As revistas ilustradas O Malho, do Brasil, e PBT, da Argentina veiculavam textos, charges e ilustrações contrárias à emancipação feminina da época
No começo do século 20, duas publicações semanais de Brasil e Argentina se posicionaram claramente contra os movimentos feminista e sufragista. As revistas ilustradas humorísticas PBT, da Argentina e a brasileira O Malho, que circulavam nos dois países, foram temas centrais de um estudo de mestrado realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
“Estas publicações tinham um posicionamento contrário à emancipação das mulheres. Eu analiso as revistas na pesquisa e busco contextualizar os debates sobre o tema, especialmente nos dois países”, explica a historiadora Thaís Batista Rosa Moreira em entrevista ao Jornal da USP. Ela é autora do estudo intitulado Na mira do traço: representações antifeministas nas revistas humorísticas PBT e O Malho (Argentina e Brasil, 1904-1918), que teve a orientação da professora Stella Maris Scatena Franco.
Para melhor compreender as publicações, a historiadora as estudou tanto em suas diferenças como em suas similaridades, o que, segundo ela, faz parte da metodologia de comparações históricas. “Na verdade, busquei compreender o sexismo e o antissufragismo que eram propagados pelas duas revistas”, explica Thaís.
Entre os anos 1904 e 1918, período analisado no estudo, repercutiam na imprensa discussões sobre possíveis reformas para implementar direitos políticos e civis para as mulheres. Contudo, as duas publicações buscavam deslegitimar os ideais das feministas da época. “Em primeiro lugar é preciso lembrar que os feminismos já possuíam, naquele período, um caráter plural”, destaca Thaís.
Corpus documental
A historiadora conta ter escolhido as publicações por possuírem o “corpus documental” mais significativo na etapa de busca de fontes para o seu estudo, quando ela montou o projeto de pesquisa. “Mas isso não quer dizer que esse conteúdo não aparecia em outras publicações da época”, lembra Thaís, que também observou outras revistas satíricas e jornais. “As duas revistas tinham um conteúdo mais amplo, mesclando linguagem, imagens e publicidade sendo visualmente mais atraentes”, explica a pesquisadora.
Mas ambas seguiam a tendência hegemônica de boa parte da imprensa na época, de retratar as demandas feministas e a luta pelo sufrágio feminino em tom satírico, de modo a ridicularizar e deslegitimar a ação política desses setores. “As revistas tiveram um papel de destaque na proliferação desses discursos contrários ao feminismo, uma vez que mantinham um alto número de tiragens e que suas principais fontes de conteúdo eram as atualidades do campo político.”
Dentre as formas de combater os movimentos femininos estava o humor gráfico. Afinal, as publicações traziam um número expressivo de caricaturas, charges e histórias em quadrinhos. A pesquisadora também identificou várias simbologias presentes nessa iconografia. Ela destaca, por exemplo, a frequente representação de mulheres “incomodando” o espaço público com o uso de grandes chapéus: “Mais do que um item da moda burguesa da época, eles apareciam como uma das metáforas satíricas do ideal emancipacionista, pois tomam a cabeça das mulheres, criam uma identidade coletiva entre suas adeptas e revelam sua presença fora da esfera privada”. Por outro lado, as mulheres sufragistas também eram representadas nas publicações usando chapéus e trajes tidos como masculinos na época. Assim, a inversão de “papéis de gênero” era uma constante em O Malho e na PBT.
Brasil x Argentina
Naquele início de século 20, os dois países tinham diferenças marcantes. A Argentina, por exemplo, como lembra Thaís, já tinha uma tradição republicana. “Lá, a ideia das mulheres ocuparem a arena política motivava reações de inquietação”, conta. Além disso, muitas associações feministas surgiram na Argentina nesse período. No Brasil, a república ainda era recente, e apenas um grupo de mulheres engajadas ganhou mais projeção: o Partido Republicano Feminino, fundado pela professora feminista Leolinda Daltro. Nesse sentido, a imprensa brasileira retratava a questão feminista com um teor mais depreciativo e zombeteiro.
Como conta a pesquisadora, o movimento sufragista inglês ganhou força na década de 1910, e repercutiu por aqui, tanto no Brasil quanto na Argentina. Todavia, ambos os países também já se encontravam em suas próprias articulações sufragistas. “Em 1917, por exemplo, o deputado carioca Maurício de Lacerda, pai de Carlos Lacerda, apresentou proposta de emenda à Constituição brasileira em favor do voto feminino, mas não teve sucesso”, observa a pesquisadora.
Na Argentina, anos antes, em 1911, algumas mulheres tentaram votar nas eleições municipais de Buenos Aires. Uma das figuras mais destacadas desse movimento foi a feminista Julieta Lanteri. De acordo com Thaís, acontecimentos como esses serviram de “gatilhos” para que as publicações se aproveitassem para propagar ideias contrárias ao feminismo de um modo geral.
As duas publicações foram criadas por homens que eram ligados à imprensa, nos dois países. “Apesar de se ligarem a alguns setores, não eram filiadas a partidos políticos ou mantinham relações fixas com grupos políticos”, descreve a historiadora. Ela conta que O Malho foi fundada em 1902 pelo jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva e que durante a campanha civilista eleitoral à presidência, em 1910, se posicionou em favor do candidato Hermes da Fonseca. “Mas não chegou a ser um apoio fixo, como revela a historiadora. A argentina PBT foi fundada pelo jornalista espanhol Eustáquio Pellicer e o primeiro número da publicação circulou em 24 de setembro de 1904.
Como destaca Thaís, “muitas das tensões, difamações e episódios de opressão sexistas narrados pelo humor gráfico do passado se aproximam, assustadoramente, de ocorrências contemporâneas”. Todavia, é necessário ver essas semelhanças sempre com muita ponderação. Na conclusão de sua dissertação, a autora aponta que “as representações antifeministas pelo viés satírico se nutrem de muitas heranças do passado, contudo, estiveram em constante transformação, se adaptando aos novos formatos, gerações e graus de aceitação, de acordo com a historicidade das mentalidades – se o humor sexista continua lastimavelmente atual, isso ocorre devido à persistência das desigualdades de gênero em nossas sociedades”.
Mais informações: thais.moreira@usp.br
Texto originalmente publicado no Jornal da USP, por Antonio Carlos Quinto
OBS: Todas as imagens reproduzidas das revistas O Malho e BPT foram cedidas pela pesquisadora