Napoleão Bonaparte é coroado Imperador

General francês ganhou projeção durante a Revolução Francesa e ascendeu ao poder através de um golpe; vitórias no campo militar e econômico o levaram a se tornar imperador

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Napoleão Bonaparte é coroado Imperador
(Arte: Pedro Fuini)

O general Napoleão Bonaparte foi coroado Imperador dos Franceses em 2 de dezembro de 1804, ao lado de sua esposa Josefina, em uma cerimônia na catedral de Notre-Dame de Paris.

Vindo de uma família italiana da Córsega, ilha do Sul da França, Napoleão estudou na Escola Militar de Brienne. Durante a Revolução Francesa, ganhou destaque ao comandar campanhas militares, sendo nomeado por Paul Barras, líder do Diretório (1794-1799), para reprimir uma revolta monarquista em Paris, conhecida como 13 Vindemiário no calendário revolucionário francês (5 de outubro de 1795 no calendário gregoriano). Em 1796, aos 27 anos, casou-se com Josefina e, logo depois, assumiu o comando da campanha militar na Itália. Em 1798, comandou a invasão militar do Egito, que bloquearia rotas comerciais da Inglaterra.

Daniel Gomes de Carvalho, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que o sucesso de Napoleão nas guerras do período mantinham viva a Revolução Francesa através da expansão territorial e de ideias, e são fundamentais para compreender sua ascensão ao poder. O período ficaria conhecido como Era Napoleônica. 

Em 9 de novembro de 1799, no que ficou conhecido como Golpe do 18 Brumário, Napoleão ascendeu ao poder como cônsul. “As vitórias no campo militar e econômico – e o consequente apoio dos grupos mais abastados – deram a ele a legitimidade para alcançar a condição de imperador”, segundo Carvalho. Uma mudança na Constituição foi aprovada em 1804 e garantia que o governo da República seria confiado a um imperador, que assumiria o título de Imperador dos Franceses.

Napoleão queria ser coroado na data em que ascendeu ao poder, o que não foi possível devido à diferença ao calendário da Igreja; ser coroado pelo papa implicaria que o poder de Napoleão derivava dele, o que contradizia a Constituição. A solução se deu com Napoleão coroando a si mesmo. A própria aparência da cerimônia foi objeto de discussão, pois havia receio que lembrasse a monarquia. De qualquer forma, Napoleão e Josefina foram coroados em 2 de dezembro de 1804. “Muitos republicanos ficaram furiosos com um comandante militar que estava se fazendo ungir com algum suposto direito divino; muitos católicos ficaram chocados com o que entendiam ser a manipulação da fé e a humilhação do papa”, conta Carvalho. Veja a seguir a entrevista com o pesquisador na íntegra:


Serviço de Comunicação Social: Como se deu a ascensão de Napoleão ao poder?

Daniel Gomes de Carvalho: Napoleão era de uma família corsa que, embora tenha se envolvido na Revolução de Paoli contra o domínio genovês, acabou aliando-se aos novos dominadores da ilha, os franceses, a partir da figura do conde de Marbeuf. Essa aliança abriu caminhos aos filhos de Carlo e Letizia Buonaparte, Joseph e Napoléon (ou Giuseppe e Napoleone, como eram chamados no dia a dia).

Assim, Carlo Buonaparte conseguiu para Napoleão uma bolsa real na Escola Militar em Brienne. Na escola, ele leu Suetônio, Tácito, Quintiliano, Cícero, Horácio, Virgílio e Plutarco, entre os clássicos; e Corneille, Racine, Boileau, Boussuet e Fénelon, entre os franceses; além de história, geografia, matemática, física, desenho, dança, esgrima e música. Apesar de más biografias considerarem Napoleão como “excepcional”, por ter sido bom leitor, ocorre que nas academias militares do Antigo Regime a formação militar era muito distinta da atual, como analisa o historiador David Bell no livro A Primeira Guerra Total. Por exemplo, um dos maiores romances do século 18, Les liaisons dangereuses, foi escrito pelo capitão Laclos, rebento de uma família que lutou na Guerra dos 7 Anos (1756-1763).
Seja como for, em 1785, obteve o certificado da Escola Militar, na Artilharia. Como segundo tenente, seu nome estava registrado como Napolionne de Buonaparte e tudo indica que ele não via a si mesmo como francês.

Uma carta de junho de 1789 indica que ele viu com bons olhos a Revolução que se iniciava: “este ano anuncia o início de coisas que serão muito bem-vindas para todos aqueles que raciocinam bem”. Napoleão, nobre ci-devant, fazia parte da Sociedade dos Amigos da Constituição e, como observamos em suas Letres sur la Corse, ainda vislumbrava a independência da Córsega. Contudo, a grande liderança corsa, Paoli, não confiava nos Buonaparte, e fez oposição a ação de Napoleão na Guarda Nacional da Córsega.

Em 1792, Napoleão chegou mesmo a ser denunciado pelos deputados corsos Carlo Maria di Borgo e Marius Peraldi; contudo, como a França estava em guerra desde abril, a denúncia não foi levada a diante. A guerra favoreceu Bonaparte não apenas por sua atuação exitosa como comandante, mas também pelo enfraquecimento de Paoli, cuja anglofilia era vista como uma traição em potencial.

Em 1793, quando Inglaterra e Holanda já estavam em guerra contra a França, Luciano Bonaparte (que logo mudaria o nome para “Brutus”), irmão mais novo de Napoleão, discursou na Convenção contra Paoli. A Convenção revolucionária acabou ordenando a prisão do líder. Nesse momento, toda a família de Napoleão muda-se para a França. Napoleão, então, escreveu um panfleto favorável aos jacobinos, Le Souper de Beaucaire, que lhe ajudou a obter o posto de artilharia no exército de fédérés que cercava Toulon. Napoleão então ganha proteção dos jacobinos Barras e Augustin Robespierre, irmão de Maximilien, représentant em Toulon (Napoleão, a propósito, admirou Robespierre até o fim da vida)

Após a queda dos robespierristas, em julho de 1794, Napoleão teve os documentos apreendidos e passou 11 dias preso (ou em prisão domiciliar, não sabemos ao certo), acusado por Saliceti de ter conspirado com os aliados e com Gênova. Nesse momento, ele planejava oferecer seus serviços ao sultão da Turquia.

Aparentemente, Napoleão estava fora do jogo. Contudo, Paul Barras era um daqueles que, embora tenha participado ativamente de diversas ações associadas ao “terror”, posou de “antijacobino”, reforçou o discurso que posicionava Robespierre como bode expiatório e, com isso, manteve-se no poder durante o Diretório. Barras, que havia conhecido Napoleão em Toulon, o nomeou para reprimir a revolta monarquista em Paris (“General 13 Vindemiário”). Napoleão atuou também na repressão contra os chamados neojacobinos, o que marca sua separação em relação ao clube.

Em 1796, Napoleão, então com 27 anos, casou-se com a amante de Barras, Marie-Josèphe-Rose de Beauharnais, de 32 anos, e, dois dias após o casamento, assumiu o comando da campanha militar na Itália. Nas cartas para Josefine ele assinou, pela primeira vez, como Bonaparte, sem a letra U, o que indica uma tentativa de “afrancesar” seu nome. Na Itália, Napoleão forçou o papa Pio VI a fugir para Florença e, em Nápoles, os monarcas Ferdinando e a arquiduquesa Carolina refugiaram-se na Sicília. Além da melhoria objetiva das condições dos soldados (com a distribuição de rações, vinho e conhaque), Napoleão permitia que os soldados o chamassem de “tu” e fundou jornais como O Correio do Exército da Itália, que o comparavam a um “cometa”, uma autopromoção sem pudores.
As guerras do período são fundamentais, portanto, para compreendermos a ascensão da chamada Era Napoleônica. Mediante a expansão territorial e de ideias, a Revolução Francesa sobrevivia, mas mudava suas características; nas palavras do historiador Michel Vovelle, “a guerra que a sustém, ao mesmo tempo perverte-a”.

Foram criadas repúblicas satélites, como a República Batava (Países Baixos), Cisalpina (Norte da Itália), Liguriana (Gênova), Partenopeana (Nápoles) e Helvética (Suíça). Em geral, o domínio se estabelecia por meio de uma combinação de invasões externas e movimentos revolucionários internos, tornando o período um laboratório de experiências republicanas. A republicanização da Europa também estimulou, em 1798, a Rebelião Irlandesa e a República Helênica de Rigas, na Grécia.

Paralelamente, o Diretório, enquanto tentava reerguer a economia, enfrentava oposição à esquerda e à direita, uma instabilidade política expressa em quatro golpes sucessivos (Frutidor, Floreal, Prairal e Brumário), parte da “política de gangorra”: sempre que o centro não conseguia maioria nas eleições, eram feitos expurgos contra a esquerda neojacobina ou baboista e contra a direita monarquista. Para enfrentar a direita, o Diretório tinha duas opções: recorrer ao povo ou ao exército. Como o Diretório, ao posicionar-se abertamente ao lado dos proprietários, afastou-se do primeiro, tornou-se refém do segundo. Por isso, Gustave Flaubert, no seu Dictionnaire des idees reçues, disse: “nos tempos do Diretório, a honra refugiou-se nas forças armadas.”

Em 1798, comparando-se a Júlio César e Alexandre, O Grande, Napoleão comandou a invasão no Egito. Um de meus alunos de mestrado, Gino de Castro Pinori, está estudando o tema; até o momento, ele tem evidenciado a centralidade da invasão para a construção do orientalismo novecentista, para os movimentos islâmicos do século 19 e mesmo para as mudanças na própria política francesa. A ideia da invasão, a propósito, era um projeto antigo, e encontramos menções a respeito nos textos Leibniz, no século 17. O livro anônimo Bonaparte no Cairo, de 1798-1799, mostrava em seu frontispício Napoleão apontando para o canal de Suez, projeto que os engenheiros à época consideravam inexecutável. Mais importante: uma conquista francesa do Egito bloquearia a rota inglesa do comércio de algodão com as Índias e ajudaria os franceses a dar suporte ao sultão Tippoo, na Índia, que lutava contra os britânicos. O Egito ainda possibilitaria aos franceses acesso a territórios neutros (potenciais aliados, portanto), como Meca, Yemen, Oman, Sudão e Argélia.

Dizemos que a invasão do Egito marca a passagem da “Política da Grande Nação” para a “Nova Política Imperial”, a qual descartava a necessidade de uma revolução ou movimento republicano para demandar uma invasão francesa e, diferente do que se processou até então, tinha objetivos abertamente globais, não se limitando às fronteiras da França e de suas colônias. Além disso, a invasão marca dois princípios da guerra napoleônica distintos do Antigo Regime: a busca por viver da terra ocupada, de modo que a guerra alimente a guerra, e a eliminação ds sistemas de privilégios, o que atingia toda a população.

Napoleão, então, deixou seu sucessor no Cairo e voltou para Paris (a França acabaria derrotada no Egito em 1801). Ao abandonar seu posto, Napoleão cometeu um crime de guerra. Mas quem tinha força para condená-lo? Nesse momento, as tensões da França com São Domingos (Haiti) também aumentavam, e é preciso destacar todo o racismo presente nas falas do general. Em outubro de 1802, por exemplo, disse sobre o Haiti: “eis a minha opinião sobre este país. Devemos destruir todos os pretos das montanhas, homens e mulheres, livrando apenas crianças menores de doze anos; destruir metade dos pretos das planícies e não deixar vivo na colônia sequer um homem de cor que tenha usado uma dragona. Sem isso, a colônia jamais será pacífica.”

Entre 1798 e 1799, Rússia, Império Turco, Inglaterra e Áustria se uniam para nova invasão contra a França. Enquanto isso, na chamada “Reação dos 13 meses”, os franceses perdiam territórios na Itália. O Diretório, ao mesmo tempo, era amplamente criticado por corrupção e por não conseguir manter a ordem no país. Assim, o abade de Sieyès passou a contar com apoio de outros membros do governo, como Roger Ducos, Talleyrand (que havia voltado do exílio na Pensilvânia) e Lindet, a fim de impor um braço armado que anularia a Constituição de 1795 e traria enfim estabilidade. Nesse momento, apenas 16% dos deputados haviam participado de legislaturas anteriores na Revolução Francesa.

Sieyès redigiu os decretos para alterar a Constituição e uma parte dos deputados delegou poderes a Napoleão para comandar tropas parisienses enquanto Luciano Bonaparte, presidente do Conselho dos Quinhentos, ordenou a prisão dos opositores. À noite, um grupo de deputados instituía uma comissão de três cônsules, o Consulado (1799-1804), para governar e reformar a França: Napoleão Bonaparte (então com 30 anos), Sieyès e Roger Ducos. Sieyès e Ducos logo assumiram como os primeiros senadores, e Cambacérès e Lebrun tornam-se cônsules. Em 1799, uma Nova Constituição (a 4ª da Revolução Francesa), era imposta com poder executo hipertrofiado, sem preâmbulo e sem declaração de direitos. A autonomia das assembleias coloniais preparava o terreno para o retorno da escravidão nas colônias, fato que se consolidaria nos anos seguintes e catalisaria a independência do Haiti. A Constituição foi aprovada por um referendo em fevereiro de 1800, mas ela havia entrado em vigor um ano antes.
Não houve reação popular significativa em defesa do Diretório. Apesar do discurso napoleônico de que o Consulado “romperia” com a “corrupção” do Diretório, hoje os historiadores lembram que o movimento de centralização e repressão das dissidências, como dissemos, já havia começado antes – não por acaso, Marx chamava a Era Napoleônica de “versão administrativa do terror”. A propósito, 90% dos ministros de Napoleão participaram do Diretório.

 

Serviço de Comunicação Social: Como foi a cerimônia de coroação?

Daniel Gomes de Carvalho: Dado que os franceses haviam guilhotinado seu rei 10 anos antes, é preciso antes compreender o que tornou a coroação possível. No período do consulado, a França enfrentou uma Segunda Coligação, momento em que se processou a segunda campanha da Itália e teve lugar a famosa “Travessia dos Alpes”, pintada por Jacques Louis David (embora ele tenha pintado Napoleão a cavalo, visando aproximá-lo das figuras míticas de Aníbal e Carlos Magno, a travessia foi feita de mula). A “vitória” (na verdade, foi mais uma recuada austríaca) napoleônica na Batalha de Marengo (14 de junho de 1800), bastante explorada pela propaganda napoleônica, foi chamada pelo historiador François Furet de “a verdadeira coroação do poder e do regime de Napoleão”, dado o prestígio que ela lhe conferiu. A retórica napoleônica o construía como um pacificador e restaurador da ordem.

Apesar de, em 1802, ter levado a cabo a Paz de Amiens, logo a guerra retomou seu fôlego. Para alguns historiadores, a paz foi feita para “ganhar tempo” ao passo que, para outros, Napoleão de fato ambicionava a paz, mas seus adversários o forçaram à guerra. Particularmente, acredito que “as intenções” de Napoleão, seja lá o que isso signifique, tem importância menor do que usualmente se supõe; ocorre que efeitos contínuos da Revolução Francesa desestabilizam as relações internacionais de modo a tornar a paz muito difícil.

A guerra, além disso, era uma questão de política interna. Em 1800, Napoleão havia criado o Banco da França e Sociedade de Fomento a Indústria. Em 1802, fez uma Concordata com a Igreja Católica. Nos anos seguintes, enquanto o corso afirmava-se como cônsul vitalício, o Código Civil Napoleônico consagrava a propriedade privada. O divórcio, aprovado na Revolução Francesa, acabava revogado.

As vitórias no campo militar e econômico – e o consequente apoio dos grupos mais abastados – deram a ele a legitimidade para alcançar a condição de imperador. O pretexto foi dado por um relatório, entregue a Napoleão no dia 1º de março de 1804, que identificava Louis de Bourbon, o duque de Enghien, como o “príncipe real” por trás de uma conspiração de monarquistas. Em 30 de abril, após uma campanha encabeçada por Talleyrand, Fouché e os irmãos José e Luciano Bonaparte, o Tribunato votou favoravelmente a concessão do título de imperador; no dia 3 de maio, um relatório Senado, que estabeleceu uma série de condições para Napoleão poder assumir a coroa. Em Saint-Cloud, os trabalhos que resultariam na nova Constituição elaboraram um documento com as seguintes palavras: “o governo da República é confiado a um imperador, que assume o título de imperador dos franceses.” Até 1809, assim, o Estado continuaria a ser chamado de República. O texto foi transformado em lei na manhã do 18 de maio. Os senadores foram em grupo de Luxemburgo para Saint-Cloud, onde Napoleão os recebeu na galeria de Apolo. Cambarcérès, que conduziu a entrada, referiu-se a Bonaparte como “soberano” e “majestade”. Lebrun fez um discurso, no qual terminava proclamando Napoleão I imperador dos franceses. A nova Constituição cercava o trono com órgãos copiados da monarquia francesa e do Sacro Império Romano.

Napoleão pretendia coroar-se no 18 Brumário, aniversário do dia em que tomou o poder, mas não foi possível, pois precisava ajustar sua data com a do papa. A propósito, Napoleão não havia casado com Josefina na igreja, o que impediria o papa de participar da cerimônia; por isso, precisou casar-se nas Tulherias às pressas, em cerimônia reservada. Aliás, a coroação em si não poderia ser realizada pelo papa, pois isso implicaria que o poder de Napoleão derivava dele, o que contradiria a própria Constituição. A questão de como seria a aparência da cerimônia foi também objeto de longa discussão, pois, embora ele fosse imperador, nada poderia lembrar diretamente a monarquia Bourbon. O resultado foi uma miscelânea de estilos greco-romano, merovíngio e carolíngio. Enfim, no dia 2 de dezembro, na catedral de Notre-Dame, o casal real foi coroado. Muitos republicanos ficaram furiosos com um comandante militar que estava se fazendo ungir com algum suposto direito divino; muitos católicos ficaram chocados com o que entendiam ser a manipulação da fé e a humilhação do papa

 

Serviço de Comunicação Social: Como ficou marcado o Império de Napoleão?

Daniel Gomes de Carvalho: Em 1807, o filósofo Claude-Henri de Saint-Simon disse que, embora tenha havido gênios de ação como Alexandre, Aníbal, César, Carlos Magno e Maomé, e gênios da mente como Sócrates, Platão, Aristóteles, Bacon e Descartes, Napoleão, esse produto da era das luzes era uma fusão miraculosa de ambos. Esse curioso retrato é parte de uma propaganda que, efetivamente, buscava construí-lo como um príncipe ilustrado.

Uma vez no poder, Napoleão estabeleceu uma nova nobreza, transformando seus principais homens em duques de Otranto, Rivoli, Parma ou príncipes de Benevento, Ponte-Corvo e Eckmühl. Dos 3 mil títulos que criou, a propósito, 59% foram para militares. Na era napoleônica, 143 peças foram encenadas glorificando os militares. Com os metais dos canhões apreendidos em Austerlitz, mandou erguer a coluna de Vendôme, encimada por sua própria estátua nos moldes da coluna de Trajano, de Roma.

Enquanto isso, Napoleão, ao mesmo tempo em que era derrotado pelos ingleses na batalha de Trafalgar, enfrentava uma Terceira Coligação anti-francesa, produto da união de Rússia, Áustria e Grã-Bretanha, e resposta à interferência de Napoleão na política alemã e a execução do príncipe Bourbon. Em 2 de dezembro de 1805, no aniversário de sua coroação, venceu as forças austríacas e russas na aldeia tcheca de Austerlitz. Para se ter uma ideia do impacto desses conflitos na região, entre 1792 e 1815, cerca de 60% da população da atual Alemanha mudou de governante, o que resultou, em 1806, no fim do Sacro Império Romano Germânico.

Enquanto era esboçado aquilo que ficou conhecido como “bloqueio continental”, as atividades de Napoleão nas fronteiras levaram o rei Frederico Guilherme III a formar a Quarta Coalizão. Os prussianos foram derrotados em Jena e Auerstadt, e Napoleão marchou triunfante em Berlim, exibindo prisioneiros da guarda pessoal do imperador, que fugira. Em junho 1807, Napoleão esmagou os russos na Batalha de Friedland e, um mês depois, firmou um acordo com o czar e com a Prússia, que perdera metade de seu território e de seus súditos, pagou enormes indenizações e viu seu exército reduzido a 42 mil homens. Já Rússia, embora derrotada em Eylau (1807) e Friedland (1807), permaneceu intacta. O Tratado de Tilsit (1807), enfim, tratava-a com respeito, embora estabelecendo hegemonia francesa sobre o resto do continente. Para celebrar a paz com a Áustria, Napoleão casou-se com a princesa Marie-Louise, sobrinha neta de Maria Antonieta. A propósito, percebam que a maioria das potências europeias em algum momento firmaram um acordo com Napoleão. Foi nesse período, aliás, que Napoleão visitou o túmulo de Frederico, O Grande, como Hitler fará no século seguinte, em Paris, com o túmulo de... Napoleão.

Mas há um ponto importante nesse aspecto. Clausewitz, então com 26 anos e há mais de 10 anos presente nos campos de batalha, disse, referindo-se a Hobbes: “a guerra dos tempos atuais é de todos contra todos”. De fato, as batalhas envolviam efetivos cada vez maiores. A batalha de Marengo contava com 60 mil combatentes; a batalha de Wagram, 300 mil; a batalha de Leipzig, 500 mil. E, em efeito dominó, a Europa se militariza. No bojo das batalhas, em 1808, a Áustria esboça a criação de um serviço militar obrigatório. A Prússia abole a servidão rural e as guildas urbanas, abre as profissões a todos, uniformiza a carga tributária e estabelece a tolerância religiosa. Um comitê militar, liderado por Scharnhorst e Neithardt, instala a progressão por mérito nos combates. A Grã-Bretanha, mesmo sem ter um alistamento obrigatório, sextuplica o exército entre 1789 e 1814, totalizando, mesmo assim, 250 mil homens. O Exército russo, em 1812, aumenta para 900 mil homens.

Entre 1807 e 1808, a invasão de Portugal desgasta também suas relações com a Espanha, que foi palco de uma enorme resistência protagonizada pela “pequena guerra” local, de onde o nome "guerrilla". Resistência semelhante foi enfrentada também na Itália, sobretudo em Nápoles, onde governava José Bonaparte. Nessa região, atuava o major Joseph Leopold Hugo, com um exército chamado de “Pioneiros negros” ou “Africanos Reais”, por conter brancos e negros prisioneiros dos conflitos no Haiti.

Em 1812, a França, com 130 departamentos, controlava direta ou indiretamente todo o continente europeu, exceção feita às ilhas Britânicas, à Escandinávia, à Rússia e o Império Turco. Mas Napoleão necessitava de todos esses lugares, de homens e recursos, o que levou a muitos confiscos e aumentos de impostos. Em junho de 1812, tendo em vista um possível isolamento da Inglaterra (Napoleão bem sabia que seria muito difícil uma “anexação” do Império do czar), um exército chegava a fronteira russa, cuja campanha normalmente é apontado como um marco do início do ocaso da Era Napoleônica, assunto que poderemos abordar em uma próxima ocasião. 

Daniel Gomes de Carvalho é doutor em História Social pela FFLCH e professor de História Contemporânea na Universidade de Brasília (UnB). É autor do livro Revolução Francesa (2022), da Editora Contexto, e Thomas Paine e a Revolução Francesa (2022), da Editora Fino Traço, texto oriundo de sua tese de doutorado na FFLCH.