Nascimento de Tomás Antônio Gonzaga

Gonzaga é considerado o poeta mais lido em língua portuguesa depois de Luís Vaz de Camões

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Tomás Antônio Gonzaga
Gonzaga é autor de Marília de Dirceu, um dos grandes clássicos da literatura em língua portuguesa, cuja personagem-titulo foi tema da pesquisa de Heidi Strecker Gomes. (Arte: Pedro Fuini)

Tomás Antônio Gonzaga foi um poeta luso-brasileiro. É autor do célebre Marília de Dirceu, sua obra-prima, que é até hoje publicada e lida. É considerado o poeta mais lido em língua portuguesa depois de Luís Vaz de Camões. De acordo com Heidi Strecker Gomes, doutoranda em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e CIências Humanas (FFLCH) da USP, a produção de Gonzaga abarca gêneros diversos, passando pela lírica, com Marília de Dirceu; pela sátira, como Cartas Chilenas; e pela narrativa épica, com À Conceição. Também escreveu o Tratado do Direito Natural, ao candidatar-se a uma cátedra na Universidade de Coimbra.

A pesquisa que Gomes desenvolveu no mestrado, sob orientação do professor Jean Pierre Chauvin, abordou a centralidade da figura de Marília no conjunto de poemas Marília de Dirceu, publicado em duas partes, em 1792 e 1799. A pesquisadora notou que todas as 71 liras que integram o poema referem-se à Marília, seja de forma explícita ou implícita. “O livro seguramente é um projeto poético consistente, e não uma recolha de poemas como se pensou anteriormente”, concluiu. Ela desenvolve atualmente no doutorado uma edição crítica de Marília de Dirceu, sob orientação da professora Adma Fadul Muhana, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, especialista nas poéticas dos séculos 17 e 18. A pesquisa visa compreender as circunstâncias históricas, políticas e editoriais de publicação da obra, apresentando as alterações, acréscimos e adulterações que a obra sofreu ao longo das sucessivas edições.

Confira na íntegra a entrevista concedida por Heidi Strecker Gomes sobre Tomás Antônio Gonzaga:

 

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Tomás Antônio Gonzaga?

Heidi Strecker Gomes: Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) foi um poeta luso-brasileiro que produziu suas obras entre o fim do século 18 e o início do século 19. Foi um dos maiores expoentes das letras nesse período, ao menos no mundo ibérico, que incluía Portugal e suas colônias. Sua produção abarca gêneros diversos, em que escreveu com igual desenvoltura e talento. Na lírica, Marília de Dirceu é sua obra-prima, ainda hoje publicada e lida por um grande público. As Cartas Chilenas - que circularam como cópias apógrafas em Vila Rica entre os anos que antecederam a Conjuração Mineira - são sátiras em forma de epístolas enviadas por Critilo a seu amigo Doroteu, em que o poeta critica os desmandos da administração da Capitania das Minas exercida pelo "Fanfarrão Minésio". Além dos poemas da lírica amorosa e das sátiras, temos um tratado (Tratado do Direito Natural), que o poeta escreveu ao candidatar-se a uma cátedra na Universidade de Coimbra, e uma narrativa épica, intitulada À Conceição, que trata do naufrágio de uma nau portuguesa nas costas de Moçambique, onde o poeta viveu o exílio.

 

Serviço de Comunicação Social: O que caracteriza a escrita do autor? Quais suas principais obras?

Heidi Strecker Gomes: Gonzaga foi um poeta do seu tempo, embora tenha sido lido de forma anacrônica pela crítica posterior.  Ele serviu, por um lado, como poeta, a um projeto nacionalista do Segundo Império, que enxergava em seus versos um poeta romântico e apaixonado pela paisagem nativa. Por outro lado, como magistrado envolvido na Inconfidência Mineira, serviu politicamente aos governos populistas como um mártir da Independência, ou ao menos ideólogo injustiçado que lutou pela independência do país. Nada mais falso para um súdito de Sua Majestade, preso aos conceitos do Absolutismo Monárquico e do corpo místico do Estado, conjunto de todos os cidadãos governados pela cabeça do rei. Todas as vezes que o nacionalismo e o populismo de alguma forma se afirmam ideologicamente no Brasil, como foi o caso do Modernismo (no campo das letras) e da ditadura Vargas (no campo político), a presença de Gonzaga é invocada.

Até o século 19, as noções de autoria e de "literatura" como a concebemos hoje, não existiam. Explicando melhor, o poeta não era entendido como autor de suas obras, o indivíduo criador responsável por elas.  O "letrado" desfrutava de distinção e prestígio social, partilhando códigos estritos e concepções retóricas e poéticas com seus ouvintes e leitores. O que aconteceu com Gonzaga é um fenômeno de apropriação análogo àquele que aconteceu com Gregório de Matos, lido pela posteridade como uma voz transgressora, rebelde e crítica da sociedade. Uma recontextualização histórica possibilita reconduzir a produção desses poetas aos códigos e decoros que aplicaram a suas obras.

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua dissertação de mestrado, você estudou a figura de Marília, de Marília de Dirceu. Pode nos contar um pouco mais sobre sua pesquisa?

Heidi Strecker Gomes: Minha pesquisa estuda a centralidade da figura de Marília no conjunto de poemas que é Marília de Dirceu. Trata-se de uma obra em duas partes, publicadas pela primeira vez em 1792 e 1799, respectivamente. Cada uma contém um arranjo de liras, dispostas de forma bastante similar nas duas partes. Embora seja apenas uma pastora, moldada na tradição do gênero bucólico, em termos de figura feminina Marília rivaliza com Beatriz, de Dante, e Laura, de Petrarca. Muitos críticos quiseram decalcar a realidade ficcional das liras com elementos biográficos e psicológicos, considerando as liras em que Dirceu canta seu amor a Marília como uma crônica das relações entre um magistrado entrado em anos e uma garota filha de militares na flor da idade. Por meio de levantamentos quantitativos, descobri que de um total de 71 liras que integram o poema (partes I e II), 49 referem-se a Marília como interlocutora explícita, o que representa 69% das liras; 66 citam seu nome, ou seja, 93%. As liras que não trazem o seu nome referem-se a “bela”, “a minha bela” e “a minha amada”, epítetos que podemos assimilar à figura da pastora, o que aumenta a proporção de liras que se referem a Marília para 100%. O livro seguramente é um projeto poético consistente, e não uma recolha de poemas como se pensou anteriormente. 

 

Serviço de Comunicação Social: Pretende continuar estudando a obra de Tomás Antônio Gonzaga?

Heidi Strecker Gomes: Estou desenvolvendo como tese de doutorado uma edição crítica de Marília de Dirceu, com orientação da professora Adma Muhana, que é uma grande especialista nas poéticas dos séculos 17 e 18. Devo pesquisar em bibliotecas e acervos portugueses publicações coetâneas para compreender as circunstâncias históricas, políticas e editoriais de publicação desse poema e, ao mesmo tempo, apresentar as alterações, acréscimos e adulterações que a obra sofreu ao longo das sucessivas edições. É lugar comum afirmar que Tomás Antônio Gonzaga é, depois de Camões, o poeta mais lido em língua portuguesa.

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Heidi Strecker Gomes é doutoranda em Literatura Portuguesa e mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. É ainda bacharel em Letras (Português e Linguística) e licenciada em Letras (Português), além de bacharel e licenciada em Filosofia, todos pela FFLCH. Sua dissertação de mestrado Figura de Marília: aspectos da poética de Tomás Antônio Gonzaga está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.