"Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, é publicado

Clássico da literatura brasileira, o romance evidencia a violência estrutural que marca a formação do país

Por
Alice Elias
Data de Publicação

"Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, é publicado
Segundo Yudith Rosenbaum, "é um livro de tirar o fôlego pela criatividade e densidade ao narrar uma aventura existencial, psicanalítica, metafísica e sociopolítica sem igual na literatura brasileira". (Arte: Alice Elias)

 

Em 1956, João Guimarães Rosa publicou Grande Sertão: Veredas, obra clássica da literatura brasileira. A partir do cenário histórico do jaguncismo no sertão brasileiro, em meio às mudanças da modernização, o romance entrelaça temas importantes como amor e guerra, ao mesmo tempo em que evidencia a violência estrutural e a desigualdade social que marcam a formação do país.

Riobaldo, o narrador em primeira pessoa, centraliza a narrativa por meio da rememoração em um longo monólogo ininterrupto, ao contar sua história a um doutor da cidade que não se manifesta diretamente. “Pela palavra dita ao outro, Riobaldo deseja entender o sentido de sua travessia, desde a paixão que sentiu na pré-adolescência pelo amigo Reinaldo (que será mais tarde o jagunço Diadorim, guerreando ao lado de Riobaldo), até os atos que o levaram à chefia do bando do líder Joca Ramiro, pai de seu amado”, explica Yudith Rosenbaum, professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

À parte do enredo criativo e denso, a obra se destaca pela singularidade da escrita de Guimarães Rosa, que fez uso de potencialidades do português e de línguas estrangeiras para atingir um estilo particular – repleto de neologismos, arcaísmos, estrangeirismos, aglutinações e novas construções linguísticas. Segundo a entrevista que Guimarães concedeu a Günter Lorenz, seu método de escrita “implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-las a seu sentido original”.

Confira abaixo a entrevista com a professora Yudith, sobre o romance de “gigante importância para a literatura, sobretudo brasileira”.

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Grande Sertão: Veredas  para a Literatura? Em linhas gerais, quais as temáticas abordadas pela obra?

Yudith Rosenbaum: A importância de Grande Sertão: Veredas para a literatura, sobretudo brasileira (mas não só), é gigante. O único romance de Guimarães Rosa entrelaça os temas do amor e da guerra, tendo como pano de fundo histórico o jaguncismo no sertão do Brasil em meio às mudanças trazidas pela modernização. É possível ler a obra pensando na própria formação do país, sua violência estrutural em função da desigualdade social que marca nossa história.

A luta entre jagunços e forças do governo, a partir de um momento do enredo, torna-se uma guerra interna entre dois bandos jagunços que passam a ser inimigos entre si em função de uma traição. Mas, o que centraliza a narrativa é a rememoração, em primeira pessoa, do narrador Riobaldo, chefe jagunço aposentado e semiletrado, que conta sua história a um doutor da cidade (seria esse visitante um analista anotando as falas da personagem? Um alter ego do escritor mineiro? Ou o próprio leitor?). O interlocutor urbano hiper letrado não aparece em nenhum momento pelo discurso direto, sabendo-se dele apenas pelas reações de quem narra. O diálogo acaba sendo um longo monólogo do protagonista, um fluxo fluvial ininterrupto, tendo o grande rio São Francisco e suas veredas como espaço geográfico e psicológico fundamental (“O São Francisco partiu minha vida em duas partes”, diz o narrador).

Pela palavra dita ao outro, Riobaldo deseja entender o sentido de sua travessia, desde a paixão que sentiu na pré-adolescência pelo amigo Reinaldo (que será mais tarde o jagunço Diadorim, guerreando ao lado de Riobaldo), até os atos que o levaram à chefia do bando do líder Joca Ramiro, pai de seu amado. Seus descaminhos seriam destino ou acaso? Forças míticas do Bem e do Mal alimentam o teor romanesco do enredo e ambos convergem para o romance de formação moderno, cujo sujeito problemático e solitário reflete sobre sua existência (como mostra Davi Arrigucci Jr. no ensaio O Mundo misturado: Romance e Experiência em Guimarães Rosa).

Dois mitos principais se entrelaçam ao logo do romance, dialogando com a tradição literária e fazendo o livro pendular entre o particular e o universal: 1) o pacto fáustico, oscilando entre o real e o fantástico, pelo qual Riobaldo decide pactuar com o diabo para ganhar a guerra e livrar Diadorim, seu grande amor, da ideia fixa na vingança do assassinato de seu pai por Hermógenes, o representante do mal no livro e 2) o mito da Donzela Guerreira que se disfarça de homem e entra na guerra para defender o pai sem filho varão.  O segredo da verdadeira identidade de Diadorim só é revelado na última cena, o que impacta o(a) leitor(a) e nos faz reler o romance na busca de pistas cifradas que revelam/escondem o desfecho final. Como não percebemos antes a revelação se o contador nos alerta ao longo do percurso: “[...] disse ao senhor quase tudo”? O que não vimos, e estava tão perto dos nossos olhos, o protagonista também não viu quando vivenciou seu percurso.

Em suma, é um livro de tirar o fôlego pela criatividade e densidade ao narrar uma aventura existencial, psicanalítica, metafísica e sociopolítica sem igual na literatura brasileira.  

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Guimarães em Grande Sertão: Veredas?

Yudith Rosenbaum: A escrita de Guimarães Rosa é um fenômeno singular da língua portuguesa e atinge um extraordinário apuro artesanal em Grande Sertão: Veredas. A matéria verbal principal do romance está na oralidade mineira, aproveitada ao máximo na fala de Riobaldo, homem rústico do sertão. O caráter oral da narrativa traz diversos “causos” sertanejos que se misturam às “formas simples” (título do livro de André Jolles, que estuda as ruínas das narrativas arcaicas), como provérbios, chistes, adivinhas etc, tudo isso reconfigurado pelas artimanhas do autor. Ao lado desse material arcaico e popular, o moderno escritor Guimarães Rosa trabalha a língua com erudição e inusitada sofisticação, buscando resgatar as palavras gastas pelo uso. Seu método de escrita, segundo sua entrevista a Günter Lorenz, “implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-las a seu sentido original”. Para isso, valem neologismos, arcaísmos, estrangeirismos (“esmartes verdes olhos de Diadorim”, por exemplo), novas sufixações, prefixações, aglutinações etc. Segundo Cavalcanti Proença, Rosa não criou nem uma língua nem um dialeto: “o que ocorreu foi ampla utilização de virtualidades da língua”, diz ele. Ou seja, Rosa usou potencialidades do uso corrente do idioma português (e outras línguas estrangeiras), que estão à espera de quem as atualize, justapondo elementos por analogia e outros procedimentos, o que resulta em novos sintagmas, novos vocábulos e novas construções linguísticas. Algumas vezes, parece se tratar de neologismo, mas não é, pois está dicionarizado, como o conhecido “Nonada”, que abre o romance.   Pelo dicionário, significa “coisa de nenhum ser ou de pouca importância”, mas ganha imprevistas significações no contexto do romance. Na mesma página, lemos “povo prascóvio”, sendo esse último termo, aí sim, um neologismo criado por Rosa para significar “ignorante”. Os regionalismos também surgem como novidade (a palavra “esbarrar” no lugar de “parar”). Criam-se provérbios, como a frase “Quem muito se evita, se convive”, conectada com uma outra passagem, que mostra ser difícil esquivar-se do mal: “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos”. E muitas outras invenções, como por exemplo, estruturas sintáticas condensadas que imprimem o elemento poético inequívoco de sua prosa. Roberto Schwarz analisa uma dessas construções em seu ensaio Grande Sertão: Veredas: A Fala – uma cena em que Riobaldo expressa seu amor intenso por Diadorim: “[...] que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível”. Sentimos, com auxílio das vírgulas, a respiração ofegante da paixão.

O refinamento desses recursos poderia, aparentemente, afastar o leitor comum de uma obra tão elaborada como essa, mas os que se arriscam pelo sertão das palavras ganham uma experiência única. Lido em voz alta, o texto ganha toda a sua expressividade e se aproxima do público familiarizado com a fala interiorana mineira, mas também quem é da cidade aprecia a beleza de uma escrita inovadora, mesmo estranhando, nas primeiras páginas, frases e palavras não esperadas. Logo nos habituamos - se deixarmos fluir a leitura sem querer decifrar cada detalhe - com a magia e a surpresa da linguagem, pronta para irradiar cores novas e movimentar o pensamento para fora de sua morada conhecida, ampliando horizontes tão vastos como o sertão sem limites da obra de Guimarães Rosa.

Yudith Rosenbaum é graduada em Psicologia pela PUC de São Paulo, mestre e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH. Atualmente é professora doutora da FFLCH na área de literatura brasileira.Trabalhou como psicóloga educacional durante quinze anos e atendeu por dez anos em clínica psicanalítica. Atua na interface da Literatura com a Psicanálise, especializando-se em autores do século 20, como Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Guimarães Rosa.