozinha. Pelo contrário, essas feiticeiras criam uma comunidade de apoio, refletindo a união dos movimentos feministas”, explica Driver. Na ópera, todas elas são queimadas, mas logo em seguida reencarnam – uma metáfora à qual a autora recorreu para mostrar que, apesar da perseguição social, as mulheres portuguesas insistiram em suas lutas.
Enquanto que em Feiticeiras Maria Teresa Horta recorre à figura da feiticeira como símbolo para representar a luta de todas as mulheres, em Desmesura a autora Hélia Correia propõe analisar as tensões entre mulheres de diferentes origens sociais: “Nesta peça, temos uma feiticeira que compartilha uma casa com três escravas: duas gregas, mãe e filha, e uma africana. A situação nos permite conhecer um pouco dos diferentes tipos de opressão enfrentados por mulheres com vivências diversas."
Escrita na terceira onda do feminismo em Portugal, a peça faz uma provocação sobre as especificidades das mulheres de diferentes raças que os movimentos feministas portugueses não incluíam: “Na obra, temos essa figura da feiticeira como uma vingadora do patriarcado e, portanto, apta a lutar. Mas essa não era uma perspectiva para todas as mulheres. Hélia defende que a emancipação da mulher deve ser uma questão muito mais plural.” Essa pluralidade, de acordo com Driver, é a possibilidade de dar espaço para as vozes, demandas e direitos de todas as mulheres do país.
Na encruzilhada: a feiticeira como espelho da condição feminina no teatro português moderno e contemporâneo foi defendida em setembro de 2023 no âmbito do programa de pós-graduação em Literatura Portuguesa e teve orientação da professora Flavia Maria Ferraz Corradin.
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