Individualidade e solidão são temas do romance Justine

Livro do professor Caio Gagliardi, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, mergulha com lirismo e ironia no cotidiano restrito de um protagonista sem ambições

Por
Redação
Data de Publicação
Editoria

A Editora Patuá está lançando o livro Justine, de Caio Gagliardi, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH. 

Como se nos convidasse a uma viagem circunscrita a um pequeno apartamento, onde o narrador passa a quase totalidade de seu tempo, o universo de Justine apreende com lirismo, autoderrisão e ironia o cotidiano de um homem sem ambições. Tão invisível quanto a maioria dos homens, solitário e ranzinza, ele não se deixa aprisionar, no entanto, pelas paredes que o cercam. 

Espécie de anti-herói individualista, o narrador observa a uma distância calculada a presença inusitada de Justine, intercalando-a com a memória de antigas aventuras e de um amor ideal, ora apenas intuído, ora referido simplesmente como “você”. Em suas raras idas a um café ou em devaneios alimentados no próprio apartamento, ele se permite repintar a realidade com as pinceladas da fantasia, a crítica aos críticos, o humor desdenhoso a T. S. Eliot ou até mesmo por meio de uma aula imaginária. 

À medida que percorremos os fragmentos de impressões, anotações e pequenos eventos que compõem esta espécie de romance desenredado, Justine vai adquirindo novos contornos e uma nova importância. Uma personagem que, com graça irreverente, nos surpreende a todo instante.

O autor

Caio Gagliardi é professor de Literatura Portuguesa na FFLCH USP. Suas primeiras incursões literárias datam de meados dos anos noventa, quando publicou poemas na revista Versal e, já no início dos anos 2000, na série Salamandra, Camaleoa e Lagartixa, da qual foi co-editor, na UNICAMP. 

Como poeta, publicou ainda o livro Caroço (2021). Preparou edições com aparato crítico dos romances A cidade e as serras (2006), de Eça de Queiroz, e O Ateneu (2020), de Raul Pompeia, dos livros de poesia Mensagem (2007) e Poemas completos de Alberto Caeiro (2011), de Fernando Pessoa, e de parte fundamental de sua obra dramatúrgica, a qual intitulou Teatro do êxtase (2020). 

É autor de O renascimento do autor – autoria, heteronímia e fake memoirs (2019) e organizador do volume de ensaios críticos Fernando Pessoa & Cia. não heterônima (2019). Justine é seu primeiro livro de ficção. 

O professor disponibilizou uma seleção dos primeiros trechos da obra:

“Esta é a minha casa, não é o fim do mundo. Tem pouco conteúdo aparente. Você deve estar pensando que é uma droga de lugar, que só as baratas gostam daqui. Não é uma daquelas casas asseadas com seus jardinzinhos. Instalei-me temporariamente e fui ficando, como um peregrino que um dia se cansa de caminhar e resolve sentar-se num banco. Você não pode ver, mas entre nós, nessa pequena distância que nos separa, há muitas camadas de silêncio e a amável companhia dos remorsos. Há poucos deles, mas são presenças insistentes. Por vezes, eles passam dias à sorrelfa, como se tivessem se mudado. Quando não dou mais por sua existência, reaparecem, invadem meu sono, sobem pelas pernas e remordem como aqueles animaizinhos repugnantes dos lugares lôbregos. Você talvez possa pressentir isso, enquanto me calo. Hoje, esta sala é o mundo inteiro para mim. Lá fora, a liberdade é incerta. As paredes guardam tudo de que meu sangue precisa – mais as noites a sós, com sua música distante. Fique mais um pouco. 

Você quer saber como sou. Essa imagem lhe parece imprescindível desde já. Precisa dela antes de entrar. Isso desvia a atenção do essencial. Como todos os homens, sou feito de irregularidades, mudança, avanço, passo desigual e pontos de silêncio. Como todos os homens, sou o palco onde me represento. Se quer saber, eu devo ser um homem chegando à meia idade. Faz alguns anos, no entanto, que fiquei transparente. É difícil conceber isso? Eis-me: faz alguns anos que eu me retirei; retirei-me para trás de mim mesmo. Agora, fique à vontade.  

A menos que ouça um baque forte, não tenho por que me alarmar. Passo boa parte do tempo deitado sob as cobertas. No corredor, o velho tateia as paredes arrastando o pé como a uma vassoura. Um frio cortante vence o vidro da janela. Considero que o frio seja uma ameaça para o meu vizinho, mas abrigado no casulo morno da cama, pondero que ele terá que o enfrentar sozinho. Nada é tão improvável quanto encontrar uma ligação com as almas atrás dessas paredes.  

A feliz regularidade das experiências. Quem a conserva pode viver como um verdadeiro homem. Acordar, sentir que vale a pena lavar o rosto todas as manhãs, e lavá-lo. Tocar o rosto com as mãos molhadas como a uma realidade, caminhar até a janela, deixar que a brisa acaricie a pele, não como um sátiro, mas como um menino. E viver. Viver por viver. Sem estudo, sem cansaço ou melancolia. Sem saber por quê. Impregnado do hálito particular de cada hábito fixado. Viver é fixar. Ser para os outros. E ser, sobretudo, um. Ter ideias e um nariz. Ter vontades e um sorriso. Ter medos e um par de orelhas. Fazer-se previsível como uma planta, deixar-se ver, seguindo seu desígnio, sem olhar para si, preocupado apenas em ser planta, ou um verdadeiro homem.   

Sem avisar, Justine bateu em minha porta. Trouxe numa das mãos uma humilde garrafa de champanhe, na outra as bolinhas macias dos dedos. Seu sorriso fazia reverência às horas seguintes. Três semanas depois, Justine e eu éramos amantes há vinte e um dias.”  

O livro pode ser adquirido no site da Editora Patuá.

Com informações do autor e Editora Patuá