Precariedade do sistema carcerário pode ser fator de violência sofrida por agentes penitenciários

Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer comenta dados que dão conta de que as agressões contra agentes nos presídios de São Paulo aumentaram 304% entre 2022 e 2023. Superlotação e falta de funcionários agravam situação

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Redação*
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Precariedade do sistema carcerário
No Brasil, grande parte das pessoas que estão presas nem receberam ainda uma condenação. Foto: Rawpixel – Freepik

“O sistema prisional brasileiro é, talvez, um dos temas mais difíceis e complexos e uma das maiores violações de direitos humanos que ocorrem no Brasil”, afirmou Luís Roberto Barroso,  presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em evento na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, em outubro de 2023. Essa citação é um exemplo de como o problema é pauta frequente nas discussões sobre as violações dos direitos humanos, com questionamentos de parte da opinião pública mais conservadora quanto aos direitos dos presos. A realidade, no entanto, indica um impacto direto da qualidade do sistema prisional na violência sofrida pelos próprios funcionários penais.

Em 2023, o número de agressões contra os agentes nos presídios paulistas sofreu um aumento de 304% em comparação com o ano anterior, de acordo com os dados levantados pelo Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional de São Paulo (Sifuspesp), com base em boletins de ocorrência da Polícia Civil, passando de 26 casos registrados para 105. 

Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer – Foto: Arquivo Pessoal
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Foto: Arquivo Pessoal

Os problemas recorrentes enfrentados pelas instituições penais, como a falta de funcionários, materiais e condições estruturais precárias, além da superlotação e do cenário extremo de higiene, algumas das principais causas para 62% das mortes no cárcere privado são fatores que atingem os presos e podem afetar, condicionalmente, os servidores. É o que aponta o relatório do Sifuspesp.

Para a professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, doutora em Antropologia Social e especialista em Sistemas de Justiça Criminal, há grande influência da situação do sistema prisional nos problemas enfrentados pelos agentes. “Um sistema de justiça criminal, em especial um sistema prisional inadequado para dar conta do que a lei prevê, se reflete em problemas para todos que fazem parte, especialmente aqueles que estão na linha de frente”, afirma. 

Descontentamento no cárcere

A professora também aponta que essa realidade gera um círculo vicioso de violência. Segundo ela, há um senso comum de que as prisões devem punir direitos, como à saúde, à educação e ao exercício da cidadania, apesar de serem garantidos pela Constituição brasileira e pela Lei de Execuções Penais, de 1984. 

Acontece que, diferente do que o senso comum imagina, as condições precárias oferecidas aos detentos não se restringem somente a eles. Este cenário, segundo Fábio Jabá, presidente do Sifuspesp, gera desafios psicológicos enfrentados pelos detentos e a crescente violência dirigida aos servidores, muitas vezes resultando em agressões. Fora isso, de acordo com ele, o problema da falta de pessoal causa, também, a maior demora no andamento dos processos, aumentando a tensão nas unidades prisionais.

“Aqueles presos que realmente já tem carreira no crime, ou então quando querem uma transferência, acham que a única forma de serem ouvidos é agredir o servidor”, relata Jabá. De acordo com Ana Júlia, essa organização dos detentos é crucial para entender a violência nas prisões. “Os presídios, no Brasil, só funcionam porque há uma organização interna dos próprios detentos. Os funcionários não dariam conta se não houvesse uma organização interna, o número de agentes é insuficiente”, complementa.

Superlotação e Policiais Penais

O déficit funcional também é um dos principais pontos abordados pelo sindicalista, que ressalta o prejuízo à segurança dos servidores e dos detentos. “O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) coloca que, a cada cinco presos, tem que ter um policial penal”, explica, constatando que, com a superlotação das celas, um único agente acaba sendo responsável por dezenas a centenas de detentos, dificultando a contenção de agressões e motins. 

Em São Paulo, de acordo com dados do Cadastro Nacional de Inspeções de Estabelecimentos Penais (CNIEP) relativos a agosto de 2023, são mais de 198 mil indivíduos presos para 152 mil vagas. Dos 183 estabelecimentos prisionais ativos no Estado, 140 estão com déficit de vagas. “Quando você quadruplica o número de pessoas numa cela é lógico que isto vai tornar o ambiente extremamente difícil para todos”, adverte Ana Lúcia.  

Considerando o impacto da superlotação na violência enfrentada pelos servidores, a professora destaca a importância dos estudos que apontam o desencarceramento em massa como uma solução. “Sabe-se que, no Brasil, grande parte das pessoas que estão presas nem receberam ainda uma condenação. Elas estão aguardando detidas os seus julgamentos, o que já é gravíssimo”, aponta. Ainda segundo o levantamento do CNIEP, eram 36,5 mil detentos em prisão provisória no Estado, em agosto de 2023. 

Outras demandas do setor citadas pelo Sifuspesp envolvem melhores condições estruturais de trabalho, a abertura de concursos públicos para suprir a falta de agentes, regulamentação da categoria dos policiais penais e reajuste salarial, como concedidos às polícias militar e civil. 

Por outro lado, Ana Lúcia defende que apoiar melhorias no sistema carcerário do País não é “defender bandidos”, como diz o senso comum. “Quem trabalha com direitos humanos trabalha também pelos direitos dos agentes prisionais, dos policiais penais. Todos sofrem quando o sistema está falido e não investe na sua revolução”, acrescenta. 

Secretaria da Administração Penitenciária responde

Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) do Estado de São Paulo repudiou as denúncias do Sifuspesp e descreveu as medidas que vêm sendo tomadas. Confira a nota na íntegra: 

A Secretaria da Administração Penitenciária repudia o sensacionalismo feito pelo sindicato a partir do levantamento, que tem o propósito de desestabilizar o sistema prisional. Cabe esclarecer que os presídios de regime fechado contam com abertura e fechamento automatizado de porta de cela, minimizando o contato entre pessoas presas e policiais penais. Em situação de conflito ocorrida nesta gestão, o servidor foi prontamente auxiliado e a situação rapidamente controlada, seja pelos próprios servidores da unidade, seja pelo Grupo de Intervenção Rápida, que surgiu justamente para manter a ordem e a disciplina nos presídios.  

O concurso para contratação de 1.100 policiais penais está previsto para ser lançado até o final do primeiro semestre deste ano, considerando a aprovação da lei que regulamenta a lei da Polícia Penal no Estado de São Paulo nesse mesmo período. O percentual de ocupação das unidades prisionais do estado de São Paulo é de 128,58 %, abaixo da média estipulada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que estabeleceu como aceitável a sobrepopulação de até 37,5%. As unidades passam por manutenção sempre que necessário e não há racionamento de água nos presídios paulistas. 

Todos os presos que dão entrada em presídios da SAP passam por triagem de saúde e tem atendimento básico na maioria das unidades, seja por meio de equipe própria ou por meio de equipes por parcerias com municípios – atualmente 94 unidades atendem nessa última modalidade. Casos mais complexos são levados à rede pública ou ao Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário e quando necessitam de atendimento em especialidades, os presídios agendam por meio do SUS. 

Os internos contam com o TeleSAP, atendimento médico online com diversas especialidades.  São realizadas também jornadas que incluem mutirões de saúde com entidades parceiras, além de busca ativa para casos de tuberculose, sífilis e hepatite.

*Felipe Faustino, da editoria de Diversidade do Jornal da USP

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