Nascimento de John Locke

Locke é um dos principais filósofos liberais e fundou a teoria do conhecimento conhecida como empirismo

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

John Locke
Foi a partir da publicação de Ensaio sobre o Entendimento Humano, no qual se estabelecem as bases do Empirismo, que Locke tornou-se respeitado em seu meio intelectual e notabilizado, posteriormente, como expoente do Iluminismo, afirma Alessandra Tsuji. (Arte: Pedro Fuini)

Considerado expoente do Iluminismo, John Locke nasceu em 29 de agosto de 1632, em uma pequena vila do norte da Inglaterra. O inglês fundou o empirismo, teoria que defende a experiência como única forma de conhecimento do mundo, e foi um dos principais filósofos contratualistas - que explicam que o surgimento do Estado ocorre a partir de acordos ou contratos sociais. Por essas razões, Locke figura entre os grandes nomes da filosofia.

Dentre os principais escritos do filósofo, destaca-se Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), no qual “Locke se dispõe a mostrar de que maneira podemos conhecer, consideradas as faculdades e limitações humanas”, explica Alessandra Tsuji, doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Ao discorrer sobre a origem do conhecimento, sustenta que seu início é a sensação, que leva esse nome quando se refere aos objetos externos, e reflexão, quando diz respeito ao que é interno. Ambas, sensação e reflexão, seriam ideias simples que, ao se combinarem, originariam ideias complexas”, completa.

Locke também escreveu Dois Tratados sobre o Governo (1689-1690), no qual busca refutar o teórico político Robert Filmer (1588-1653), defensor do direito divino dos reis, e advoga pela instituição do governo civil, visando a proteção da propriedade – entendida como sinônimo de vida, saúde, liberdade e bens; e Carta sobre a Tolerância (1689), em que defende a separação entre o governo civil e a igreja, por considerar que possuem propósitos diferentes, além de pregar a tolerância entre religiões.

 

Locke vs. Hobbes

As ideias de Locke costumam ser analisadas em oposição ao pensamento de outro filósofo contratualista, Thomas Hobbes (1588-1679). Tsuji afirma que é possível encontrar aproximações entre o pensamento de ambos, mas que a oposição fica clara ao analisarmos suas concepções de estado de natureza - que é o momento no qual os seres humanos viviam antes do surgimento da sociedade. 

Locke considera que esse estado possui como regra moral a lei da natureza, que garante a liberdade individual ao impor restrições e obrigações, de forma que cada indivíduo é livre porque a igualdade em relação aos demais está preservada. “Isso se dá pelo respeito à proibição da lei natural a qualquer indivíduo de se autorizar a agir como superior em relação a outrem, via destruição, ou mesmo ameaça de destruição, de sua propriedade (desde a vida entendida como propriedade de si)”, explica a pesquisadora. O respeito à lei assegura a igualdade e a liberdade do grupo. O estado de natureza, na visão de Locke, é um estado pacífico. 

Thomas Hobbes, ao contrário, enxerga o estado de natureza como um estado de guerra de todos contra todos. Assim, cada homem tem o direito de usar seu poder em busca do que for preciso para se preservar. “Nesse sentido, a lei [da natureza] implica obstáculo à realização desse direito individual e, por essa razão, deve ser vista em oposição à liberdade e não como elemento que a constitui”, acrescenta.

Em seu mestrado, Alessandra Tsuji se debruçou sobre o Segundo Tratado Sobre o Governo para apresentar conceitos e discussões que pudessem elucidar o argumento lockiano de que o governo civil é um governo por consentimento, considerando o contexto de sua publicação. Atualmente no doutorado, a pesquisadora investiga o pensamento médico de Locke para verificar se, e em que medida, ele influenciou suas reflexões políticas.

Confira na íntegra a entrevista com Alessandra Tsuji sobre John Locke.

 

Serviço de Comunicação Social: Quem foi John Locke?

Alessandra Tsuji: Foi um filósofo inglês que viveu da terceira década do século 17 até o início do século 18. Teve seu percurso intelectual marcado tanto por conflitos motivados por disputas nos campos da religião, da política e da economia de seu país, quanto pelas transformações profundas ocorridas no âmbito científico à época. Ainda muito jovem, sofreu o impacto da guerra civil eclodida em 1642, quando seu pai, de origem puritana, ingressou no exército parlamentar para lutar contra as forças do rei Carlos I (decapitado em 1649). Vivenciou o interregno inglês e também o período da restauração da monarquia (iniciado com o retorno de Carlos II, Stuart, ao trono da Inglaterra em 1660 e finalizado com a deposição de Jaime II), que culminou na chamada Revolução Gloriosa, em 1688. Considerados os escritos lockianos, bem como os registros biográficos, parece-me possível afirmar que o filósofo foi sobretudo um observador meticuloso, além de extremamente cauto, na exposição de suas reflexões sobre pontos nevrálgicos das referidas disputas. Criticou o currículo de sua instituição de formação, Christ Church, Oxford, moldado em rígida tradição escolástica, embora o tenha seguido, desde a década de 1650 até meados da década de 1660, em paralelo com o seu interesse pelas atividades científicas, intensificadas naquela localidade sobretudo a partir da instalação, ali, do laboratório de Robert Boyle, em 1655. Já neste período, enquanto dedicava-se aos estudos que o levariam a obter o título de bacharel em medicina, Locke participou ativamente de investigações amparadas na experiência como meio de distinguir o verdadeiro do falso, realizadas por muitas das figuras que formariam, desde 1660, a Royal Society, da qual o filósofo se tornaria membro. Comentadores importantes assinalam a convivência estabelecida entre Locke e o primeiro Conde de Shaftesbury, a partir de 1666, como um ponto de inflexão na vida do filósofo. Na visão de intérpretes como Peter Laslett e John Dunn, tanto o ambiente de Londres, para onde Locke mudou-se no ano seguinte, quanto as perspectivas e interesses políticos, econômicos e filosóficos daquele homem poderoso, teriam estimulado o desenvolvimento intelectual do jovem pensador, a ponto de habilitá-lo para a produção da obra robusta que viria a inserir John Locke na lista dos principais nomes da filosofia moderna.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais foram as principais obras e ideias desenvolvidas por ele?

Alessandra Tsuji: Locke escreveu muito ao longo de toda a vida, porém publicou tardiamente. Entre os títulos mais conhecidos, é possível destacar o Ensaio sobre o Entendimento Humano, os Dois Tratados sobre o Governo e a Carta sobre a Tolerância. Dos três, o mais celebrado é o Ensaio, publicado pela primeira vez em 1690, embora os esboços dos conceitos explicitados neste escrito tenham sido feitos cerca de duas décadas antes. Foi a partir dessa publicação, na qual se estabelecem as bases do Empirismo, que o pensador tornou-se respeitado em seu meio intelectual e notabilizado, posteriormente, como expoente do Iluminismo. Opondo-se ao inatismo, Locke se dispõe a mostrar de que maneira podemos conhecer, consideradas as faculdades e limitações humanas. Ao discorrer sobre a origem do conhecimento, sustenta que seu início é a sensação, que leva esse nome quando se refere aos objetos externos, e reflexão, quando diz respeito ao que é interno. Ambas, sensação e reflexão, seriam ideias simples que, ao se combinarem, originariam ideias complexas. Deste ponto de partida, muito mais pode ser encontrado naquele texto, como por exemplo: as dificuldades implicadas na apreensão da relação entre ideias, sobretudo quando consideramos o caráter demonstrativo que Locke confere ao conhecimento da existência de Deus; o emprego do método simples e histórico ao longo do Ensaio como um todo; as implicações de sua ética etc. Quanto aos Dois Tratados (1689/90), podemos dizer, de maneira bastante concisa, que o Primeiro busca refutar o argumento, outrora sustentado por Robert Filmer (1588-1653), de que o poder político identifica-se com o poder patriarcal e deve ser exercido, por direito, pelo herdeiro direto de Adão, primeiro homem criado e com autoridade recebida do próprio Deus para governar os demais. A refutação de Locke a essa visão patriarcalista ampara-se sobretudo na exegese bíblica. Já no Segundo Tratado, considerando que ele já havia desmontado o argumento filmeriano, o filósofo busca mostrar a quem cabe, então, o poder político. Ao considerar os seres humanos nascidos livres e iguais, Locke recorre à noção de estado de natureza para tratar do poder político em gérmen, e o situa nas mãos de cada indivíduo como sendo o poder de punir as violações à lei de natureza. Este conceito pode ser entendido como o regulamento moral, estabelecido por Deus para ordenar a vida entre os homens na sociedade pré-política, visando à preservação da propriedade (aqui entendida como sinônimo de vida, saúde, liberdade e bens). Dada a demanda por interpretação individual desta lei, e a ausência de um juiz comum sobre a Terra, o risco da humanidade entrar em estado de guerra é muito grande, por isso a necessidade do governo civil. Este é formado, segundo Locke, dentro de uma sociedade civil previamente pactuada para o estabelecimento de leis comuns, escritas, que possam garantir a preservação da propriedade. Trata-se, desse modo, de governo instituído pelo consentimento de homens livres e iguais, no qual a lei deverá ter primazia e sua violação implica injúria a ser reparada. Daí a adesão lockiana à corrente defensora do direito de resistência à tirania, ou seja, a adesão a uma posição contrária àqueles que defendem o exercício do poder absoluto (sobre a propriedade, inclusive a vida, de outrem) e arbitrário (que admite um ou mais homens acima das leis, ou mesmo contra as leis). A Carta sobre a Tolerância (1689), cuja leitura é fortemente recomendável em nossos dias, assinala a distinção entre poder político e poder eclesiástico para defender a separação entre a autoridade civil e a da igreja, uma vez que os propósitos de ambas são diferentes (a primeira referindo-se aos cuidados da alma e sua salvação, enquanto a segunda se volta para os cuidados dos interesses civis). Nesse escrito, Locke assinala também a relação entre as duas esferas e defende a tolerância entre as religiões, bem como proteção estatal contra atos de intolerância, na condição de que as igrejas e seus fiéis não interfiram na jurisdição pertinente ao governo civil. Além dessas publicações, parece-me importante ressaltar que a obra lockiana abarca outros campos, entre eles a economia, a educação e a medicina.

 

Serviço de Comunicação Social: É comum vermos o pensamento de Locke sendo analisado em oposição ao de Thomas Hobbes e vice-versa. No que eles se diferem?

Alessandra Tsuji: Essa pergunta pede uma resposta bastante complexa, pois a comparação entre os dois permite-nos ora afastá-los, ora aproximá-los, a depender dos métodos interpretativos empregados na leitura de ambas, bem como dos escritos submetidos à comparação. No que se refere à política, por exemplo, em geral os comentadores tendem atualmente a ver a produção do jovem Locke mais próxima do pensamento hobbesiano, enquanto seu principal texto de maturidade, os Dois Tratados, tem sido interpretado de maneira a distanciar os dois filósofos. Um recorte que possibilite um exemplo de oposição, a fim de lhes oferecer alguma resposta a essa pergunta, pode ser extraído da concepção de estado de natureza. Para Locke, este estado possui uma regra moral, a lei de natureza, que o governa e efetiva a liberdade individual, ao impor restrições e obrigações. Vivendo naquela condição, cada indivíduo, segundo Locke, é livre na medida em que a igualdade em relação aos demais está preservada. Isso se dá pelo respeito à proibição da lei natural a qualquer indivíduo de se autorizar a agir como superior em relação a outrem, via destruição, ou mesmo ameaça de destruição, de sua propriedade (desde a vida entendida como propriedade de si). A violação dessa lei compromete a liberdade tanto daquele que sofre a injúria, quanto de todo o grupo. Por outro lado, enquanto há o respeito à lei, a igualdade está assegurada, assim como a liberdade, seu par indissociável. Dado esse equilíbrio, o estado de natureza, na visão lockiana, é um estado pacífico. Na visão de Hobbes, ao contrário, não há uma moral vigente no estado de natureza. Este é concebido como estado de guerra de todos contra todos, no qual cada homem tem o direito ao uso de seu poder para se preservar (estendido a tudo de que ele possa fazer uso para efetivar essa preservação, inclusive os corpos de outros homens). Nesse sentido, a lei implica obstáculo à realização desse direito individual e, por essa razão, deve ser vista em oposição à liberdade e não como elemento que a constitui.

 

Serviço de Comunicação Social: Sua dissertação de mestrado tratou do governo civil de acordo com o Segundo Tratado Sobre o Governo de John Locke. Você pode nos contar um pouco mais a respeito de sua pesquisa

Alessandra Tsuji: Na minha dissertação procurei apresentar os conceitos e discussões mais relevantes que pudessem clarificar o argumento lockiano de que o governo civil é um governo por consentimento, a considerar o contexto no qual o Segundo Tratado foi escrito. Este contexto tem importância na medida em que nos revela contra quem Locke se posicionou e isso contribui muito para a compreensão da escolha de seus passos argumentativos. Atualmente, devido sobretudo ao trabalho de Peter Laslett, historiador de Cambridge, é amplamente aceito que esse importante texto de Locke, publicado em 1690, tinha sido escrito cerca de 10 anos antes da data de sua publicação, para refutar o Patriarcha, ou O Poder Natural dos Reis, de Robert Filmer, publicado postumamente em 1680, e escrito por volta de 1628-1630. Esse texto de Filmer (autor que já estava morto desde 1653) foi usado pelos defensores do poder real por direito divino, no momento da chamada crise da exclusão, como aparato teórico em favor da supremacia do rei e contra os anseios do Parlamento. O poder do monarca era, para Filmer, um poder patriarcal, nos moldes dos patriarcas bíblicos. Isso pode parecer estranho para nós, vivendo no século 21, mas, na época, a ideia de que agrupamentos divinamente ordenados por natureza, como a família, era a base para se pensar os problemas políticos. O meu interesse foi sobretudo apreender e expor os passos realizados por Locke, bem como os conceitos mobilizados pelo nosso filósofo, na construção de seu argumento em favor de que os governos são estabelecidos por homens livres e iguais, via consentimento individual. Ao longo do meu percurso, muitas outras questões surgiram e me orientaram para interrogar sobre o procedimento adotado por Locke na escrita de sua filosofia política, mormente a noção de que, em termos lockianos, o governo civil seria um remédio para os inconvenientes do estado de natureza. Atualmente, no doutorado, interessa-me investigar o pensamento médico de Locke para verificar se, e em que medida, ele teve um papel nas suas reflexões políticas.

Alessandra Tsuji é doutoranda e mestre em Filosofia (2017) pela FFLCH, pela qual também é bacharel e licenciada em Filosofia (2010). Sua dissertação de mestrado, O governo civil no 'Segundo Tratado Sobre o Governo' de John Locke, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.