Considerado um dos maiores escritores da literatura mundial, Fiódor Dostoiévski nasceu em 11 de novembro de 1821, na Rússia. Um dos escritores mais lidos no mundo até os dias atuais, é autor de romances como O Duplo, Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo, sendo este último o responsável pela sua posição de grande destaque nos meios literários.
Os temas e técnicas empregadas por Dostoiévski em seus romances permanecem atuais, e repercutem na obra de outros autores, diretores teatrais e cineastas ao redor do mundo. Dostoiévski é uma referência de grande impacto na literatura, inclusive seu romance Memórias do Subsolo é considerado a primeira obra da literatura existencialista.
Preocupado em retratar o seu tempo, o escritor russo retrata, em sua obra, aspectos do momento histórico e do espaço geográfico em que nasceu. No entanto, também atingiu uma dimensão universal, uma vez que coloca o leitor diante de situações e comportamentos que fazem parte de sua existência.
Conversamos com Fátima Bianchi, professora de Língua e Literatura Russa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre o legado do autor que “transcende todas as regras literárias estabelecidas”. Confira:
Serviço de Comunicação Social: Quem foi Dostoiévski?
Fátima Bianchi: Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), considerado um dos maiores escritores não só da literatura russa como mundial, é ainda hoje um dos mais lidos em todo o mundo. Conhecido principalmente por seus romances Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov, sua obra, no entanto, consiste de doze romances, quatro novelas, dezesseis contos, várias crônicas e muitos ensaios jornalísticos. Ao publicar a sua obra de estreia, o romance Gente Pobre, aos 25 anos, da noite para o dia, literalmente, ele se tornou uma celebridade nos meios literários. Belínski, o principal crítico da época, ao perceber de imediato a sua “capacidade infinita” de reprodução do mundo psíquico alheio – o que continua sendo uma questão essencial para os estudos de sua obra –, prenuncia para ele um futuro brilhante. No entanto, seu método de criação impunha grandes dificuldades para a compreensão de seu sentido.
Um mês depois, em fevereiro de 1846, ele publicou o seu segundo romance, O Duplo. Apesar da originalidade e do refinamento com que representa nele o tema da bifurcação da consciência, a crítica, decepcionada, o acusa de romper com os padrões realistas de verossimilhança da então chamada “escola natural”, que exigia dos escritores a representação da realidade “como ela é”, para se dedicar a “fenômenos isolados e excepcionais da realidade”. O caminho trilhado por Dostoiévski nas obras seguintes, em que já aparecem esboçados muitos dos motivos, ideias e personagens das obras que ele iria compor posteriormente, nas décadas de 60 e 70, foi tratado pela crítica em geral com extrema intolerância.
Em 1849, por participar do círculo de Petrachevski, que reunia intelectuais que se opunham ao regime czarista, Dostoiévski é preso e condenado à morte. Instantes antes do fuzilamento, tem sua pena comutada por trabalhos forçados na Sibéria. De volta a Petersburgo, dez anos depois, ele se entrega de imediato a uma atividade febril nas revistas que fundou com o irmão Mikhail: Vriêmia (O tempo) e depois Epokha (A Época), nas quais, além de ocupar o cargo de editor, escrevia artigos, notas e obras de ficção. Já para o primeiro número da Vriêmia, ele escreve o romance Humilhados e Ofendidos, retomando a representação humanista das personagens “sem importância” de suas obras da década de 40. Em seguida publica Escritos da Casa Morta, sobre a sua experiência como galé. Com elas, ele recupera o seu prestígio como escritor, mas foi o sucesso de Crime e Castigo, que constitui um divisor de águas em sua carreira, que o elevou a uma posição de grande destaque nos meios literários.
No final de 75, Dostoiévski passa a editar o seu Diário de Um Escritor como uma publicação própria, que lhe proporciona uma espécie de tribuna para se pronunciar sobre todas as questões da vida cultural, política e social russa e europeia da época. No Diário, ele amadurece as ideias e o enredo de seu último romance, Os irmãos Karamázov, que apresenta, como problemática, a filosofia e a psicologia do “crime e do castigo”, o dilema do “socialismo e do cristianismo”, a eterna luta de “Deus” e o “mal” na alma do homem, além do tema dos “pais e filhos”, tão tradicional na literatura russa.
Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Dostoiévski?
Fátima Bianchi: Ainda que sua obra viesse a transcender não só o momento histórico como o espaço geográfico em que nasceu, atingindo, com um vigor inesgotável, uma dimensão universal, Dostoiévski foi, sem dúvida, um escritor preocupado em retratar o seu tempo. No entanto, a sua maneira de escrever, que a crítica considerou “difusa” e “prolixa”, aparece como um dos elementos que lhe propiciou colocar em questão, já em Gente Pobre, todo o modo de representação realista então em evidência e, com ele, a própria posição do narrador. Ao tomar como objeto de representação a realidade prática das camadas inferiores da sociedade e adotar em sua obra uma linguagem também considerada de nível inferior, Dostoiévski transcende todas as regras literárias estabelecidas, porque ele leva a sério não só a realidade cotidiana como a linguagem e o nível de estilo próprios a ela. Com isso, ele se aproxima da representação séria e elevada da realidade cotidiana sem precisar mudar a regra clássica de separação dos níveis de estilo, como haviam feito, por exemplo, os chamados grandes realistas franceses, Stendhal, Balzac e Flaubert, segundo Auerbach. O que ele muda é o ponto de vista, o foco narrativo, de um modo que não encontra precedentes nem mesmo na literatura ocidental. Ou seja, a atitude narrativa que ele adota, que lhe permitiu passar para o ponto de vista da personagem tudo o que antes era apresentado do ponto de vista dominante do autor, sem elevar o nível da linguagem, era algo novo e completamente inusitado para a época, por isso não foi compreendida e criou um problema especial para o leitor de seu tempo. E se Dostoiévski promoveu uma mudança tão brusca nos princípios habituais de representação, foi porque ele não acreditava mais na eficácia da forma comum, então vigente, para convencer o leitor da verdade que a obra literária encerra, ao apresentar exclusivamente o ponto de vista do autor.
Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?
Fátima Bianchi: Dostoiévski viveu na Rússia num momento de transição, marcado pela ruptura de tradições, pela destruição de antigos valores morais e espirituais e a ausência de valores alternativos. E se, nesse quadro, o seu olhar como escritor se voltou para as mudanças que se processavam na estrutura da consciência moral do indivíduo, foi porque ele percebeu que não eram apenas os interesses e as relações entre as pessoas que estavam mudando, mas também a própria noção do homem sobre si mesmo e o seu lugar no mundo. E a forma determinante que ele encontrou para representar essa nova realidade social e humana constituiu um fator essencial para o reconhecimento universal de sua obra. Seu impacto sobre toda a literatura mundial, principalmente sobre escritores do século 20, inclusive no Brasil, foi enorme, já que as situações e os tipos de comportamento diante dos quais ele nos coloca ainda hoje fazem parte da nossa existência, apenas se tornaram muito mais complexos e intensos. Seu romance Memórias do Subsolo, escrito ainda em 1864, é considerado a primeira obra da literatura existencialista. Os temas nele abordados e o método de criação empregado, assim como em Crime e Castigo e nos outros romances, nunca perderam a atualidade e continuam repercutindo na obra de escritores, diretores teatrais e cineastas no mundo todo. Entre eles, Woody Allen é hoje, provavelmente, um dos que mais se inebriam na fonte de Dostoiévski para os seus enredos.
—
Fátima Bianchi é professora da área de Língua e Literatura Russa do curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, tradutora de obras de Dostoiévski e Turguêniev, entre outros. É coordenadora regional da International Dostoevsky Society e Presidente da Sociedade Brasileira de Dostoiévski desde 2008.