"As Cidades Invisíveis", de Ítalo Calvino, é publicado

A obra é considerada a obra-prima de Calvino e um dos livros mais belos da literatura italiana

Por
Alice Elias
Data de Publicação

"As Cidades Invisíveis", de Italo Calvino, é publicado
Segundo Adriana Iozzi Klein, "O livro é, na verdade, um produto consciente da literatura contemporânea, incapaz de representar a realidade complexa, que se mostra o tempo todo fragmentada e, portanto, antimimética". (Arte: Alice Elias)

Em 1972, Italo Calvino publicou As Cidades Invisíveis, considerada a obra-prima de Calvino e um dos livros mais belos da literatura italiana. Referência na história da narrativa da segunda metade do século 20, o livro influenciou gerações de literatos, artistas, arquitetos e urbanistas do mundo inteiro.

A trama, aparentemente ambientada nos tempos medievais, trata da busca por uma cidade ideal para o presente, por meio de um longo diálogo entre Marco Polo e o imperador Kublai Khan. Marco Polo descreve ao imperador as cidades que visitou durante suas expedições – as “cidades invisíveis”, uma vez que são imaginadas.

Dentre tantas obras de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis é uma das mais importantes e celebradas dentro e fora da esfera literária. De escrita refinada e simetria complexa, a obra segue um conjunto de regras: as descrições das cidades respeitam uma estrutura matemática determinada pelo autor. “De fato, projeto, multiplicidade, possibilidades combinatórias, geometria e jogo são as palavras-chave do trabalho literário de Calvino em As Cidades Invisíveis”, explica Adriana Iozzi Klein, professora de Literatura Italiana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de As Cidades Invisíveis para a Literatura? Em linhas gerais, quais as temáticas abordadas pela obra?

Adriana Iozzi Klein: As Cidades Invisíveis, publicado em 1972, tornou-se uma referência na história da narrativa da segunda metade do século 20. O romance - embora seja difícil defini-lo como tal dada sua forma híbrida e seu caráter fortemente antinarrativo, misto de apólogo, aforisma e poema em prosa - é considerado por muitos a obra-prima de Italo Calvino e um dos mais belos livros da literatura italiana contemporânea, que acabou influenciando não só gerações de literatos, mas também inúmeros artistas, arquitetos e urbanistas do mundo inteiro.

A cidade sempre foi um tema que despertou o interesse de Calvino, sendo fonte de inspiração para muitos de seus contos, romances e ensaios. Não é de se estranhar, portanto, que a um certo ponto ele tenha decidido dedicar à cidade uma obra específica, destinada depois a ser uma de suas mais importantes, mais citadas e celebradas também fora do âmbito literário.

Nascido aos poucos, fruto de várias anotações em forma de pequenos poemas rascunhados em papéis avulsos, o livro foi escrito nos anos em que o autor viveu em Paris e, a princípio, tinha o formato de um diário que seguia as impressões e os pensamentos do escritor, obcecado, naquele período, pela cidade. Segundo Calvino, os textos que lia, as exposições de arte que visitava, as discussões com os amigos, tudo acabava se transformando em imagens de cidade. E essas anotações, com o passar do tempo, tomaram a forma de livro.

As Cidades Invisíveis é uma coletânea de narrativas com moldura, nos moldes do Decameron de Boccaccio, e tem como inspiração Il Milione (O Livro das Maravilhas, famoso relato das viagens de Marco Polo transcrito por Rustichello da Pisa, em 1298). A obra apresenta uma escritura refinada e uma estrutura bastante complexa, que segue um determinado conjunto de regras. Seria difícil extrair do livro uma trama, mas podemos afirmar, muito sinteticamente, que se trata de um longo diálogo imaginário em que o jovem Marco Polo descreve a Kublai Khan, imperador dos tártaros, as cidades que ele visitou durante suas expedições. São, porém, cidades criadas na imaginação e por isso “cidades invisíveis”, vivas somente na memória e no sonho, sempre incompletas e incoerentes.

Ainda que tomando como modelo aspectos temáticos e estilísticos de Il Milione, a versão de Calvino fica muito distante da obra original. O eixo narrativo de As Cidades Invisíveis são os diálogos, que servem de moldura para as descrições das 55 cidades, diferentemente do relato do Marco Polo histórico, cujo interesse principal é descrever as cidades do império mongol e os hábitos de seus moradores. As cidades calvinianas são apresentadas numa sequência gradual, segundo um percurso, um itinerário de viagem, que segue uma mutação temática indicativa de uma lenta passagem de um nível utópico positivo para um nível utópico negativo. Ou explicando melhor, de uma dimensão constituída por cidades e situações extraordinárias, impossíveis e excepcionais, mas perfeitamente estruturadas e sem contradições, passa-se progressivamente a uma dimensão artificial, constituída por cidades igualmente extraordinárias, mas repletas de contradições, de problemas ambientais e de angústias existenciais que caracterizam a decadência das cidades, transformadas em metrópoles. O “cenário” é o da fábula oriental, com desertos, caravanas, pastores, especiarias, mulheres nas fontes, mas as descrições aludem o tempo todo aos problemas ecológicos, sociais, industriais, típicos dos nossos tempos.

Paralelamente à discussão sobre a cidade, o livro tem como fio condutor a reflexão sobre a linguagem, isto é, sobre a relação entre as coisas e as palavras, entre os sentimentos vivenciados e os signos usados para representá-los. Como consequência, propõe também uma ampla discussão sobre a literatura já que o próprio livro é uma espécie de metáfora do ato de escrever, entendido como a tarefa de atribuir às palavras múltiplos sentidos de modo que, no final, o leitor possa encontrar ali a história que lhe interessa: “Eu falo, falo, mas quem me ouve retém somente as palavras que deseja... Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido”, sentencia Marco Polo. Como o Gran Khan que diante dos objetos apresentados por Marco Polo deve construir na sua mente uma determinada história, consciente que os objetos assumiam significados diferentes de acordo com a ordem na qual vinham expostos, também o leitor possui a responsabilidade de extrair um sentido plausível, mas nunca categórico, do texto. Por isso o autor quase nunca se refere a uma realidade concreta, mas tenta colocar em discussão o sentido comum das palavras que representam as coisas. Em suma, a questão fundamental não é saber se Marco Polo realmente visitou as cidades que descreve, mas expor a ideia de que as cidades invisíveis existem em função da narração, em decorrência do projeto humano que as edifica. Elas existem pelo simples fato de pertencerem ao campo das possibilidades.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Calvino em As Cidades Invisíveis?

Adriana Iozzi Klein: Como vimos, o autor “finge” distanciar-se narrando a partir de um passado remoto. A obra é aparentemente ambientada nos tempos medievais de Marco Polo, mas fala do presente, da busca de uma cidade ideal para o presente. E não somente esse aspecto chama a atenção, mas também a forma do “romance”, que incorpora princípios da semiologia e do estruturalismo, que fascinaram Calvino na época em que ele se encontrava em Paris. Também as ideias do grupo francês OuLiPo, que propunha uma “nova retórica” baseada na lógica matemática das máquinas de calcular, influenciaram bastante na composição desse livro.

Calvino procura, assim, construir ao longo de seu texto uma imagem literária do conceito de memória que estava se difundindo no campo da tecnologia avançada, ou seja, a memória como repertório potencial, cujo modelo eram as calculadoras eletrônicas e a informática. As cidades apresentadas são variantes combinatórias de uma paisagem urbana, inseridas na moldura do diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan. As descrições das cidades respeitam uma estrutura matemática bem precisa, cuja simetria lembra, entre outras coisas, um esquema métrico, em especial o esquema da sextilha. As cidades de cada rubrica são numeradas de 1 a 5, dispostas em 9 seções, em uma ordem determinada que pode ser comparada a um entrelaçamento de rimas. Todos os capítulos seguem uma determinada lógica. Os trechos em itálico, nos quais o imperador e Marco Polo desenvolvem suas conversas sobre as cidades, enquadram os capítulos precedentes e fornecem a eles um contexto. Os capítulos numerados, onde são apresentadas as descrições das cidades, todas com nomes femininos, possuem grande riqueza de detalhes e parecem pertencer à tradição do fragmento didascálico, dos herbários, dos bestiários, dos livros de viagens medievais. São repetitivos e lembram-nos das monótonas descrições de Il Milione. Os trechos em itálico possuem o tom do diálogo filosófico ou epistemológico e têm por objetivo apresentar uma problemática e definir um modelo, colocando em evidência um processo mental que procura organizar os dados da experiência. As descrições das cidades ou os fragmentos, por sua vez, tentam desenvolver tais problemáticas, mas, ao desenvolvê-las, contrapõem ao modelo uma infinidade de detalhes e exceções que fogem ao rigor lógico e anulam o modelo. O modelo racional da cidade perfeita é destruído pelo desejo subjetivo, pela irracionalidade e pelo sonho.

Anos depois, falando sobre o conceito de “exatidão” em uma das conferências que foram publicadas postumamente em Seis Propostas Para o Próximo Milênio, Calvino afirma que As Cidades Invisíveis foi o livro que lhe permitiu dizer mais coisas porque concentra em um único símbolo (a cidade) suas reflexões, experiências e conjeturas sobre a vida e a arte mas, também, porque constrói uma estrutura facetada em que todos os textos estão próximo uns dos outros, numa ordem que não implica uma consequência ou uma hierarquia, “mas uma rede dentro da qual se podem traçar múltiplos percursos e extrair conclusões multíplices e ramificadas”.

De fato, projeto, multiplicidade, possibilidades combinatórias, geometria e jogo são as palavras-chave do trabalho literário de Calvino em As Cidades Invisíveis. Uma das metáforas mais recorrentes em sua obra, observada principalmente nos livros da fase semiológica, é a do jogo (jogo combinatório). Na verdade, a lei metafórica do jogo organiza a maior parte da obra do escritor tanto no aspecto temático quanto no formal. O que mais chama a atenção nesses livros, no entanto, é o tratamento dado à estrutura narrativa, que exprime uma espécie de filosofia do autor e a forma multifacetada da sua visão das coisas.

Serviço de Comunicação Social: De que forma Calvino articula os espaços e personagens na obra?

Adriana Iozzi Klein: Como já dissemos, o modelo da obra é O Livro das Maravilhas revisitado em versão moderna. Os espaços narrativos não são geográficos, mas mentais, e fazem parte do campo invisível da imaginação.

O Marco Polo de Calvino, diferentemente daquele histórico, é um Marco Polo distorcido, atualizado, ficcionalizado, geométrico e labiríntico. A sua grande dificuldade é descrever a realidade, isto é, a realidade de um mundo cujo significado é apreendido de diferentes formas. Parodiando a história, a trama de viagem e a caracterização do modelo original, Calvino recria um texto em que as descrições das cidades, marcadas pela subjetividade, aparecem sempre ambíguas, revelando diversas faces que podem se reduplicar ao infinito. O livro é, na verdade, um produto consciente da literatura contemporânea, incapaz de representar a realidade complexa, que se mostra o tempo todo fragmentada e, portanto, antimimética.

Há, contudo, um aspecto que merece uma atenção especial, ou seja, o fato de o Marco Polo de Calvino coincidir perfeitamente com o personagem histórico em pelo menos um traço psicológico, o de viajar pelas cidades desconhecidas carregando no coração a imagem de sua cidade de origem. Veneza torna-se, dessa forma, uma categoria ideal, um modelo de cidade construída pelo desejo, pela saudade da infância perdida e ponto de referência para todas as outras cidades. Embora apresente um texto aparentemente fechado na sua organização estrutural, coerente com as regras da literatura como processo combinatório, Calvino opta por uma lógica propositadamente abstrata que segue a direção das irredutíveis necessidades humanas, a geometria dos sentimentos que desenha os perfis das cidades habitadas pelos homens. Ou seja, o autor concebe a cidade como labirinto do inconsciente individual e coletivo e o contrapõe continuamente ao espaço concreto das cidades em que vivemos.

Calvino tem plena consciência de que a cidade ocupa um lugar importante no sistema de símbolos elaborados pela história da cultura. É importante lembrar que o tema da cidade dotada de vida própria reevoca o tema clássico da cidade-utopia, condensação geográfica e arquitetônica ideal, projeto sociológico e político reproposto ciclicamente pelo imaginário coletivo e repensado, constantemente, como meta de perfeição e receptáculo de sonhos. As Cidades Invisíveis, no fundo, é uma obra que indaga a respeito dos aspectos que agem no imaginário coletivo, ou individual, a ponto de transformar o espaço real de uma cidade em um lugar mental. Essa é uma chave de leitura do livro sugerida pelo próprio autor, que afirma em uma entrevista de 1972: “Aquilo que está no coração do meu Marco Polo é descobrir as razões secretas que levaram os homens a viver nas cidades, razões que estariam além de todas as crises. As cidades são um conjunto de tantas coisas: de memória, de desejos, de signos de linguagem; as cidades são lugares de troca, como explicam todos os livros de história da economia, mas estas trocas não são somente trocas de mercadorias, são trocas de palavras, de desejos, de recordações. O meu livro se abre e se fecha sobre imagens de cidades felizes que, continuamente, tomam forma e dissipam-se, escondidas nas cidades infelizes”.

Por fim, pode-se dizer que é um livro realmente fascinante, sobretudo por causa da força e da originalidade de suas sínteses visuais e da invenção daquilo que poderíamos definir como verdadeiras imagens-apólogo. Ele exige uma leitura lenta e reiterada, pois nos sugere uma infinidade de temas para reflexão, que entram constantemente em curto-circuito com aquilo que já temos sedimentado na nossa memória.

Adriana Iozzi Klein tem especialização em Literatura Italiana pela Università degli Studi di Firenze, Florença-Itália, além de ser mestre e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH. Atualmente é professora de Literatura Italiana do Departamento de Letras Modernas e do Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da FFLCH. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Italiana Moderna e Contemporânea, e atua no campo das narrativas estrangeiras contemporâneas, dos estudos comparados e da teoria literária.