Quem foi Sócrates?

Considerado à sua época polêmico e odiado, o filósofo grego da antiguidade teve importância fundamental na história da filosofia com suas maneiras e pensamentos

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

O professor Roberto Bolzani explica que Sócrates foi “aos poucos dando-se conta de que a sabedoria humana está na consciência da ignorância, [...] mostrando aos pretensos sábios, por meio de suas refutações, que não sabiam o que presumiam saber” [Arte: Pedro Seno]

Mestre filosófico de Platão e Xenofonte, soldado na Guerra do Peloponeso, influente na aristocracia e juventude ateniense do século V a.C., condenado à morte por corrupção de valores dos jovens, ingerindo veneno. Este é Sócrates, nascido em 470 a.C. e falecido em 399 a.C. O professor Roberto Bolzani Filho, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, nos conta um pouco da trajetória e pensamento desta figura notória.

Sem que seja possível estabelecer fontes concretas sobre o pensamento de Sócrates, que nunca escreveu nada por si só, tendo somente escritos onde aparece, sobretudo nas obras de diálogos de Platão, o filósofo é marcado pela personalidade sábia e crítica da moral da sociedade grega onde viveu.

Sua presença nos textos era a de nada saber sobre um assunto e posicionar-se como um interrogador perante seu interlocutor, para então provar a ele o não possuir do saber de fato, como um “refutador”, nas palavras do professor. Isso tornou-se relevante por colocar em evidência a consciência da ignorância, que leva aos valores do “cuidado da alma, da virtude e da verdade, e não ao cuidado do corpo, da riqueza, poder e honra”.

Em entrevista concedida, o professor oferece um detalhado resumo da vida e pensamento de Sócrates, além de mostrar como são entendidos seus textos na acadêmia e vida em geral na atualidade. Confira:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi o filósofo Sócrates, em que período e lugar viveu?

Roberto Bolzani Filho: Sócrates nasceu em Atenas, em 470 a.c, e morreu em 399 a.c. Era de origem simples, filho de uma parteira e de um escultor. Pouco se sabe sobre sua vida, exceto que participou com destaque e coragem de batalhas durante a chamada Guerra do Peloponeso, que reuniu muitas cidades gregas em torno das duas principais potências, Atenas e Esparta, formando-se então dois grupos antagônicos. A guerra durou quase trinta anos, de 432 a 404. Dela resultou profunda crise política em Atenas, que foi derrotada, com expurgos e perseguições. Essa decadência quanto aos valores básicos da vida ajuda a compreender, em boa medida, a proposta filosófica de Sócrates. É também notório seu julgamento, tendo sido acusado de impiedade e corrupção da juventude ateniense. Foi condenado e morto na prisão, por ingestão de veneno. Apesar de sua origem modesta, deve ter sido personagem bastante influente junto aos meios aristocráticos da cidade, encantando muitos jovens com seus ensinamentos, mas provocando incômodo e mesmo ódio em muitos cidadãos influentes, o que explica a iniciativa de levá-lo ao tribunal. Entre seus numerosos discípulos, o principal foi Platão, cuja obra se tornou para nós o principal veículo de transmissão do pensamento socrático. 

Serviço de Comunicação Social: Por quais ideias principais o filósofo é mais marcado, do ponto de vista filosófico e, em linhas breves, como funciona o método socrático?

Roberto Bolzani Filho: A filosofia de Sócrates consiste, para nós, naquilo que nos chegou dos textos escritos por seus discípulos, pois ele nada escreveu. Esses foram muitos, mas a maioria desses escritos se perdeu, restando-nos, basicamente, os de dois discípulos: Platão e Xenofonte, além de uma comédia de Aristófanes, denominada Nuvens, que tem nosso filósofo como personagem principal. Tal comédia é o mais antigo texto conhecido em que se fala de Sócrates, que nela é apresentado como um sofista, um professor de retórica que ensina a vencer nas disputas de tribunais e assembléias. Esse retrato é diametralmente oposto aos que se encontram nos dois discípulos mencionados, que nos apresentam um Sócrates dotado de algum tipo de sabedoria e voltado primordialmente à reforma moral de seus concidadãos. Do ponto de vista histórico, não há condições de estabelecer de forma categórica que qualquer uma dessas fontes de informações é melhor do que as outras, porque em todas elas se trata de fazer uma espécie de imitação inventiva do filósofo, seja para sua defesa e para exortar em favor de suas ideias morais (Platão e Xenofonte), seja para sua crítica e ridicularização (Aristófanes). O que se pode afirmar com certeza é que a posteridade elegeu os textos de Platão, escritos em forma de diálogo, com Sócrates como grande protagonista na maioria deles, como os que mais interessam, de um ponto de vista filosófico, para a compreensão do pensamento socrático, embora seja, no limite, insolúvel a questão de determinar o que, nesses diálogos, é filosofia socrática e o que é filosofia platônica - em certo sentido, sempre se trata de Platão. 

Tradicionalmente, consideram-se como mais próximos do pensamento genuinamente socrático alguns diálogos mais breves, provavelmente elaborados na primeira fase da carreira de Platão. O motivo para tanto é que neles prevalece o final “aporético”, ou seja, eles terminam com o interlocutor de Sócrates reconhecendo que, diante das perguntas e dificuldades apresentadas por Sócrates a respeito da questão inicialmente proposta ao debate, ele se encontra embaraçado, sem uma saída - eis o significado do termo grego aporia, “sem saída”. Nesses diálogos, Sócrates é sempre aquele que declara nada saber a respeito do assunto em discussão, o que lhe permite assumir o papel de interrogador perante um interlocutor que entende possuir um saber sobre o mesmo assunto. Sua função, portanto, é mostrar a seus interlocutores que eles realmente não possuem o saber ou o conhecimento que imaginavam possuir sobre o tema. 

A princípio, poder-se-ia inferir que Sócrates teria sido, portanto, apenas um refutador inconsequente, alguém interessado exclusivamente em vencer disputas de argumentos, para exibir-se diante dos espectadores. Contudo, na Apologia de Sócrates, texto em que Platão recria, à sua maneira, o discurso de defesa que Sócrates fez no tribunal, nosso filósofo explica por que se viu levado a passar sua vida filosofando e concebendo tal atividade filosófica como constante procedimento de interrogação e refutação: ele segue uma ordem do deus. Ao saber que a sacerdotisa de Apolo, deus da sabedoria, afirmou, ao ser consultada, que ninguém era mais sábio do que ele, Sócrates pôs-se a investigar o significado dessa sentença enigmática, imaginando encontrar na cidade diversos sábios. Contudo, a cada nova experiência de interrogação, constatava que os homens julgavam ser sábios sobre os assuntos fundamentais da vida - os valores éticos e políticos -, mas que, na verdade, não o eram, enquanto ele, que nada sabia, sabia ao menos que nada sabia, o que o tornava mais sábio do que eles. Foi então aos poucos dando-se conta de que a sabedoria humana está na consciência da ignorância, tornando-se, a partir daí, um auxiliar do deus, mostrando aos pretensos sábios, por meio de suas refutações, que não sabiam o que presumiam saber. Sua filosofia se torna assim uma maneira de exercer a refutação dos interlocutores, de modo a mostrar-lhes que mais vale reconhecer a ignorância do que exibir um falso saber. Decerto essa atitude, provocando o ódio de muitos, ajuda a explicar as acusações de que foi vítima no tribunal. 

Sócrates entendia que essa consciência da ignorância estava associada a algo que, para ele, confere a essa atividade de refutação que exerce um valor fundamental: trata-se de viver uma vida voltada ao cuidado da alma, da virtude e da verdade, e não ao cuidado do corpo, da riqueza, poder e honras. Há, portanto, nessa filosofia, uma exortação a uma atividade pessoal de introspecção que passa a valorizar a interioridade e os valores morais. Isso, em boa medida, explica por que Sócrates, para o incômodo de muitos de seus concidadãos, viveu uma vida pobre e despreocupada de qualquer ambição política, ao mesmo tempo exercendo grande influência junto aos jovens aristocratas ávidos por ensino. E no tribunal, instado a abandonar essa atividade para em troca obter sua liberdade, preferiu nela manter-se até o fim, porque não mais conseguiria conceber sua vida de outra forma. Compara-se então a um inseto que o tempo todo ferroa o animal grande e pesado - a cidade -, para despertá-la de seu marasmo.

É costume falar de um método socrático, embora a expressão seja talvez muito forte. Trata-se da maiêutica. A palavra faz referência à arte da parteira, exercida pela mãe do filósofo. No diálogo platônico Teeteto, Sócrates se compara a ela, afirmando que, quando interroga os jovens, pretende apenas ajudá-los a dar à luz suas próprias ideias, sem que ele próprio acrescente nada pessoal a essas ideias. Tal método é frequentemente considerado como uma forma frutífera de ensino, justamente porque, com ele, deixa-se o estudante na condição de pensar livremente, por sua própria conta e risco, sem a imposição de conteúdos previamente escolhidos pelo educador. 

Serviço de Comunicação Social: Como Sócrates é inserido no contexto das pesquisas acadêmicas realizadas na FFLCH e qual sua importância nos dias atuais?

Roberto Bolzani Filho: Nos estudos de Filosofia Antiga do curso de Filosofia da FFLCH, são oferecidas regularmente disciplinas que abordam o socratismo, sejam elas voltadas diretamente para os diálogos platônicos acima aludidos, sejam elas direcionadas a temas que remetem o estudante a esse pensador, como, por exemplo, o estudo da ética em Platão e Aristóteles sobretudo a respeito das relações entre virtudes e sabedoria, e a análise de obras desses dois filósofos que atribuem a Sócrates certo ideal de conhecimento rigoroso, onde se encontra a necessidade de pensar a noção de definição associada aos conceitos universais e gerais.

A importância de Sócrates para nossos dias está, seguramente, em sua atitude crítica em relação a saberes estabelecidos, a pré-juízos e preconceitos que muitas vezes caracterizam esses saberes. Sua atitude, em busca de despertar nos homens a necessidade de uma autocrítica a respeito de suas convicções pessoais, seria muito bem-vinda num mundo que cada vez mais prega o dogmatismo irracional e o ódio pelo diferente. 

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Roberto Bolzani Filho é professor Livre-Docente do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Filosofia Antiga, Platão, Aristóteles e ceticismo. Está desenvolvendo atualmente uma pesquisa intitulada “O sentido da refutação nos diálogos socráticos de Platão”.