Restaurantes preservaram cultura e memórias de imigrantes italianos, indica pesquisa

Em São Paulo, pratos típicos italianos são saboreados e transformados pelo gosto brasileiro desde o fim do século 19

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Gabriela Ferrari Toquetti
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A culinária paulistana é fortemente influenciada pela italiana (Fotos e Montagem: Gabriela Ferrari Toquetti/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

As influências italianas na gastronomia paulistana são incontáveis. São Paulo é a segunda cidade que mais consome pizza no mundo, atrás apenas de Nova York. São cerca de 5 mil pizzarias, com 600 mil pizzas vendidas diariamente na capital paulista. Dessa união de culturas, nasceu uma culinária nova que é ao mesmo tempo recheada de memórias da Itália e temperada ao gosto brasileiro.

Em sua tese de doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a jornalista Silvana Azevedo de Almeida explorou os impactos da imigração italiana em São Paulo, mais especificamente na gastronomia, e criou o termo “cozinha de herança” para se referir à culinária que é transmitida – e também transformada – ao longo do tempo, carregando histórias e memórias afetivas nos sabores, nos aromas e na preparação.

Durante dez anos de pesquisa, Silvana conversou com chefs, cozinheiros e donos de restaurantes italianos em São Paulo para entender como seu passado é transportado pela comida e como a culinária paulistana transforma os pratos típicos da Itália no contexto brasileiro.

A pesquisa

Silvana tem ascendência italiana: seus bisavós fizeram parte da grande massa de imigrantes que chegaram ao Brasil na virada do século 19 para o século 20. Mas a principal motivação para a escolha do tema de sua tese foi sua experiência profissional: por muitos anos, ela trabalhou como crítica de gastronomia e isso a inspirou a escrever sobre a cozinha.

Imigrantes italianos no Brasil (Foto: Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo)

Na Folha de S. Paulo, a pesquisadora fez parte da produção da coleção Cozinhas da Itália, que transporta o leitor para cada uma das regiões do país europeu por meio da culinária. Além disso, atuou como crítica gastronômica em outros veículos grandes, como a Abril e a Globo. “E, mergulhando nas histórias das pessoas que eu entrevistei, passei a pensar mais na história da minha própria família”.

Cozinha de herança

Assim como a linguagem, a cozinha é um meio pelo qual um grupo pode expressar sua cultura, sua identidade e suas tradições, de acordo com Silvana. No ato de cozinhar ou de comer, preservamos a memória de um povo e cultivamos um elo com nossos antepassados.

Foi dessa ideia que surgiu a expressão “cozinha de herança”. A pesquisadora explica que o termo que mais se assemelha ao conceito é o “comfort food”, do inglês, que descreve alimentos que confortam ou amparam, ligados à memória e à comida caseira. A expressão do inglês, contudo, não contempla todas as dimensões da cozinha de herança que Silvana desvendou enquanto trabalhava na pesquisa. Os imigrantes italianos, por exemplo, usaram a culinária como forma de se fixar em São Paulo: “encontraram na cozinha uma maneira de serem aceitos em uma sociedade diferente da sua de origem”, esclarece a pesquisadora.

A cozinha italiana em contato com São Paulo

Quando chegaram ao Brasil, muitos italianos trabalhavam em lavouras. Alguns abriram restaurantes não para conquistar clientes paulistanos, mas sim para criar espaços onde pudessem relembrar seus pratos típicos. Os brasileiros, porém, começaram a frequentar esses restaurantes e, como todos os negócios precisam de lucro, os imigrantes procuraram entender o paladar do Brasil. É nessa interação que a cozinha de herança se desenvolve, de acordo com Silvana.

Outro fator central é o ingrediente. Principalmente por aspectos geográficos de clima e solo, há alimentos abundantes na Itália que não são encontrados com facilidade no Brasil, e vice-versa. A carne bovina, por exemplo, era mais comum no Brasil, e o cardápio italiano era mais voltado aos legumes e às verduras. Por conta dessas diferenças, algumas modificações começaram a surgir nas receitas dos imigrantes.

Melanzane alla parmigiana (Foto: Moira Nazzari/Unsplash)

Aos poucos, a gastronomia italiana foi se mesclando com temperos e ingredientes disponíveis em São Paulo, adaptando os pratos típicos ao gosto local. A pesquisadora cita o famoso filé à parmegiana, que, na verdade, não existe na Itália. Originalmente, a receita era preparada com berinjela e se chamava melanzane alla parmigiana; os brasileiros, porém, sentiram falta de carne no prato e trocaram o legume pelo bife.

No sul da Itália, que possui grandes regiões de cultivo de tomate, há mais consumo de massas secas, pizza e molho de tomate. Já a cozinha do norte, que é mais “invernal”, explora risotos, polentas e queijos mais cremosos, explica a pesquisadora. “E, surpreendentemente, os paulistanos comeram pizza antes dos moradores do norte da Itália”, relata Silvana, pois as especificidades de cada região italiana acabaram entrando em contato umas com as outras no Brasil depois da imigração.

Com o tempo, os brasileiros – e principalmente os paulistanos – se apaixonaram pela culinária italiana, e cada vez mais cantinas e pizzarias começaram a se estabelecer na capital paulista. As influências da cozinha mais “fresca” do sul da Itália são muito fortes em São Paulo, que tem um consumo anual de mais de 120 mil toneladas de macarrão.

Essa mescla de culturas mostra como os repertórios gastronômicos de diferentes sociedades podem se fundir sem que a memória do passado se perca. Silvana critica o discurso de quem diz que as transformações “estragam” os pratos típicos: “Nossa cozinha não é ‘errada’; as modificações são um processo natural e a cozinha é um organismo vivo”.