Nascimento de Vinicius de Moraes

Um dos nomes mais importantes no Brasil do século 20, Vinicius de Moraes foi músico e poeta

Por
Alice Elias
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Nascimento de Vinicius de Moraes
Segundo o professor Ariovaldo Vidal, "a ideia de parceria para Vinicius era uma atitude diante da vida; (...) a vida para Vinicius era sinônimo de parceria". (Arte: Alice Elias)

 

Em 19 de outubro de 1913, nasceu Vinicius  de Moraes, renomado poeta e músico brasileiro. Autor de Forma e Exegese, Soneto de Fidelidade, O Caminho Para a Distância e outras obras, escreveu poemas, sonetos, crônicas e poesias dramáticas. Como compositor, foi um dos músicos mais importantes no Brasil do século 20, autor de canções como Garota de Ipanema (com Tom Jobim), Tarde em Itapuã, e Aquarela.

Poeta do texto e da canção, a poesia de Vinicius se relaciona às suas composições musicais – temas como erotismo, paixão e o amor cortês na vida cotidiana se harmonizam com o movimento criativo que foi a bossa nova. Na Literatura, participou de um momento decisivo da lírica moderna brasileira, em que os poetas transformaram técnicas modernistas em uma dicção mais grave, de maior intensidade, amplitude e seriedade.

No livro Antologia Poética, Vinicius distingue sua trajetória literária em dois períodos, separados por um momento de transição. No primeiro, a formação católica e conservadora do poeta se manifesta na luta contra a obsessão do desejo, e o resultado “é uma poesia que procura superar essas tensões por um movimento transcendente, em versos solenes à feição dos versos de Schmidt, com um vocabulário de expressões elevadas e misteriosas, buscando ‘a música das almas’, ‘a essência’, encontrando ‘respostas em face de Deus’”, explica Ariovaldo Vidal, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Já o segundo consuma a imagem e o estilo de Vinicius como poeta versátil e brasileiríssimo, uma vez que se desenvolveu em gêneros distintos, além de incorporar traços de nossa cultura em sua poesia. Confira a entrevista com o professor Ariovaldo, sobre o poeta que “deixa o legado de uma obra, a seu modo, vivida intensamente''.

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Vinicius de Moraes?

Ariovaldo Vidal: Talvez mais do que para qualquer outra figura, vale para Vinicius de Moraes o lugar-comum de que o autor prescinde de apresentação. De fato, não há quem não conheça Vinicius de Moraes, por conta de duas atividades artísticas que marcaram decisivamente sua imagem – a música e a literatura –, sendo que nas duas ele conseguiu o feito extraordinário de se tornar imensamente popular. Como poeta da canção, cantor e compositor, tornou-se uma das figuras mais importantes do nosso cancioneiro no século 20, participando de forma decisiva de um dos movimentos mais criativos da música brasileira – a bossa nova –, ao lado de figuras como Tom Jobim, João Gilberto, Nara Leão, Carlos Lyra e outros mais. Um movimento que fazia uma música reduzida ao mínimo – um banquinho e um violão, uma nota só –, tão suave quanto o barquinho deslizando no azul do mar, enquanto a tardinha cai, leve como a brisa, pondo uma saudade na gente... E a poesia de Vinicius caía como luva para essa nova bossa, pois falava do erotismo e da paixão, tão festejados em sua obra, numa atitude e linguagem do amor cortês, elegante, posto no âmbito da vida cotidiana.

Mas sua obra nessa área vem de antes e vive até muito depois da bossa nova; basta mencionar o elenco extraordinário de parceiros que teve durante a vida, como os lendários Ary Barroso e Pixinguinha, os citados Tom Jobim e Carlos Lyra, além de Adoniran Barbosa, Antônio Maria, Baden Powell, Edu Lobo, Jards Macalé, Chico Buarque, Toquinho e vários outros. Na verdade, a ideia de parceria para Vinicius era uma atitude diante da vida; haja vista a parceria dele com o grande amigo e cronista Antônio Maria, em que um colocava o nome do outro na autoria, mesmo que não fosse fato, pois os unia uma amizade profunda. A vida para Vinicius era sinônimo de parceria.

Quanto às canções, bastaria ter feito Garota de Ipanema (com Tom Jobim) para escrever seu nome decisivamente em nossa cultura, canção que se espalhou pelo mundo todo; mas fez também outras belas canções com os parceiros mencionados e outros, ou mesmo sozinho: Chega de saudade, Estrada branca, Marcha de quarta-feira de cinzas, Minha namorada, Samba de Orly, Samba em prelúdio, Eu sei que vou te amar, Eu não existo sem você, Carta ao Tom, Berimbau, Canto de Ossanha, Tarde em Itapuã, As cores de abril, Aquarela, Como é duro trabalhar e muitas outras, sem contar que fez canções para novelas, peças e filmes; fez inclusive, com Carlinhos Lyra em 1963, o hino da União Nacional dos Estudantes, a UNE. Num dos famosos festivais da canção dos anos 60, ficou com o primeiro e segundo lugares (no primeiro, Arrastão, parceria com Edu Lobo e cantada por Elis Regina).

Na década de 50, havia escrito o importante poema O Operário em Construção, que mais tarde, nas históricas greves do ABC no final dos anos 70, seria lido por ele durante uma missa a pedido dos próprios metalúrgicos e a convite de Lula. Atingido pela ditadura militar, foi cassado pelo AI-5, sendo aposentado compulsoriamente de suas funções diplomáticas, injustiça reparada em 2010 com uma lei assinada pelo então presidente Lula, como consequência de uma iniciativa popular. Sua peça de teatro Orfeu da Conceição virou filme nas mãos do cineasta francês Marcel Camus – Orfeu do Carnaval (no original, Orfeu Negro) –, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, Globo de Ouro e Oscar nos Estados Unidos (mas Vinicius não gostou da adaptação). Por fim, resta dizer que foi diplomata a vida toda, e gostava muito de uísque, sobre o qual teria dito: “O uísque é o melhor amigo do homem; o uísque é o cachorro engarrafado”; e claro, teve inúmeros casos com mulheres e vários casamentos.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Vinicius de Moraes?

Ariovaldo Vidal: Com referência propriamente a sua obra poética, Vinicius participaria de um momento decisivo da lírica moderna brasileira, que foi a fase iniciada na década de 30, quando os procedimentos do modernismo de 22 já estavam à disposição para os novos poetas, mas poetas – e Drummond à frente de todos – que lançaram mão de uma dicção mais grave, dando uma intensidade maior e mais ampla à experiência do dia a dia, tornando a poesia bem mais séria em mais de um sentido. E por essa época, a poesia de Vinicius de Moraes era séria além da conta, influenciada pelo poeta católico Augusto Frederico Schmidt, cultivando um verso de inspiração bíblica, também influenciado pelo escritor, guia e amigo Otávio de Faria. Essa poesia dos primeiros anos corresponde aos livros O Caminho Para a Distância, Forma e Exegese, e ao poema publicado em separata Ariana, a mulher.

Ao publicar sua Antologia Poética em 1954, Vinicius coloca na abertura uma Advertência em que explica a composição do livro, já ali um balanço de sua trajetória, com “dois períodos distintos” de sua poesia, havendo entre eles um “período de transição”, sem ser possível neste espaço detalhar muito cada fase. Mas o próprio autor as define, dizendo que a primeira é “transcendental, frequentemente mística, resultante de sua fase cristã”; quanto à segunda, “estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo material, com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos”. E ao terminar a “advertência”, reitera essa oposição, dizendo que o livro daria “uma impressão verídica do que foi a luta mantida pelo A. contra si mesmo no sentido de uma libertação, hoje alcançada, dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação”.

Desde já é preciso afastar a ideia de que essas fases sejam monolíticas, sem qualquer transfusão entre elas; não é assim para Vinicius, nem para qualquer outro autor. Temas e valores de uma já estão ou estarão na outra, mas certamente de modo alterado e com peso diverso; no caso de nosso poeta, de modo e com peso bastante alterados.

Com referência ao primeiro período, Vinicius achava-se cerceado por uma formação católica conservadora e reacionária, lutando contra a obsessão do desejo. O resultado é uma poesia que procura superar essas tensões por um movimento transcendente, em versos solenes à feição dos versos de Schmidt, com um vocabulário de expressões elevadas e misteriosas, buscando “a música das almas”, “a essência”, encontrando “respostas em face de Deus”, vendo chegar “a Legião dos Úrias”, “a espantosa encantação dos eclipses e das esfinges”, “a mulher única”, a “mulher de leite” que carrega “as lívidas glândulas do amor acima do sexo infinito” (!), “a branca Amada salva das águas e a quem fora prometido o trono do mundo”, e por aí vai...

Não que não haja sexo nesse primeiro momento da obra; ao contrário, em muitos poemas aparece explicitamente a cena sexual, o corpo da mulher, mas sempre de maneira tortuosa, culpada, interdita, se não repulsiva. Nesse sentido, um poema como Ilha do Governador – do livro Forma e Exegese – se destaca do conjunto, em que a culpa aparece associada ao Outro de classe – os pescadores pobres –, amigos esquecidos pelo jovem e bem-posto leitor de Dumas, mas cuja lembrança insiste em visitá-lo involuntariamente, junto com a lembrança constante das primeiras moças abandonadas, num quadro já prosaico e poético, em que o lamento do Eu é expressão também da injustiça de classe.

Quanto ao período posterior e que vai consumar a imagem e estilo do poeta, poderíamos resumir em duas palavras esse processo: com referência à forma, Vinicius se tornará um poeta versátil; com referência aos temas, um poeta brasileiríssimo. Versátil, a começar dos gêneros vários que cultiva, destacando-se dois deles, o soneto e a balada; brasileiríssimo – termo sempre propício à problematização –, simplesmente porque vai incorporar traços decisivos de nossa cultura e nossa vida social em sua poesia, fazendo dela também uma forma de crônica de nossas belezas e mazelas.

Como sonetista, Vinicius mostrava ser leitor da melhor tradição do gênero e cultivá-lo com a consciência do ofício, ainda que às vezes seu soneto tenha algo de engomado, mas conseguindo também uma simplicidade e destreza capaz de criar peças antológicas do gênero em nossa poesia, caso dos conhecidos Soneto de Fidelidade, Soneto de Separação, Soneto de Véspera, O Verbo no Infinito – que Drummond disse resumir sua obra e figura –, Bilhete a Baudelaire, Ária Para Assovio, Máscara Mortuária de Graciliano Ramos, Poética I e II, O Anjo das Pernas Tortas, dedicado ao grande jogador Garrincha, do Botafogo, seu time de coração. Isso para citar apenas alguns de diferentes temas e diferentes metros, que falam daquela versatilidade.

Quanto à balada, era um gênero em que o lápis de Vinicius parecia encontrar seu melhor traçado, sentindo-se à vontade para criar algumas das mais belas baladas de nossa literatura. Talvez porque a balada lhe proporcionasse (ou exigisse) a vivacidade do verso curto, que ele cultivava tão bem como demonstram, inclusive, alguns sonetos “de manga curta”. A vivacidade do verso em redondilha da balada vinha numa sonoridade e ritmo muito expressivos, quase de efeito encantatório e, ao mesmo tempo, pelo caráter narrativo da balada, deixando-o livre para a expansão da matéria. Poderíamos dizer que a balada canalizava essa matéria que poderia se perder em versos prosaicos e extensos, dando a ela muito vigor. Afora isso, Vinicius soube tomar a tradição inglesa da balada e abrasileirá-la de maneira muito própria.

Isso aparece, por exemplo, na Balada do Morto Vivo, em que ele parodia e já aclimata a tradição aos trópicos; e depois continua com algumas baladas admiráveis, como a conhecida Balada da Moça do Miramar; Balada da Praia do Vidigal, num belo cruzamento do erotismo com os elementos marinhos, e que trai a leitura do romance A Casada Infiel, de Garcia Lorca; Balada Negra, lembrança intensamente terna da figura do pai; Balada das Duas Mocinhas de Botafogo, além de outros poemas narrativos com origem na balada, como A Morte de Madrugada, falando do assassinato cruel de Garcia Lorca pelos franquistas; O Operário em Construção, poema que consumiu três anos de elaboração, fruto da consciência política que ele incorporaria a sua obra. Afora esses casos, é preciso mencionar uma outra tradição da balada, na linha de François Villon, feita do enaltecimento ou lamento da figura, mesmo que degradada, como as conhecidas Balada das Meninas de Bicicleta, Balada das Arquivistas, Balada do Mangue, Balada dos Mortos dos Campos de Concentração, entre outras, e que mantêm as qualidades do primeiro tipo, criando peças muito fortes como a última mencionada.

Para encerrar, quero fazer ao menos uma distinção entre os demais poemas que Vinicius cultivou, muitos deles trazendo um vínculo formal ou temático com a tradição – elegia, ode, epitalâmio, canção etc. São poemas que oscilam entre dois extremos herdados do modernismo: de um lado, o poema ligeiro e com ar brincalhão, de versos curtos, mas carregados de ternura, como o poemeto feito a Portinari por ocasião de sua morte, e que começa com os versos: “Lá vai Candinho!/ Pra onde ele vai?/ Vai pra Brodovski/ Buscar seu pai.”. No limite, essa vertente tão forte de sua obra se aproxima ou se transforma numa poesia propriamente infantil, como nos poemas de A Arca de Noé, sempre atento aos dramas do mundo adulto; nesse sentido, vejamos estes versos do poema “A porta”, do citado livro infantil: “Eu abro devagarinho/ Pra passar o menininho/ Eu abro bem com cuidado/ Pra passar o namorado/ Eu abro bem prazenteira/ Pra passar a cozinheira/ Eu abro de supetão/ Pra passar o capitão.” Vinicius não deixa de ter um olhar atento à condição social, pois a porta fala da doçura da criança, do segredo dos namorados, dos prazeres (vindos) da cozinheira, e da truculência do “capitão” (verso atualíssimo!).

No outro extremo, estão poemas quase sempre em versos livres com uma certa dicção nerudiana, como o Mensagem à Poesia, em que fala do compromisso social do poeta; as canções do exílio Pátria Minha, Poema de Auteil; as elegias A Manhã do Morto, Elegia na Morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, Poeta e Cidadão, Mensagem a Rubem Braga. São muitos deles, para além dos citados, poemas pungentes, de um fôlego maior, dotados de muita paixão, como tudo que Vinicius fez. Restaria dizer ainda alguma palavra sobre sua poesia dramática (por exemplo, Orfeu da Conceição, peça encenada somente com atores negros), sobre a crônica, sobre a produção crítica, faces todas de uma obra que tem muito a oferecer a novos leitores e pesquisadores.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Ariovaldo Vidal: De certo modo, a resposta a essa pergunta está contida nas respostas anteriores. Mas cabe dizer que em se tratando de Vinicius de Moraes, uma questão crítica que fica depois dessa variedade toda mencionada é que a intensidade de paixão pode pesar negativamente se o verso não vier acompanhado de uma intensidade poética que, diga-se de passagem, pode se traduzir de muitas formas. Pode pesar negativamente seja pelo prosaísmo que não se traduz em lirismo, seja, ao contrário, pelo excesso que também não consegue dar a força do lirismo, mesmo com o acúmulo de metáforas e imagens, e isso independente de qual seja a forma do poema. Mas sem dúvida alguma, a despeito dos desníveis que sua poesia possa ter – na verdade, todas têm em algum nível – ele deixou uma obra que o coloca entre os grandes poetas brasileiros. Talvez ainda fale aos leitores de hoje, pois seus livros têm conhecido novas edições e muito bem produzidas. Mas, mais do que algumas qualidades que poderiam ser mencionadas como herança de sua poesia – o trabalho expressivo com a sonoridade do verso, com o ritmo, com a imagem, por exemplo –, o que ele deixa mesmo é o legado de uma obra, a seu modo, vivida intensamente.

Ariovaldo José Vidal é mestre em Literatura Brasileira e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH. Professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da mesma instituição desde 1989, publicou os livros Roteiro Para um Narrador (Ateliê Editorial, 2000); Leniza & Elis (Ateliê Editorial, 2002, em parceria); e Atando as Pontas da Vida (Ateliê Editorial, 2020). Trabalha com a prosa brasileira moderna, a poesia brasileira do mesmo período, bem como com as relações entre literatura e cinema, procurando compreender a poética do autor em suas implicações com a tradição literária e a matéria social.