30 anos do Massacre do Carandiru

Ao menos 111 detentos foram assassinados por policiais militares, na rede prisional do Carandiru

Por
Alice Elias
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30 anos do Massacre do Carandiru
"A ideia de 'prisão modelo' foi se dissolvendo e substituída por representações de grande violência, abandono, precariedade e violações", afirma Gustavo Higa. (Arte: Alice Elias)

 

Há exatos 30 anos, em 2 de outubro de 1992, o complexo penitenciário do Carandiru foi cenário de uma das maiores chacinas do país, conhecida como Massacre do Carandiru. Ao menos 111 detentos foram assassinados por policiais militares em uma ação de contenção de rebelião na rede prisional do bairro Carandiru, na zona norte de São Paulo. A violenta ação policial foi e ainda é muito questionada, pois gerou inúmeras vítimas: mortos, feridos, sobreviventes e familiares.

Inaugurado em 1920 como Penitenciária do Estado, o complexo do Carandiru foi apresentado e reconhecido internacionalmente como uma prisão modelo, disciplinar e alinhada aos interesses políticos de modernização da cidade. Em menos de vinte anos, a idealizada “prisão modelo” se distanciou de sua proposta inicial e se tornou o local de problemas como falta de manutenção, deterioração, superlotação e violência.

“As rebeliões são situações extremas, resultantes do acúmulo de muitos outros problemas cotidianos, também em nível material, como água contaminada, comida azeda, falta de cobertor, falta de colchão, problemas de esgoto e higiene, por exemplo. É como se os Massacres fossem aplicados de pouco em pouco, até seu estopim”, explica Gustavo Higa, doutorando em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.

O episódio evidenciou a violência da polícia militar e gerou grande repercussão: organizações da sociedade civil denunciaram o Estado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que se comprometeu em responsabilizar legalmente os envolvidos, incentivar políticas para evitar futuros massacres e reparar danos às vítimas e familiares. Contudo, o Massacre do Carandiru não significou um marco de mudança e, trinta anos depois, poucas medidas foram adotadas em relação às condições precárias do sistema prisional, ou mesmo a sensibilização do debate público para a importância dos Direitos Humanos dos custodiados pela justiça. “Lembrar tal data é imprescindível para a construção da memória da violência nas prisões no país e um alerta para os desafios ainda presentes na consolidação dos Direitos Humanos no Brasil”, afirma Gustavo Higa.

Apuração, julgamento e responsabilização

Nunca foi esclarecido publicamente quem deu a ordem para a invasão que resultou no massacre. O coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação, foi processado e condenado por júri popular em 2001. Cinco anos depois, a câmara especial do Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a sentença, o que causou indignação popular. O processo não avançou, pois Ubiratan Guimarães foi assassinado no mesmo ano.

Entre 2013 e 2014, foram julgados e condenados 74 policiais militares envolvidos, mas as condenações foram anuladas em 2016 pelos desembargadores da 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, argumentando que seriam “manifestamente contrárias à prova dos autos”. Segundo Gustavo Higa, muitas autoridades do Estado não reconhecem o episódio como um massacre, mas sim uma ação legítima da polícia para conter a rebelião. Há também aqueles que responsabilizam as vítimas, alegando que o massacre foi merecido por serem “bandidos”.

De acordo com o levantamento feito pelo Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, a reparação às vítimas sobreviventes e familiares dos mortos teve pouco progresso. “Mesmo nos casos em que o Estado foi determinado ao pagamento, os envolvidos enfrentaram dificuldades para receber a indenização, pois entraram na fila dos precatórios”, explica Gustavo Higa. Confira a entrevista com o pesquisador na íntegra:

Serviço de Comunicação Social: O complexo penitenciário do Carandiru foi projetado e reconhecido internacionalmente como um presídio modelo. Como ocorreu a transição de presídio modelo para cenário de um dos maiores massacres do país?

Gustavo Higa: A Penitenciária do Estado foi inaugurada em 21 de abril de 1920, no bairro Carandiru, zona norte de São Paulo. O complexo que seria ali construído, com o tempo ficou popularmente conhecido como Carandiru, devido à localização. 

Na época, havia uma ideia de progresso em São Paulo, com diversos projetos políticos e arquitetônicos visando, ainda que de forma idealizada, modernizar a cidade. O projeto da penitenciária estava nesse horizonte e se apresentou como criativo, funcional, disciplinar, racional e científico.  No início, havia capacidade para 1200 internos e a instituição era também chamada de Casa de Regeneração, reconhecida internacionalmente como um modelo, servindo inclusive de cartão postal da cidade.

Apesar do otimismo, em menos de vinte anos houve divergência entre a proposta de “recuperação” e a sua efetivação. Entre os diversos problemas que apareciam, destaco dois imediatos: por um lado, a ausência de manutenção, que permitiu o avanço da deterioração da estrutura como um todo, das instalações, das celas e das oficinas. Por outro lado, intensificando todos os problemas, a tradicional superlotação.
Procurando eliminar esses desafios, o governo construiu outras unidades no local, como o Presídio de Mulheres, o Centro de Observação Criminológica, o Presídio da Polícia Civil e a Casa de Detenção, esta última visando ampliar as instalações para receber presos novos e transferidos. A construção da Casa de Detenção começou no início dos anos 1950. A ideia de “prisão modelo” foi se dissolvendo e substituída por representações de grande violência, abandono, precariedade e violações. Em 2002, começou o processo de desativação da Casa de Detenção, com a transferência dos custodiados, demolição de parte dos prédios e redefinições de uso para as estruturas remanescentes. No entorno, foram construídos o Parque da Juventude, instituições de ensino e o Museu Penitenciário Paulista.

Serviço de Comunicação Social: Quais são os principais desafios do sistema prisional no Brasil? Em sua análise, os desafios enfrentados há 30 anos se mantêm atuais?

Gustavo Higa: Apesar de o Massacre do Carandiru ter deixado uma profunda marca na história, a violência é permanente na rede prisional brasileira, onde a tortura se apresenta em vários níveis. Se levarmos em conta os episódios desde 2017, o país já registrou mais de cinco grandes rebeliões, somando mais de duzentas mortes. As rebeliões são situações extremas, resultantes do acúmulo de muitos outros problemas cotidianos, também em nível material, como água contaminada, comida azeda, falta de cobertor, falta de colchão, problemas de esgoto e higiene, por exemplo. É como se os Massacres fossem aplicados de pouco em pouco, até seu estopim.

É importante destacar que os problemas da prisão começaram antes dela própria.

Um fator importantíssimo para levarmos em conta é a colossal desigualdade que existe no país. A análise sociológica nos permite avaliar, na história, os processos que contribuíram para a consolidação de desigualdades em suas mais diversas incidências, desde a época colonial e os modos de dominação, com destaque para o latifúndio, o longo sistema escravista, o acentuado patrimonialismo e a alta concentração de renda. A violência é inclusive uma das formas pelas quais as desigualdades se acentuam em nossa sociedade. Ainda que tais significados, em alguma medida, tenham se transformado ao longo do tempo, podemos sim nos remeter a essas raízes, pois elas ainda se fazem presentes, isto é, elas se atualizam, sobretudo por meio de atores que agem sistematicamente para esse fim, de forma explícita ou velada. Quero dizer que essas práticas autoritárias que nos assombram não se sustentam e se reproduzem sozinhas.

Com a história em mente, não é difícil perceber que os problemas da prisão começam muito antes dela, tendo início na estrutura social, na seletividade de todo o sistema de justiça criminal, no processo penal e na atuação das polícias. As desigualdades também se refletem nas formas como a violência policial opera no corpo e na subjetividade nas pessoas. É irrefutável que a população pobre, negra e que habita nas periferias são mais suscetíveis a serem alvo de ações violentas por parte das polícias. Não é difícil encontrar dados sobre isso. Portanto, os presídios, ainda em sua fase de planejamento e construção, já nascem superlotados.

Serviço de Comunicação Social: A repercussão do Massacre do Carandiru resultou em mudanças ou questionamentos sobre as condições precárias do sistema prisional? Quais medidas o Estado deveria adotar para garantir melhores condições e minimizar a violência?

Gustavo Higa: Infelizmente, o Massacre do Carandiru não significou um marco de mudança, nem em relação às condições precárias do sistema prisional, nem para a sensibilização do debate público para a importância do tratamento digno aos custodiados pela justiça.

Como devemos lidar com esse desafio? Inquestionavelmente com Democracia e Direitos Humanos.

Apesar de não existir uma receita para lidar com todos esses problemas, podemos analisar o que não está funcionando e ponderar novos rumos, partindo de experiências como o Carandiru. Estamos falhando em garantir os requisitos mínimos para a custódia das pessoas sob pena privativa de liberdade, e isso diz muito sobre a nossa própria sociedade. Enquanto a violência for uma bandeira política, que enfatiza as arbitrariedades e graves violações de Direitos Humanos, o quadro só irá piorar.

Em geral, as políticas de segurança pública não ponderam outro caminho que não o uso ostensivo da força e intensificação do encarceramento, cujo alvo é a camada mais pobre da população. É muito difícil efetivar esses pontos, principalmente por conta de nossa robusta tradição autoritária, elitista, hierárquica e que, novamente, enfatiza o protagonismo do uso da violência para a resolução de conflitos. Como evidência disso, hoje, em 2022, basta analisarmos o discurso do atual governo, cujo projeto potencializa os problemas mencionados anteriormente.

Gustavo Higa é sociólogo, mestre em Sociologia pela FFLCH e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma instituição. Pesquisador do NEV, tem experiência na área da Sociologia da Violência, atuando principalmente nos seguintes temas: punição, direitos humanos, autoritarismo e pânicos morais.