Pesquisa de mestrado da USP identifica ações pedagógicas de combate ao preconceito contra a comunidade LGBTQIA+ que podem ser utilizadas no ambiente escolar
Terminado o ano de 2023, o Brasil se manteve como o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, fechando o ano com 257 vítimas. A esperança de mudança deste cenário pode estar na educação.
A partir da análise de projetos de Trabalho Colaborativo Autoral (TCA), Lenilson investigou como se dão, no ambiente escolar, as práticas pedagógicas de combate à intolerância relativa a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgênero, queer, intersexuais, assexuais e outras.
“A minha dissertação começa, na verdade, já em 2015, quando os alunos da escola em que eu lecionava vieram me pedir para ser orientador do Trabalho Colaborativo Autoral deles, e que queriam falar sobre homofobia” , relembra Thomaz sobre o que motivou o tema de sua pesquisa.
Orientado por Francione Oliveira Carvalho, doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie, o estudo utilizou o território da Diretoria Regional de Ensino de Guaianases, abarcando três Emefs (Escolas Municipais de Ensino Fundamental): Emef CEU Inácio Monteiro, Emef Saturnino Pereira e Emef Claudia Bartolomazi.
Para o professor, ainda existe um longo caminho a ser traçado para que o debate de gênero seja implementado nas salas de aula de maneira ampla e normalizada. Os projetos de TCA representam um avanço na criação de estratégias para o combate a essas violências dentro do ambiente escolar.
Mais Educação
Parte da pesquisa de Lenilson foi pautada na análise da atuação do programa Mais Educação, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, implementado em 2014. O programa configura os nove anos do Ensino Fundamental em três ciclos de aprendizagem de três anos: Ciclo de Alfabetização (1º, 2º e 3º anos), Ciclo Interdisciplinar (4º, 5º e 6º anos) e Ciclo Autoral (7º, 8º e 9º anos).
O foco do professor dentro do programa foi nos Trabalhos Colaborativos de Autoria (TCAs), especificamente aqueles que tratavam de assuntos ligados à comunidade LGBTQIA+ e intolerância. Os TCAs são projetos de intervenção social propostos para a finalização do Ciclo Autoral, elaborados pelos alunos e acompanhados por professores. Os trabalhos são desenvolvidos desde o 7º até o 9º ano do ensino fundamental.
No decorrer de sua pesquisa, Thomaz identificou que a escolha de temas voltados à comunidade LGBTQIA+ eram de escolha dos alunos. Algo que, para ele, mostra a importância de se tratar sobre esses assuntos dentro das escolas. Um dos grupos analisados escolheu falar, em seu TCA, sobre a homofobia que eles presenciavam e vivenciavam dentro da escola. Já outro grupo focou o seu trabalho no tema da autodescoberta e aceitação, utilizando suas próprias experiências.
“Os alunos mais engajados nos projetos eram aqueles que se identificavam com o tema, mas não podiam ou tinham receio de se abrirem dentro de casa ou na escola. Eles viam no TCA a oportunidade de falar sobre o assunto”, explica Thomaz.
Além de analisar projetos de TCA em sua pesquisa, Thomaz já foi contemplado com a primeira colocação no Prêmio Professor em Destaque 2017 pelo projeto Direitos Humanos na Luta Contra LGBTfobia, realizado com os alunos da Emef Alexandre de Gusmão. O trabalho envolveu os alunos do Ciclo Autoral e consistiu em reflexões sobre as relações interpessoais no ambiente escolar, respeito às diferenças e o rompimento da cultura de violência contra a comunidade LGBTQIA+.
Subnotificação no país que mais mata
O Brasil entrou no ano de 2024 ainda figurando como o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. Apenas em 2023, a cada 34 horas era feita uma nova vítima, totalizando 257 mortes violentas (homicídios e suicídios) registradas, de acordo com o levantamento do Grupo Gay da Bahia, uma das mais antigas ONGs LGBTs a fazer este tipo de levantamento. A ONG Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, formada em conjunto com o Grupo Gay da Bahia e a Acontece (Arte e Política LGBTI+), detectou 273 vítimas em 2022.
Os números registrados seriam, na verdade, ainda maiores. “Existe uma subnotificação no número dessas vítimas, pois ainda não há uma política para atrelar a causa da morte com a orientação sexual ou identidade de gênero da vítima”, pondera o pesquisador.
Em levantamento feito pelo Jornal Nacional em 2020, por exemplo, dos 26 Estados brasileiros, apenas 15 divulgaram dados transparentes e conclusivos sobre casos de crimes contra essas pessoas. Mesmo considerado crime inafiançável em 2019, atrelado ao crime de racismo, as vítimas de casos de LGBTQIA+fobia ainda se deparam com entraves para registrarem suas queixas, enquanto vítimas letais muitas vezes acabam tendo seu gênero ou orientação sexual não registrados nas publicações funerárias.
Relatos
Ao final de sua dissertação, Lenilson incluiu apêndices que contam depoimentos de alguns estudantes que participaram do TCA e quiseram reforçar a importância do trabalho e da atuação do professor em suas vidas. Os nomes usados por Lenilson na dissertação são fictícios para preservar a identidade dos jovens e adolescentes.
Valmir – Homem homossexual cisgênero:
“Há 7 participei de um projeto que foi muito esclarecedor e muito libertador, o tema LGBTfobia era um tema que eu nunca tinha ouvido, não sabia o que era e como impactava muitas pessoas e como poderia me impactar em algum momento.
Um tema que foi escolhido pela maioria de uma sala de 35 alunos, todos na média de idade de 14 anos. Com essa coragem vieram também muitos questionamentos, da minha parte fui julgado porque eu sempre fui meio ’estranho’, brincava de bonecas, dançava Lady Gaga, entre outras coisas que os outros meninos não faziam.
Na escola teve muitos julgamentos e frases como ‘eu sabia que ele era viado’ e em casa tive alguns atritos com familiares e com minha mãe biológica. Ao longo do tempo as pessoas falavam ‘é apenas um trabalhinho de escola’, hoje aquele trabalhinho de escola me levou para diversas manifestações com tema diversidade, me fez conhecer quem eu era e quem eu sou hoje.
Acredito que desde aquele trabalho eu estava me preparando para algo que eu ia ter que passar. Agradeço muito por ter passado por essa fase”.
Carina – Mulher bissexual cisgênero:
“É uma época que lembro com muito carinho. Eu tinha por volta de 13 anos quando o TCA foi apresentado a minha turma […] Hoje como estudante de Psicologia, eu consigo entender como é importante o adolescente se sentir incluído e ‘dono’ de suas decisões.
Uma de nossas responsabilidades foi escolher o tema e ficou decidido que gostaríamos de falar sobre o combate à LGBTfobia. Na época, acredito que todos estávamos num período de entendermos nossos sentimentos e nos compreendermos, tudo era intenso, confuso e assustador.
O impacto disso naquele momento gerou um senso crítico em mim que não existia antes do projeto. Comecei a desenvolver uma sensibilidade para pautas sociais, e procurar me informar sobre elas também.
Passei por dias bem difíceis nos anos que trabalhei com a turma e o professor no projeto, mas saber que eu era parte de algo tão importante, que de alguma forma fazíamos a diferença, me ajudou a passar por esses dias.
Eu agradeço muito por ter participado de forma tão ativa nesse trabalho por ter aberto minha mente para um caminho de maior aceitação e compreensão, […] Acredito que se não fosse por esse trabalho, talvez até hoje, eu não conseguisse entender quem sou”.
Rodrigo – Homem homossexual cisgênero:
“Sete anos atrás, eu mal sabia dizer o que era LGBTfobia, mesmo sofrendo homofobia de terceiros e da minha própria parte, pois eu apresentava repulsa por mim mesmo e meus desejos. […] pois minha vida inteira passei ouvindo: ‘os homossexuais não herdarão o reino dos céus’. E isto para uma criança, nascida e criada em uma família cristã é enlouquecedor.
Participar do trabalho me fez compreender quem sou, despertou pontos sobre minha personalidade e me ajudou a lidar comigo mesmo, minhas inseguranças e meus próprios julgamentos sobre a minha sexualidade.
O TCA ficou conhecido por membros da religião dos meus pais, e após longas conversas, chegaram a conclusão que aquilo tinha feito com que eu deixasse de atender os requisitos para ser cristão […] Me afastei do trabalho, afinal se permanecesse, ‘estaria decepcionando Deus’, então me retirei.
Hoje me orgulho do trabalho que participei, porém não me arrependo de ter saído, pois foi necessário para que eu me perdesse e sentisse falta de quem sou, o que me levou a ser quem sou […] hoje consigo compreender que não é preciso fingir ou esconder quem sou para agradar a Deus ou a qualquer crença, pois quem de fato te ama, irá te amar da forma que você é”.
*Texto de Guilherme Ribeiro, da editoria de Diversidade do Jornal da USP