Thomas Mann: reflexões que atacam a "espinha dorsal" do totalitarismo

Críticas à sociedade burguesa e ao autoritarismo feitas pelo escritor alemão – que nasceu há 150 anos – podem contribuir para analisar o mundo atual, diz pesquisador
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Redação
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O escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) – Foto: Wikimédia
O escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) – Foto: Wikimédia

Há 150 anos nascia Thomas Mann. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1929, inimigo número um de Adolf Hitler e observador sagaz da vida e da alma da sociedade burguesa. Escritor que produziu como poucos obras monumentais e fez isso conciliando aparências, desejos reprimidos e combate ao totalitarismo.

Mann nasceu em 6 de junho 1875 em Lübeck, no norte da Alemanha. Seu pai, Thomas Johann Heinrich Mann, era um rico comerciante local que também ocupou o cargo de senador. Já sua mãe, Julia Mann, nasceu como Julia da Silva Bruhns, no Brasil. Viveu na cidade de Paraty, no Rio de Janeiro, até os sete anos de idade, habitando o casarão do Engenho Boa Vista, hoje propriedade do navegador Amir Klink.

O escritor deixou poucas declarações sobre suas origens brasileiras. Mas falou delas em 1930 para o então correspondente de O Jornal, Sérgio Buarque de Holanda – que depois se tornaria professor da USP. “O Brasil faz-me evocar, na verdade, alguns instantes deliciosos de minha infância e de minha mocidade”, contou Mann para Sérgio Buarque. “Recordo-me de que minha mãe, que era brasileira e que nasceu em uma fazenda de café ou de açúcar, não me recordo bem, entretinha-me frequentemente sobre a beleza da baía de Guanabara… Sim, creio que a essa origem latina e brasileira devo certa clareza de estilo e, para dizer como os críticos, um ‘temperamento pouco germânico’. Li apaixonadamente os clássicos alemães, os escritores franceses e russos e, especialmente, os ingleses, mas estou certo de que a influência mais decisiva sobre minha obra resulta do sangue brasileiro que herdei da minha mãe.”

Thomas pai e Julia tiveram cinco filhos. O mais velho, Heinrich, também se tornaria um escritor reconhecido, e serviria de exemplo, ora a ser seguido, ora confrontado, para o jovem Thomas. A educação que recebeu em casa foi luterana, mas o garoto não gostava da escola e deixou os estudos sem ter concluído o ensino médio.

Após a morte do patriarca, Julia e os filhos mais jovens se mudaram para Munique. Dois anos depois, em 1893, Thomas junta-se a eles. Começa a trabalhar em uma empresa de seguros contra incêndios, mas logo abandona o posto para se dedicar integralmente à escrita. Graças a uma pensão do pai falecido, não precisava de empregos fixos.

Seu primeiro livro de impacto foi Os Buddenbrook, publicado em 1901. Na obra, Mann conta a história de ascensão e decadência de uma família do norte da Alemanha, atravessando quatro gerações. A narrativa realista do século 19 se encontrava com a psicologia propagada por Freud, de quem Mann era leitor. Ele descrevia as mudanças sociais, culturais e econômicas da época a partir de personagens e situações inspirados em seus familiares e em conhecidos de Lübeck. O tom adotado na prosa causou por muito tempo desconforto na cidade natal.

Os Buddenbrook: história de uma família alemã ao longo de quatro gerações – Imagem: Divulgação/Companhia das Letras
Os Buddenbrook: história de uma família alemã ao longo de quatro gerações – Imagem: Divulgação/Companhia das Letras
O pesquisador Leonardo Thomaz – Foto: Reprodução/Instagram
O pesquisador Leonardo Thomaz – Foto: Reprodução/Instagram

Leonardo Thomaz, doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e estudioso da obra de Thomas Mann, explica que o realismo literário surgiu com o estabelecimento do capitalismo e da sociedade burguesa, sendo uma espécie de “forma de expressão natural” dessa sociedade. Nele, ganharam destaque os temas da vida cotidiana, como as relações domésticas e amorosas. Mas sob uma lente crítica: casamentos de fachada e ascensão de oportunistas, por exemplo. Justamente assuntos presentes na obra de Mann.

Esse realismo se desenvolveu primeiramente na França e levou tempo para chegar à Alemanha, conta Thomaz. “Alguns dizem que o realismo só se efetiva no próprio Thomas Mann”, aponta o pesquisador. É digno de nota que o autor nasceu poucos anos após a fundação do Segundo Reich, responsável por consolidar o modo de vida burguês na Alemanha: Mann viu sua gênese da primeira fila.

A primeira edição de Os Buddenbrook, em dois volumes, teve recepção morna. Mas a segunda, em tomo único, lançada em 1903, tornou Mann um autor celebrado antes mesmo dos seus 30 anos. Seria exatamente esse o livro que lhe renderia o Prêmio Nobel de Literatura em 1929, mesmo depois de o escritor ter publicado outras obras aclamadas, como A Montanha Mágica, lançada em 1924.

Um traço relevante da biografia de Mann, que tem desdobramentos em seus escritos, foram suas tendências homoeróticas reprimidas. O autor jamais conseguiu escapar das aparências da sociedade burguesa que tão bem retratou e teve um casamento para a vida toda com Katia Pringsheim, com quem teve seis filhos – dois deles, Klaus e Erika Mann, também se tornariam escritores. Mas várias de suas obras apresentam personagens com suas masculinidades em crise. Um dos exemplos mais vívidos é a novela Morte em Veneza (1912).

O protagonista de Morte em Veneza, Gustav von Aschenbach, é um artista envelhecido, passado dos 50 anos, que viaja para Veneza durante uma crise de identidade. Lá, encontra um garoto cuja beleza o arrebata. Leonardo Thomaz acredita que, assim como Gustav, vários dos principais personagens de Mann podem ser apreendidos pela lente da homossexualidade. Esse homoerotismo, contudo, apesar de ser um traço relevante, não é determinante de sua literatura, afirma o pesquisador.

A Morte em Veneza e Tonio Kröger: duas novelas de Mann – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras
A Morte em Veneza e Tonio Kröger: duas novelas de Mann – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras

Thomaz dá como exemplo uma obra bem posterior de Mann, Doutor Fausto (1947). Nela, uma das cláusulas da venda da alma do protagonista é que ele não terá mais permissão para amar. Segundo o pesquisador, a dimensão biográfica existe, e há uma leitura erótica aí: essa proibição seria a não realização dos desejos do autor. Mas isso não explica toda a obra. “Ela abre janelas de leitura, mas não conseguimos ler um livro inteiro só com isso.”

Nesse sentido, Mann também dirigiu seu olhar crítico a respeito do mundo burguês através de uma série de personagens artistas. “Para ele, todo artista é parente do criminoso”, conta Thomaz. “Eles estão no limiar de quem não quer trabalhar, mas também não fazem nada prático.” Os artistas, diz o pesquisador, são exemplares para representar os embates da sociedade burguesa e estão tentando compreender o mundo e a humanidade. Trata-se de um aspecto também autobiográfico, lembra Thomaz: Mann era herdeiro de uma família muito rica, mas seu pai julgou que os filhos eram inaptos para cuidar de seus negócios.

Doutor Fausto: romance sugere traços biográficos do escritor – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras
Doutor Fausto: romance sugere traços biográficos do escritor – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras
A Montanha Mágica, de 1924: obra monumental reflete o ambiente político e social na Europa no período entre as duas grandes guerras mundiais – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras
A Montanha Mágica, de 1924: obra monumental reflete o ambiente político e social na Europa no período entre as duas grandes guerras mundiais – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras

Crescendo e circulando por esse ambiente burguês, Mann inicialmente foi um apoiador do Império Alemão e de suas pretensões, chegando a declarar simpatia por sua postura beligerante durante a Primeira Guerra Mundial, como escreveu em Considerações de um Apolítico (1918). Mas, na década de 1920, essa postura conservadora e nacionalista foi paulatinamente se transformando, e o escritor se tornou um defensor da democracia e da República de Weimar.

Na literatura, o livro que marcou essa virada foi A Montanha Mágica, explica Thomaz. Trata-se de uma obra que aborda exatamente a questão da guerra, com seu tempo e sua espera, fazendo referência às trincheiras que marcaram o conflito de 1914-1918. O protagonista, Hans Castorp, sobe os alpes suíços para visitar o primo doente em um sanatório, e o que deveria ser um estadia de alguns dias se prolonga por sete anos.

Lá, Castorp encontra vários tipos sociais da velha Europa e se nutre de uma vida cultural que foi interrompida pelo conflito de 1914. “Toda a vida intelectual e artística é colocada em um ambiente enfermo, o sanatório”, diz o pesquisador. “Todos estão ali para morrer.”

O professor Marcus Mazzari – Foto: Reprodução/IPTV-USP
O professor Marcus Mazzari – Foto: Reprodução/IPTV-USP

Quando o partido nazista assumiu o poder na Alemanha, em 1933, Mann já não tinha nenhuma dúvida das posições políticas do novo governo e do perigo que elas representavam. Até mesmo suas origens brasileiras estavam no radar racista do nacional-socialismo. Em 1932, o jornal O Ataque já se referia ao autor como “essa mistura letrada de índios, negros, mouros e sabe lá o diabo mais o quê”, como o professor da FFLCH Marcus Mazzari – que assina o posfácio de uma edição de A Montanha Mágica da Penguin, prevista para dezembro – bem lembrou em artigo publicado no portal A Terra é Redonda. Após uma série de palestras no exterior, Mann decidiu não retornar para o ambiente cada vez mais sufocante da Alemanha. Passou pela França e pela Suíça até chegar aos Estados Unidos, em 1938. Sua postura antinazista resultaria na perda da cidadania alemã e de boa parte de seus bens. 

Mesmo exilado nos Estados Unidos, ele não deixou de lado a literatura, produzindo nesse período obras de combate, como Doutor Fausto, romance que trata justamente da decadência cultural e moral dos alemães e do “pacto demoníaco” que contrataram com Hitler. Mas Mann também se destacou em outras frentes de batalha. A partir de 1940, produziu 58 discursos que foram transmitidos clandestinamente na Alemanha pela emissora britânica BBC, sob o nome Ouvintes Alemães! Neles, incentivava os alemães a se libertar do nazismo, antecipando inclusive as denúncias do extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich.

Mann ganharia a cidadania estadunidense em 1944, mas alguns anos depois se veria obrigado a emigrar mais uma vez. O fim da Segunda Guerra Mundial não trouxe a paz que o autor esperava. Ao contrário, a escalada na tensão entre Estados Unidos e União Soviética deixava claro que muita coisa ainda não havia sido resolvida. Para Mann, particularmente, suas simpatias pelo socialismo lhe renderam suspeitas de alinhamento com o comunismo. Como resultado, tornou-se alvo da perseguição macartista que assolou os Estados Unidos no início dos anos 1950. Não restou opção além de voltar para a Europa, em 1952, indo morar na Suíça. Era um exilado dentro do exílio.

Leonardo Thomaz considera importante lembrar que toda a velhice de Mann é a de um escritor expulso da própria pátria. Ele voltaria para a Alemanha em 1949, durante os eventos em comemoração ao bicentenário de Johann Wolfgang von Goethe, mas o que viu tanto do lado capitalista, em Frankfurt, quanto no lado socialista, em Weimar, o fez reiterar sua declaração de que nunca mais voltaria a morar no país.

“Dos 50 até os 80 anos, Mann não tem pátria”, afirma o pesquisador. O que não significou, aponta, o abandono de suas relações com a terra natal. Leonardo resgata uma fala de Mann, assim que chegou aos Estados Unidos. “Onde eu estou, está a Alemanha.” Era como se o escritor dissesse que a Alemanha da qual fazia parte não era aquela de Hitler. Não era a Alemanha dos anos 1930 que levava consigo para o exílio.

Em certo sentido, sua Alemanha era aquela mesma de Goethe. Thomaz comenta que, entre os vários objetivos que Mann tinha com sua literatura, estava o de “vestir as roupas de Goethe”. É uma afirmação que traz dois sentidos, explica o pesquisador. Um deles trata da vontade de Mann de se colocar em alta conta e se igualar ao nome máximo da literatura alemã. “Vestir-se como o grande senhor e dizer o que é certo e errado”, indica Thomaz.

Mas também, prossegue o pesquisador, a comparação fala do reconhecimento que o próprio Mann teve de que estava comprometido com um certo ideal de humanismo partilhado com o mestre. Numa conferência de 1950, Meu Tempo, Mann traça paralelos entre sua vida e a de Goethe e, para Thomaz, é como se Mann estivesse “pegando o bastão” para entender o seu próprio tempo histórico, como Goethe tinha feito em sua época. Um entendimento que passa pela defesa dos valores de uma humanidade que não entre em disputa por questões nacionalistas, diz o pesquisador. Seria a defesa do cosmopolitismo, que teria em Goethe seu maior emblema.

Obras tardias, energia renovada

Leonardo Thomaz se dedica especialmente a estudar as obras tardias de Mann, aquilo que escreveu quando foi para o exílio e nunca mais voltou, a partir de José e Seus Irmãos (1933-1943) – cujo primeiro volume foi publicado em agosto passado, no Brasil, pela editora Companhia das Letras, numa edição organizada pelo professor Marcus Mazzari. São produções em que o autor, já consagrado, entende que suas ideias pertencem a um outro tempo. O realismo está em crise diante dos novos problemas da literatura e do mundo. Mas, em vez de estagnação, Mann apresenta novos interesses e energia renovada.

José e Seus Irmãos: inspiração na Bíblia – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras
José e Seus Irmãos: inspiração na Bíblia – Imagem: Divulgação/Companhia da Letras

Essa é uma fase, explica Thomaz, em que as questões religiosas e mitológicas começam a ganhar corpo em seu trabalho. Muito por conta da percepção de que o totalitarismo mobiliza essas questões para criar passados abstratos, que justificam as maiores atrocidades. “Mann se vale desses pensamentos para se contrapor ao nacional-socialismo na velhice”, conta o pesquisador. “É sua fase mais engajada.”

No caso de José e Seus Irmãos, por exemplo, obra em quatro volumes com cerca de 2 mil páginas, Mann apresenta um aprofundamento psicológico das personalidades das narrativas bíblicas, conta Thomaz. É uma experiência que acaba humanizando o mito. “Ele aprofunda psicologicamente para mostrar que o passado contado pelo totalitarismo não é espetaculoso, mas sim a realidade humana.”

Mann morreu em 12 de agosto de 1955, em Zurique, aos 80 anos. Certamente teria muito a dizer a respeito do mundo de 2025. Para Leonardo Thomaz, na verdade, exatos 70 anos após a morte do autor, a própria literatura de Mann ainda tem uma potência que escapa às discussões políticas do nosso tempo.

“Acredito que Thomas Mann, apesar de ser um escritor burguês, de classe alta, que contraria muitas tendências do mercado editorial contemporâneo, é capaz de atacar a espinha dorsal do totalitarismo, ou seja, a construção mítica e religiosa da realidade”, comenta o pesquisador. “Ele não entra na questão econômica, mas conduz a uma compreensão simbólica das coisas. Por exemplo, o que faz com que uma pessoa acredite nas lorotas de um líder totalitário.”

Para Thomaz, trata-se de atacar a própria maneira como a realidade é vista. “O que o fascista faz é criar uma realidade paralela. A realidade não chega porque existe uma blindagem.” A busca de Mann, nesse sentido, seria um apelo à paz. “Nossa vida é simbólica, e não temos que usar isso para matar os outros, mas sim para amá-los”, reflete o pesquisador.

Para saber mais
Leonardo Thomaz é o organizador do curso de extensão universitária Thomas Mann, 150 Anos: a Obra da Velhice, promovido pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Todo o conteúdo das aulas estará disponível, a partir de 2 de outubro, neste endereço.

 

Reportagem de Luiz Prado estagiária sob orientação de Moisés Dorado

*Texto original: https://jornal.usp.br/cultura/thomas-mann-reflexoes-que-atacam-a-espinh…