Eleição de Ana Maria Gonçalves à ABL vem celebrar uma tradição literária construída há séculos por mulheres negras

Docentes e pesquisadoras da USP destacam a importância da eleição na ABL e a principal obra da escritora como marcos na literatura negra brasileira
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Redação
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Fotomontagem com Ana Maria Gonçalves à esquerda e Machado de Assis à direita
Ironia histórica: ABL, fundada por Machado de Assis, cuja negritude foi invisibilizada por muito tempo, elege a primeira escritora negra – Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Tânia Rego/Agência Brasil via Alma Preta; Tânia Rêgo/Agência Brasil; efe_madrid/Freepik

Mais de um século após a fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL) no Rio de Janeiro, em 20 de julho de 1897, a entidade elegeu no último dia 10 de julho deste 2025 a primeira escritora negra: Ana Maria Gonçalves, autora do livro Um Defeito de Cor.

“Estamos diante de uma ironia histórica que não pode ser ignorada: a ABL foi fundada por um escritor negro, Machado de Assis. Um dos maiores nomes da nossa literatura, cuja negritude foi por muito tempo invisibilizada, como ocorre com tantos autores negros”, destaca a pesquisadora Maíra Luana Morais, doutoranda no Programa de Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “É simbólico — e também reparador — que a escritora negra, Ana Maria Gonçalves, finalmente ocupe um lugar entre os ‘imortais’”, comemora Maíra.

No mesmo departamento, a pesquisadora concluiu seu mestrado em 2023 sobre a principal obra da escritora: Um Defeito de Cor. “Quando eu li o romance pela primeira vez, eu experimentei uma conexão literária diferente daquela a que eu estava acostumada. Era como se a longa trajetória de Kehinde — personagem central — tecesse uma ponte entre eu e o mundo ali narrado, que me permitiu visitar o mundo que poderia ser o mundo dos meus ancestrais, dos meus avós, dos meus pais”, conta Maíra. “Eu vi o romance, de certo modo, como a validação de minha própria existência.”

 

Mulher negra com cabelos trançados e amarrados, sorridente e vestindo um suéter bege
Maíra Luana Morais – Foto: Arquivo pessoal

Como conta a pesquisadora ao Jornal da USP, o romance estava na bibliografia básica de um curso de Literatura Contemporânea que ela cursou na USP, junto a outros nove. “Foi o meu primeiro contato com o livro de Ana Maria Gonçalves, quando eu decidi que o estudaria. Pensei, na época: se em uma primeira leitura ele me permitiu mergulhos tão profundos, investigá-lo me levaria a aprofundar essa conexão com a minha própria história.”

O estudo intitulado Das Vicissitudes da Literatura e da História: A Emergência de uma Heroína Negra em “Um Defeito de Cor” foi apresentado na FFLCH em 2023 e teve como orientador o professor Jefferson Agostini Mello, que também a orienta atualmente no doutorado.

No programa de doutorado, atualmente, com o mesmo orientador, Maíra vem desenvolvendo a pesquisa Sob Essa Cor Escura, A Liberdade: Arquivo, Estética e Raça como Fundamento Epistemológico da Crítica Literária Hoje. “É sobre crítica literária que fundamenta a valorização da literatura negra no Brasil. Investigo críticos também negros, como o trabalho de Lígia Ferreira com as obras de Luiz Gama, por exemplo”, descreve a estudiosa.

 

Rompendo o silêncio
Ana Maria Gonçalves passou a ocupar, desde 10 de julho, a cadeira antes ocupada pelo linguista Evanildo Bechara, de número 33 da ABL, com 30 dos 31 votos possíveis. “Um marco histórico”, como define a professora Antonia Quintão, pós-doutora pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP e conselheira do Sempre FEA, uma associação criada por ex-alunos da FEA-USP.

Antonia Quintão também é presidenta do Geledés – Instituto da Mulher Negra, que sempre se posicionou em defesa de mulheres negras e negros, contra as discriminações e desvantagens no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira.

Mulher negra, cabelos longos encaracolados usando um suéter bege sobre camisa colorida
 Antonia Aparecida Quintão – Foto: Arquivo pessoal

“Essa eleição da primeira escritora negra para a ABL é um marco histórico que rompe o silêncio e a invisibilidade que por séculos marcaram a presença de mulheres negras no cenário literário e intelectual brasileiro”, comemora a professora.

Durante a sua atuação, o Geledés também passou a assumir posicionamento contra todas as demais formas de discriminação que limitam a realização da plena cidadania, tais como: a lesbofobia, a homofobia, a transfobia, os preconceitos regionais, o racismo religioso, [e preconceitos] de deficiência, de opinião e de classe.

Antonia Quintão destaca o primeiro lugar do romance Um Defeito de Cor na lista do jornal Folha de S.Paulo, que convidou 101 especialistas para escolher os melhores livros de literatura brasileira do século 21. “A obra também inspirou exposições de arte e enredo de escola de samba”, elogia a professora.

Na opinião de Antonia Quintão, ao incluir uma mulher negra em seu quadro, a ABL poderá aprofundar a sua análise sobre a pluralidade étnico-racial que compõe o Brasil. “Essa nomeação enriquece e fortalece a Academia Brasileira de Letras, repara simbolicamente uma dívida histórica e inspira jovens negras e negros ao se verem como protagonistas da literatura e da cultura brasileiras”, destaca citando outra escritora: “Com muita sabedoria nos ensina Conceição Evaristo: ‘o importante não é ser o primeiro ou a primeira, o importante é abrir caminhos'”.

 

Nascido na luta!
A docente conta que o Geledés – Instituto da Mulher Negra nasceu, no dia 30 de abril de 1988, da luta de suas fundadoras. “O Geledés é um forte apoiador da produção de autoras negras. Por meio do portal Geledés, o instituto divulga obras, entrevistas, artigos e eventos literários que valorizam a escrita negra e a memória afro-brasileira. A organização entende que essa produção é uma ferramenta de transformação social, de afirmação identitária e de combate ao racismo estrutural”, define. E a professora reforça: “É igualmente importante pontuar que o Geledés compreende a educação como um direito humano, cabendo ao Estado brasileiro garantir e efetivar uma educação pública de qualidade, antirracista, antissexista e adequada a todas as pessoas”.

 

Menininha leitora… 

Mulher negra, vestindo uma camisa preta segurando um livro cujo título é Um Defeito de Cor
Ana Maria Gonçalves também é a mais jovem entre os atuais imortais – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

No Instagram oficial da ABL, Ana Maria Gonçalves declara: “Entrar para a ABL é um acalanto na menininha leitora que eu fui e que ouviu que, na biblioteca pública do interior de Minas Gerais, já não havia mais livros para ela ler”.
O post também traz parte da trajetória da escritora e um vídeo com seu depoimento. Há ainda declarações de outros membros da ABL. Ana Maria Gonçalves é a mais jovem entre os atuais imortais.
Também já foi escritora residente em universidades como Tulane, Stanford e Middlebury, nos EUA, e atua como professora de escrita criativa e curadora de projetos culturais, sempre tecendo diálogos sobre literatura, memória e raça.
Em suas palavras: “Minha eleição representa a entrada de muitas outras pessoas que, como eu, não se viam nesse lugar. É um gesto simbólico, mas também transformador”.
 

Reconhecimento tardio… simbólico
A presença de Ana Maria Gonçalves na ABL, na opinião da professora Rosângela Sarteschi, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, traz a possibilidade de um novo olhar para dentro da academia. “Reconhecimento tardio, porém simbólico da relevância da literatura negra na formação do imaginário e da identidade brasileira”, cita a docente.

Mulher branca, com cabelos encaracolados, vestindo uma camisa bege e um cachecol estampado diante de um microfone
 Rosângela Sarteschi – Foto: Arquivo pessoal

“É um passo significativo, mas que precisa ser seguido de outros, para que a pluralidade cultural do Brasil se reflita, de fato, em seus espaços de consagração.” Lembrando ainda da nomeação de Ailton Krenak e, agora, a primeira mulher negra, Rosângela afirma ao Jornal da USP que tais eleições representam uma mudança não apenas estética, mas ética e política dentro da ABL. “São vozes que trazem outras epistemologias, outras formas de ver e contar o Brasil. Isso pode abrir espaço para uma academia mais plural, mais conectada com as urgências sociais e com nossa diversidade cultural”, avalia.

Falando especificamente do romance Um Defeito de Cor, Rosângela não hesita em considerá-lo “uma obra monumental”. “Ao reconstruir a trajetória de uma mulher negra escravizada que atravessa o século 19 e escreve sua própria história, Ana Maria Gonçalves subverte a lógica colonial que historicamente silenciou essas vozes. O livro não apenas reconta a história do Brasil a partir de uma perspectiva negra e feminina, mas também desafia estruturas narrativas tradicionais.”

Além do mais, segundo a docente, a história da literatura brasileira é marcada por silenciamentos. “Autores como Maria Firmina dos Reis, Luís Gama, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, para citar apenas alguns, enfrentaram, cada um a seu modo, o apagamento sistemático de suas vozes”, lamenta.

Contudo, a professora destaca que a USP foi a primeira Universidade brasileira a oferecer, ainda no final da década de 1970 e início dos anos 1980, disciplinas de graduação dedicadas às literaturas africanas de língua portuguesa. “Hoje, seguimos com essa tradição inovadora ao oferecer, tanto na graduação quanto na pós-graduação, disciplinas que abordam de forma sistemática a literatura negra brasileira, com atenção especial às questões conceituais e epistemológicas que envolvem o campo — inclusive problematizando o próprio termo ‘literatura negra’.”

Escrito por Antonio Carlos Quinto. Texto original https://jornal.usp.br/diversidade/eleicao-de-ana-maria-goncalves-a-abl-…