Nascimento de Eça de Queirós

Escritor português deixou sua marca na história com obras célebres como “O Crime do Padre Amaro”, “O Primo Basílio” e “Os Maias”

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Eça de Queirós
"É o olhar queirosiano, agindo como uma câmera que tudo vê, registrando sua época e a cristalização dos poderes, invadindo espaços, intimidades e a mente dos personagens, que faz dele um grande escritor”, afirma Daiane Cristina Pereira. (Arte: Pedro Fuini)

Eça de Queirós, um dos grandes nomes do romance português, nasceu em 25 de novembro de 1845, em Póvoa do Varzim, Portugal. Além de escritor, foi jornalista e diplomata, tendo produzido vasta obra. Alguns dos livros que deixariam sua marca na história, elevando-o ao cânone literário, foram O Crime do Padre Amaro, que teve três versões publicadas (1875, 1876 e 1880) e fundou as bases do Naturalismo (corrente literária caracterizada pelo cientificismo, objetividade e narrativa descritiva) em Portugal; O Primo Basílio (1878), livro que fez grande sucesso no Brasil e influenciou outros autores; e Os Maias (1888).

A escrita marcadamente irônica, aliada à uma detalhada descrição, que critica e expõe os problemas morais e sociais da sociedade portuguesa, tornam a obra de Queirós necessária e atemporal, segundo Daiane Cristina Pereira, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. De acordo com a pesquisadora, a grandiosidade do escritor se deve ao seu estilo “ágil e claro, repleto de humor e sagacidade, que mantém o leitor atento e interessado”, representando uma virada na narrativa em língua portuguesa. “Todavia, é o olhar queirosiano, agindo como uma câmera que tudo vê, registrando sua época e a cristalização dos poderes, invadindo espaços, intimidades e a mente dos personagens, que faz dele um grande escritor”. 

Pela vastidão da obra de Eça de Queirós, Pereira explica que a crítica costuma dividi-la em três momentos. Na primeira fase, há uma espécie de Naturalismo militante, em que o escritor busca atingir a moralidade dos membros do clero e da burguesia portuguesa, da qual fazem parte O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. No segundo momento, de viés mais realista, o autor busca descrever a alta aristocracia e burguesia portuguesa, construindo um narrador muito mais próximo das personagens, na qual se insere Os Maias. Por fim, em sua terceira fase, o escritor se mostra muito mais idealista, abandonando a ironia e apresentando uma visão mais positiva de Portugal, como em A Cidade e as Serras (1901).

A pesquisadora, entretanto, destaca que estudos recentes, como do Grupo Eça da FFLCH, contestam a ideia de que o escritor tenha abandonado as características mais marcantes de sua escrita nesta última fase, demonstrando que o realismo, a crítica social e a ironia continuam presentes, mas matizados por uma ambiguidade que permitem ao leitor uma identificação com as personagens e situações narradas ao mesmo tempo que enxergam os problemas sociais denunciados. 


Pesquisa sobre o escritor

O interesse de Pereira em estudar Eça de Queirós começou ainda na graduação, durante a iniciação científica, quando surgiram as primeiras inquietações a respeito da obra do escritor, que seguiram até durante seu mestrado. Estas, depois, virariam as premissas de sua tese de doutorado, A mulher e o discurso masculino nos romances de Eça de Queirós. Ela queria entender por que as personagens femininas eram vistas de maneira negativa por muitos pesquisadores e por que estavam praticamente ausentes nos últimos romances do escritor. A perspectiva escolhida por Pereira permitiu, segundo ela, “não só ver os lugares ocupados pelas mulheres na sociedade, mas os mecanismos discursivos de opressão e exclusão que, assim como limitam as personagens femininas, limitam as mulheres”.

Leia a entrevista completa a seguir.

 

Serviço de Comunicação Social: Para os que não o conhecem, quem foi Eça de Queirós?

Daiane Cristina Pereira: Nascido em 25 de novembro de 1845, em Póvoa do Varzim (Portugal), e morto em Neuilly (França), em 16 de agosto de 1900, Eça de Queirós é um dos maiores expoentes do romance em Língua Portuguesa de todos os tempos, tendo seu talento comparado a grandes nomes como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e José Saramago. Além de escritor, Eça de Queirós cursou Direito em Coimbra (1861-1866), foi jornalista, com uma enorme produção de textos de imprensa durante toda a sua vida, além de diplomata, tendo sido cônsul em Havana, Newcastle, Bristol e Paris.

Escreveu diversos livros que marcaram a história literária, como O Crime do Padre Amaro (três versões em 1875, 1876 e 1880), O Primo Basílio (1878), Os Maias (1888), entre outros. Enquanto o primeiro livro fundou as bases do Naturalismo em Portugal, apresentando aos portugueses a escola de Zola, o segundo teve grande sucesso no Brasil, tornando Eça de Queirós um dos autores mais lidos em nosso país no século 19, além de inspirar diversos autores brasileiros, como Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha e Aluísio de Azevedo. Ainda hoje, a prosa queirosiana inspira muitos escritores que recriam seus temas, espaços e personagens, como nos livros Nação crioula, de José Eduardo Agualusa, ou O último endereço de Eça, de Miguel Sanches Neto.

Assim, a forte ironia de sua escrita combinada à descrição minuciosa dos mais variados estratos da sociedade portuguesa faz a obra de Eça de Queirós necessária e atemporal, porque critica e expõe não só os diversos problemas morais e sociais da época, mas também mostra como se cristalizam e resistem até os dias atuais. Dessa maneira, ler seus livros é necessário não apenas para entender o Portugal do século 19, mas também o mundo atual.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais as principais características da obra do escritor?

Daiane Cristina Pereira: Acredito que as linhas mestras da obra de Eça de Queirós sejam o tratamento da realidade e a ironia, que mostram o funcionamento da sociedade portuguesa, tratando por seus aspectos morais, sociais, políticos, econômicos e intelectuais, mas também criticam profundamente aquilo que não funciona, que se apresenta como problemático. 

No entanto, existe uma dissensão na crítica queirosiana no que diz respeito a essas características, visto que como a obra queirosiana é vasta e produzida durante um grande período da vida do autor, boa parte da crítica vai afirmar que, conforme fica mais velho, Eça de Queirós vai ficando mais conservador, e divide sua obra em três momentos.

O primeiro, representado por seus dois primeiros livros, seria de um Naturalismo militante, no qual o realismo e a ironia seriam usados como forma de atingir a moralidade dos membros do clero e da burguesia portuguesa. O segundo momento, cujo maior representante seria Os Maias, teria um viés mais realista que naturalista, cujo intuito do escritor seria mais descrever a alta aristocracia e burguesia portuguesa, construindo um narrador muito mais próximo das personagens, principalmente da principal, Carlos da Maia, diminuindo o viés destruidor de sua ironia. No terceiro momento, representados principalmente por A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras, o autor se tornaria muito mais idealista, assumindo um realismo fantasista, abandonando a ironia, aproximando-se do povo português e tendo uma visão mais positiva do país.

Afora as questões de publicação que concernem aos últimos livros de Eça de Queirós, publicados após sua morte, alguns estudos recentes, entre eles os de pesquisadores do Grupo Eça, da FFLCH, têm se contraposto a esse ponto de vista e demonstrado que o autor nunca abandonou nem o realismo, nem a crítica social, muito menos a ironia, mas que esses elementos se encontram matizados por uma ambiguidade que permite ao leitor se identificar com temas, situações ou personagens, ao mesmo tempo que enxerga os problemas que emergem da mentalidade da elite do país. 

Consideremos, por exemplo, o personagem Gonçalo, de A Ilustre Casa de Ramires. O aristocrata bonachão, que deseja estender a sua posição política através da escrita de um romance sobre sua antiga família, justifica-se positivamente por suas boas ações, como ceder o cavalo a um trabalhador idoso ou cuidar de uma criança doente, cuja mãe esteve em sua casa numa noite de chuva. No entanto, o mesmo personagem apresenta atitudes muito negativas, como o possível plágio do poemeto do tio Duarte, os disse e não disse do combinado do arrendamento de terras ao José Casco, que provoca uma reação do homem e a cena do menino doente, o “empurrãozinho” ao adultério da irmã em troca de apoio político, além da vacuidade total do seu cargo de deputado, abandonado por uma viagem de enriquecimento para a África. Tudo isso, somado à proximidade do narrador ao personagem principal, permite dizer que as mazelas sociais, agora da aristocracia rural, ainda são discutidas, mas matizadas por uma ambiguidade que caracteriza a ironia mais clássica. Desse modo, nem ironia, nem realismo são abandonados.

 

Serviço de Comunicação Social: O que faz de Eça de Queirós um dos grandes nomes da literatura portuguesa?

Daiane Cristina Pereira: Acho que Eça de Queirós representa uma virada na narrativa em língua portuguesa, primeiramente, por seu estilo ágil e claro, repleto de humor e sagacidade, que mantém o leitor atento e interessado. Todavia, é o olhar queirosiano, agindo como uma câmera que tudo vê, registrando sua época e a cristalização dos poderes, invadindo espaços, intimidades e a mente dos personagens, que faz dele um grande escritor. Esse olhar, entrecortado pela ironia, ao mesmo que acicata, liberta, porque permite identificar-se com as personagens, observar as mazelas da sociedade, indignar-se com o erro e com as opressões e rir dos desajeitados donos do poder. É esse olhar que vai marcá-lo como grande escritor.

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua tese de doutorado, você faz uma análise comparativa dos principais romances do autor, tentando observar como acontece a representação do feminino. Você pode nos contar mais a respeito de sua pesquisa?

Daiane Cristina Pereira: Durante a iniciação científica e o mestrado, quando lia os livros de Eça e a crítica a eles, duas coisas me causaram um incômodo e se colocaram como premissa para minha tese. Primeiramente, me perguntava por que motivo muitos pesquisadores viam as personagens femininas de maneira muito negativa, muitas vezes qualificando-as de maneira até pejorativas. Em segundo lugar, queria entender por que as personagens femininas quase não apareciam nos últimos romances, ou seja, não só perdem a centralidade, mas as suas aparições são episódicas.

As respostas que encontrei partem do próprio projeto de Eça em representar todos os extratos sociais portugueses em seus romances. Assim, a sociedade portuguesa, patriarcal, com uma moral definida pela Igreja Católica e outras instituições normativas, nos dá a ver, pelos olhos de Eça, personagens femininas com poucas opções de vivência e mobilidade social, marcadas principalmente pelo discurso e pelo olhar masculino dos personagens e dos narradores. Por exemplo, Luísa não é apenas uma títere, Juliana não é invejosa, mas apenas representações literárias de mulheres de uma sociedade limitante, na qual os desejos e vontades são poucos e controlados pelo poder masculino. Além disso, quando existe a tentativa de tentar alcançá-los, ela é vista como subversão e recoberta de negatividade. Dessa maneira, a adesão ao discurso negativo se deve a não se atentar aos processos de opressão que tentei descrever.

No que concerne à segunda questão, o autor português, ao mimetizar toda a sociedade portuguesa, acaba representando os espaços permitidos ou não à mulher no século 19. Dessa maneira, quando fala do clero e da burguesia em O Crime do Padre Amaro e em O Primo Basílio, classes em que as relações de intimidade e o espaço doméstico são importantes e tidos como femininos pelos moldes da época, as personagens femininas são centrais e suas questões são problematizadas no interior da narrativa, ainda que por um viés masculino. Assim, quando o autor começa a falar da alta burguesia e da aristocracia, como em Os Maias, em A Ilustre Casa de Ramires e em A Cidade e as Serras, classes mais ligadas ao poder político, econômico e intelectual, exercido no espaço público, onde as mulheres não tinham vez, as personagens passam a ser vistas de maneira mais distanciada e mesmo objetificadas, reproduzindo na estrutura da obra o processo espacial e social de limitação e exclusão das mulheres. Ler Eça de Queirós dessa maneira permite não só ver os lugares ocupados pelas mulheres na sociedade, mas os mecanismos discursivos de opressão e exclusão que, assim como limitam as personagens femininas, limitam as mulheres.

Daiane Cristina Pereira possui graduação em Letras (Português e Francês), mestrado e doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, todos pela FFLCH. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Estrangeiras Modernas, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura portuguesa, Eça de Queirós, romance realista, mulher e estudos comparados. Suas pesquisas estão disponíveis na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.