Mia Couto conta suas influências e inspirações durante evento na FFLCH

O escritor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior participou do encontro O que os livros me deram, no VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade

Por
Eliete Viana
Data de Publicação
Editoria
Rita Chaves e Mia Couto
A professora Rita Chaves, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, fez a apresentação do escritor Mia Couto - Foto Nakamura / STI-FFLCH-USP 
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O escritor Mia Couto esteve na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, na noite da terça-feira, dia 17, para participar do encontro O que os livros me deram, no VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade. A conversa foi realizada no Auditório Nicolau Sevcenko, mas devido à lotação, o público também ocupou o Auditório Milton Santos, ao lado, no qual estava passando simultaneamente o evento e que também foi transmitido ao vivo pelo canal da FFLCH no Youtube.

A fala do escritor foi intercalada com perguntas da plateia. Durante esta participação, muitas pessoas expressaram emoção em assistir Mia Couto e, no final, grande parte do público pediu para que o escritor fotografasse seus livros e também tirasse fotos. 

Conversa

A professora Rita de Cassia Natal Chaves abriu o evento ressaltando a importância do escritor para a literatura portuguesa e agradecendo a disposição dele em sempre vir participar de atividades na Faculdade.

Mia Couto começou sua fala agradecendo a professora Rita, e também Tania Macêdo – ambas da área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas – que passaram a “estudar literatura africana antes das pessoas falarem a respeito”, comentou.

Para contar O que os livros lhe deram, tema do encontro, falou de sua trajetória na literatura como leitor e escritor. Filho de escritor e de poeta, Mia Couto disse que sua ligação com os livros sempre foi íntima. Seu pai nunca precisou pedir para ele ir ler, ao contrário, dizia para ele ir brincar e viver as coisas que lia nos livros. Para ele, o escritor é relacionado ao poder, ao poder de se comunicar. E contou que, muitas vezes, é parado nas ruas e as pessoas acabam não lhe pedindo autógrafos ou fotos, mas dão sugestões de histórias para ele abordar. Pois, “só o que é convertido em história ganha a dimensão da realidade” e um dos motivos pelo qual ele acredita que muitos querem ser escritor, porque “o escritor funciona como um tradutor do mundo, um tradutor de lógicas”, afirmou.

Em relação à polarização existente na sociedade, Mia diz que é um atravessador de fronteiras. “Sou de fronteiras. Um africano que é filho de europeus, um africano branco. Um ateu em um mundo de crenças invisíveis, um escritor em um mundo de oralidade”, citou para dizer que deve-se fugir deste mundo de dualidade, onde se é isto ou aquilo, porque somos isto e também aquilo, “em uma busca de identidade, temos identidade fluída e volátil”. 

Complementando a fala, a professora Rita destacou que a própria literatura africana de língua portuguesa ultrapassa e contempla essas fronteiras. 
 

Mia Couto
Durante a conversa descontraída com o público, o escritor fez a plateia rir e se emocionar com suas histórias - Foto Nakamura / STI-FFLCH-USP  


Construção de personagens

“Não sei explicar”, respondeu a pergunta de alguém da plateia sobre como ele consegue transportar e captar seus personagens para uma história, levando o público ao riso. Depois, disse que não consegue começar primeiro pela história e sim pelos personagens, “que são vivos”. Segundo ele, não é importante saber se ele realmente viveu o que ele conta em seus livros. Então, ele aproveitou e compartilhou que está escrevendo um livro no qual conta memórias de sua adolescência, mas não quer definir o que realmente viveu ou não nesta história. “É uma coisa tão caótica [minha forma de escrever, criar minhas histórias], que não posso dizer que é programado”.

Memória

De acordo com sua visão, ser escritor moçambicano é igual a ser escritor brasileiro, “porque em ambos lugares existem esta questão de tentativa de negação da memória por uma certa elite”.

Água 

Em resposta à pergunta sobre o significado da água e do mar sempre presentes em suas obras, Mia disse que a água faz parte da vida dele, porque viveu em lugares que a maré definia as atividades e ouvia de sua mãe “cuidado com a maré, volte depois da maré”. “Outros têm uma terra natal, eu tenho uma água natal!”, brincou.

Terra sonâmbula

“O livro que me ajudou a resistir de um momento de desumanização, que vive durante a guerra, na qual perdi amigos e pensei que não fosse mais capaz de escrever foi A terra sonâmbula. Acabei o livro logo após o acordo de paz. Não é o livro que mais gosto, mas o que me deu mais trabalho e me lembro disso”, explicou sobre a obra da qual mais se lembrava, gostava. 
 

público
A participação de Mia Couto no evento atraiu alunos da FFLCH, de outras Unidades da USP e público externo também. Plateia no Auditório Nicolau Sevcenko. Devido à lotação, o público também ocupou o Auditório Milton Santos, ao lado, no qual estava passando simultaneamente o evento - Foto Nakamura / STI-FFLCH-USP

 

Brasil 

Apesar de dizer que não se sente à vontade de chegar no Brasil e falar dos problemas do País, por não querer parecer um estrangeiro que fala mal do país visitado, Mia falou que o assunto agora no Brasil não é sobre esquerda ou direita, mas sobre democracia. “Estamos solidários com esta luta, com esta resistência”. 

Pássaros 

Ele falou da sua relação com os pássaros, os quais começou a estudar quando um dia, durante uma viagem, às 4h da manhã, querendo dormir, lhe pediram para ajudar a identificar os pássaros pelos seus cantos e ele confundiu o “coaxar” de um sapo como se fosse um canto de um pássaro. Novamente, levou o público ao riso. 

Perguntado sobre sua relação com as ciências “mais duras”, as exatas, com a ficção científica. Disse que não tem nenhuma relação. “Sou biólogo, mas só me interessa a biologia como uma possibilidade de conhecer outras culturas”, informou.

Beleza nas palavras

“Como você consegue manter esta beleza nas palavras, mesmo narrando coisas tão dolorosas?”, indagou uma graduada do curso de Letras do Instituto Presbiteriano Mackenzie, que se apresentou como Mayara. “Eu valorizei a parede”, respondeu citando uma frase de um ex-presidente do Vietnã ao explicar como conseguiu sobreviver na prisão. “Fomos capazes de construir laços [juntos com outras pessoas]. Nós valorizamos o outro, o lado do outro”, referindo-se ao contexto da guerra civil em Moçambique, após a qual tiveram de sentar junto com aqueles que os matavam.

A transmissão completa do evento pode ser assistida pelo canal da FFLCH no YouTube.

Colóquio 

A vinda de Mia Couto à FFLCH integra a programação do VI Colóquio Internacional Áfricas, Literatura e Contemporaneidade, que está em sua sexta edição e tem a proposta de refletir sobre a complexidade das relações entre memória, imaginário e narrativa em contextos africanos. O colóquio faz parte de um programa maior intitulado Áfricas em Trânsito, que conta com um conjunto de atividades que foram iniciadas ainda em setembro e têm a participação de escritores africanos e a realização de minicursos sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Dentro da programação, no dia 16 de outubro, às 19h30, será a vez da Faculdade receber outro famoso escritor africano, o angolano Pepetela. Na ocasião, ele lançará e fará uma sessão de autógrafos do livro O quase fim do mundo, da Editora Kapulana. O evento acontecerá na sala 14, do edifício de Filosofia e Ciências Sociais da Faculdade. 

A programação completa e mais detalhes do colóquio podem ser vistas em: https://africasemtransito.wixsite.com/coloquio.
 

organização do evento
Mia Couto e a professora Rita Chaves entre alunos que ajudaram a organizar o evento - Foto Nakamura / STI-FFLCH-USP