Livros revelam as lutas de mulheres revolucionárias na história do Brasil

Organizada pela professora da USP Maria Luiza Tucci Carneiro, obra em dois volumes será apresentada neste domingo, dia 19, no Museu Lasar Segall, em São Paulo
Por
Redação
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Capas dos dois volumes de Mulheres Subversivas – Dentro e Fora da Ordem, organizados pela professora da USP Maria Luiza Tucci Carneiro – Imagem: Divulgação

“A intenção é incentivar a vontade dessa mulher submissa de ser livre, de revelar sua criatividade e suas potencialidades.” É assim que a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, define o objetivo dos dois volumes do livro Mulheres Subversivas – Dentro e Fora da Ordem, que ela vai apresentar neste domingo, dia 19, às 11 horas, no Museu Lasar Segall, em São Paulo. Lançados em agosto passado pela Editora Companhia de História, os volumes reúnem 19 artigos de diferentes autoras e autores sobre mulheres que, ao longo da história do Brasil, foram revolucionárias em sua época. “Queremos mostrar que nós, mulheres, somos capazes de investir contra os estereótipos que continuam criando caos e alterando a sociedade brasileira”, acrescenta Tucci, que é a organizadora da obra. No evento de apresentação dos livros, a pesquisadora Sophia Faustino fará palestra sobre a artista paulistana Lucy Citti Ferreira (1911-2008).

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A professora Maria Luiza Tucci Carneiro – Foto: Reprodução/FFLCH

Os dois volumes da obra contemplam o período que vai do século 18 ao século 20. Os artigos publicados são, na sua maior parte, de autoria de pesquisadoras e pesquisadores que fizeram estudos no Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da FFLCH, alguns dos quais atuaram também no Laboratório de Estudos de Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer), ligado àquele departamento e coordenado pela professora Tucci.

No volume 1 – dividido em três seções, intituladas Dentro e Fora da Ordem, Fronteiras Morais e Em Pé de Guerra -, o leitor se depara com artigos que abordam, por exemplo, as perseguições sofridas no Brasil por cristãs-novas (judias convertidas ao cristianismo), estrangeiras (com ênfase em prostitutas), alforriadas, judias, comunistas e por aquelas mulheres que, de alguma forma, desafiaram a ordem estabelecida.

A estigmatização e o preconceito contra essas diferentes camadas da sociedade — que têm em comum o fato de serem formadas por mulheres — são constantes ao longo dos séculos, como mostra o volume. Escrevendo sobre a prostituição estrangeira em São Paulo entre as décadas de 1930 e 1950, por exemplo, Paula Ester Janovitch enfatiza a diferenciação que existia entre o imigrante – alguém que veio de outro país e se incorporou de forma oficial ao mercado de trabalho – e o estrangeiro, que era visto como “indesejável”. No que diz respeito às prostitutas em São Paulo, o trabalho delas sofria um controle policial próximo do que seria uma regulamentação, mas não oficialmente, porque “regulamentar a prostituição seria reconhecê-la como profissão”, nota Janovitch. “Esse reconhecimento teria consequências morais que a maior parte dos legisladores não desejava assumir diante de uma sociedade que pouco espaço dava para as mulheres e mal saíra de um sistema escravocrata.” Nesse cenário, eram atingidas, principalmente, as “polacas”, mulheres de origem judaica vindas da Europa Oriental em meados do século 19.

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Convite para a apresentação dos dois volumes de Mulheres Subversivas – Dentro e Fora da Ordem – Imagem: Divulgação

Tirar o ativismo feminino do limbo da história
Ao tratar das mulheres alforriadas, Maria da Graça Menezes Mourão e Enidelce Bertin retomam as alterações na legislação escravocrata brasileira ocorridas na segunda metade do século 19 e apontam para a integração social incompleta oferecida a ex-escravizados e a filhos de escravizados. As africanas livres eram tuteladas pelo Estado, mas não baixavam a guarda diante da interferência e negligência deste no cuidado com seus filhos. Paralelamente a isso, as “mulheres forras” adquiriam uma autonomia de vida, exercendo diferentes atividades, ainda que, muitas vezes, a prostituição fosse, também, um “recurso” e “condição generalizante para todas as mulheres negras do Brasil”.

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Di Cavalcanti, Mulatas, serigrafia offset sobre papel – Imagem: Reprodução/livro Mulheres Subversivas

Ainda no primeiro volume de Mulheres Subversivas, Moacir Assunção traz a história de Maria Gomes de Oliveira (1911-1938), a Maria Bonita, e sua influência no meio do cangaço e do banditismo social, como “talvez a única capaz de se contrapor a Lampião”. Um artigo da professora Tucci Carneiro aborda as judias fichadas pelo Deops (Departamento de Ordem e Política Social), em São Paulo, os estereótipos associados a elas e as lacunas presentes nas ideias revolucionárias do século 18, como as difundidas pelo Iluminismo, que defendia causas nobres, mas continuava colocando a mulher num lugar inferior. Tucci retoma o longo processo de amadurecimento de conscientização das mulheres, desde o final do século 19, quando despontaram os primeiros movimentos feministas na Europa e nos Estados Unidos, “primeiramente pela luta de direitos políticos e, posteriormente, pelo acesso ao mercado de trabalho, ainda que com baixos salários”. Para a professora, Olga Benário (1908-1942), judia nascida na Alemanha, ativista da Juventude Comunista em Moscou e enviada ao Brasil para proteger o líder comunista Luiz Carlos Prestes, com quem viria a se casar, e depois extraditada, presa e assassinada num campo de concentração nazista, é o símbolo máximo da conjunção de estigmas. “A ideia é estudar o ativismo feminino e tirá-lo do limbo oficial da história, que é o limbo da memória, que se tornou público após o final da ditadura militar”, explica Tucci, em entrevista ao Jornal da USP.
 

 

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Maria Bonita em meio ao bando de Lampião – Imagem: Reprodução/livro Mulheres Subversivas

O volume 2 de Mulheres Subversivas foca mais em nomes específicos de mulheres revolucionárias, também em três seções, intituladas Modernistas Refugiadas nos Trópicos, Escritoras da Liberdade e Rebeldes em Movimento. Novamente, mulheres judias, estrangeiras e mais ou menos militantes aparecem como perseguidas, mas, desta vez, ligadas às artes. Figuras como Ruth Simis, protagonista da resistência nos teatros durante a ditadura civil-militar (1964-1985), e Charlotta Adlerová, artista expressionista alemã, ganham destaque como inspirações para outras mulheres. Charlotta, por exemplo, “não por acaso é reconhecida como uma das precursoras da propaganda brasileira e a principal responsável pela profissionalização do ofício do desenho publicitário no Brasil”, como se lê no artigo assinado por Luana Gonçalves Carvalho Fúncia.

Saindo das artes plásticas para a literatura, o volume 2 abre espaço para Patrícia Galvão, a Pagu, artista, comunista e jornalista que viajou o mundo, foi presa e torturada, mas, mesmo assim, deixou como legado, entre outras obras, o romance Parque Industrial (1933), livro tido como precursor do realismo social brasileiro, numa “deliberada intenção de chocar e quebrar tabus, revelando a hipocrisia social por trás da sexualidade”, denunciando, por meio de suas próprias subjetividades e sensibilidades, a repressão da sexualidade feminina, como escreve Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci.

O segundo volume é finalizado com artigos relacionados ao surgimento de movimentos e organizações de mulheres no século 20, associados tanto ao movimento negro quanto ao feminismo e ao anarquismo. Uma das revolucionárias citadas é a militante anarquista Isabel Cerruti (1886-1970), que criou um estilo próprio de escrita para analisar notícias e fatos do cotidiano sob a perspectiva de uma “mulher proletária, paulista e plebeia, defendendo a igualdade de gênero e a igualdade de direitos civis, além de colocar-se contra o militarismo, criticar o clero, a Igreja e os vícios da burguesia e defender o amor livre, com a condição de emancipação financeira para tal”, segundo o autor do artigo sobre a militante, Rodrigo Rosa Silva.

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Olga Benário e Pagu, duas mulheres revolucionárias do século 20 – Imagem: Reprodução/livro Mulheres Subversivas

Fora da ordem: o conceito de subversão

De uma forma ou de outra, todas as mulheres citadas na obra organizada por Maria Luiza Tucci Carneiro subverteram uma ordem existente. Ao Jornal da USP, a professora explica que o conceito de ordem e desordem utilizado em Mulheres Subversivas foi inspirado em pensadores como o historiador francês Roger Chartier, o etnólogo francês Georges Balandier (1920-2016) e o historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012), “que nos incentivam a tornar públicos aqueles anônimos da história”. Nesse sentido, a obra visa a entender que “nem sempre a desordem cria o caos”, como diz Tucci. “A desordem altera uma realidade no sentido de trazer dias melhores, de inovar, do ponto de vista de preparar a sociedade para dialogar com a diversidade.” Embora a mulher seja associada à representação do caos coletivo, a professora busca demonstrar que o que cria o caos, de fato, são “os estereótipos que alimentam os mitos machistas e suas versões racistas e discriminatórias”.

Por isso, ela crê na importância de dar voz a essas mulheres e às suas lutas, ainda que se trate de um processo lento, já que as narrativas e mesmo as fontes de informação são e foram, em sua maioria, controladas pelos homens. Tucci cita como exemplo o fato de que muitas imigrantes que trabalharam como escritoras ou operárias aparecem, nos registros oficiais, como “donas do lar” ou tendo como ocupação “prendas domésticas”, o que é, também, uma forma de apagamento. Tanto na coletânea como no projeto Travessias, que ela desenvolve no Leer, a professora quer “corrigir alguns lapsos desses arquivos, que acabam contribuindo para tornar essas mulheres personagens semi-invisíveis da história, mesmo quando é uma personagem importante das cenas históricas”.

A “desordem” a que Tucci se refere é indicada, também, nas capas dos dois volumes de Mulheres Subversivas, que têm vários de seus elementos fora da ordem tradicional. Por exemplo, o nome da organizadora aparece como “Tucci Luiza Carneiro Maria”, em vez de Maria Luiza Tucci Carneiro, enquanto títulos e subtítulos aparecem desalinhados. A questão do design e da ilustração surge com frequência na obra, que tem, ao longo de suas páginas, xilogravuras feitas por mulheres, além da presença de elementos da literatura de cordel e de obras de Lasar Segall e de Candido Portinari — também presentes nas capas e contracapas.

Ao Jornal da USP, Maria Luiza admite a intenção de lançar pelo menos mais dois volumes da coletânea. “A minha ideia é publicar artigos que mostrem a mulher no período da colonização, do século 16 ao 18, e, basicamente, voltados para as mulheres dos colonizadores nesse período. E, já adentrando o século 20, abrir um espaço para a história das mulheres operárias e ligadas às ciências exatas.”

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Mulheres Subversivas aponta para a subversão até graficamente, como explica uma das páginas do livro (acima) – Imagem: Reprodução/livro Mulheres Subversivas

Mulheres Subversivas – Dentro e Fora da Ordem, volumes 1 e 2, de Maria Luiza Tucci Carneiro (organizadora), Editora Companhia de História, R$ 220,00

A apresentação dos dois volumes de Mulheres Subversivas – Dentro e Fora da Ordem acontece neste domingo, dia 19, às 11 horas, no Museu Lasar Segall (Rua Berta, 111, Vila Mariana, em São Paulo, próximo à Estação Santa Cruz do metrô). Entrada grátis. 

Texto por Ricardo Thomé, sob supervisão de Roberto C. G. Castro

Texto original: https://jornal.usp.br/cultura/livros-revelam-as-lutas-de-mulheres-revol…