Segunda Guerra Mundial: Fim do cerco a Leningrado

A operação militar durou quase 900 dias, e cortou totalmente o contato da cidade com o resto do país

Por
Alice Elias
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Segunda Guerra Mundial: Fim do cerco a Leningrado
Segundo Henrique Canary, "Em 2022, o Tribunal Municipal de São Peterburgo reconheu o Cerco de Leningrado como ato de genocídio contra o povo soviético". (Arte: Alice Elias)


Em 27 de janeiro de 1944, no contexto da Segunda Guerra Mundial, o cerco à cidade de Leningrado chegou ao fim, depois de quase 900 dias. Conhecido como Cerco a Leningrado, foi uma operação militar realizada pelo Exército Alemão que cortou totalmente o contato da cidade com o resto do país, a partir de 8 de setembro de 1941.

Berço da Revolução de Outubro e símbolo da expansão russa, a cidade de Leningrado tinha importância prática, histórica e simbólica. Hitler tinha como objetivo abalar a capacidade produtiva da cidade, dificultar sua participação na defesa do país e destruí-la via bombardeios.

O resultado desse período foi a morte generalizada da população civil: “Os Processos de Nuremberg estabeleceram que cerca de 600 mil pessoas morreram em decorrência do cerco, sendo que apenas 3% foram vítimas de bombardeios e 97% por motivo da fome e frio instalados”, afirma Henrique Canary, historiador e doutor em Literatura e Cultura Russa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Após a Batalha de Stalingrado, o Exército Alemão foi enfraquecido e passou a recuar de volta à Alemanha, o que marcou a vitória do Exército Soviético. “Fruto da resistência do povo durante o cerco, a cidade de Leningrado foi oficialmente reconhecida pelo governo soviético como “Cidade-Herói” e agraciada com a Ordem Lenin”, continua Henrique Canary. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: O que foi o Cerco de Leningrado?

Henrique Canary: O Cerco de Leningrado foi uma operação militar realizada pelo Exército Alemão com a ajuda do Exército Finlandês entre os dias 08 de setembro de 1941 e 27 de janeiro de 1944. Como o nome sugere, consistiu no cerco à cidade de Leningrado (atual São Petersburgo) por todos os lados, durante 872 dias, de maneira a cortar totalmente o contato da cidade com o resto do país. O resultado foi uma mortandade generalizada da população civil. Os Processos de Nuremberg estabeleceram que cerca de 600 mil pessoas morreram em decorrência do cerco, sendo que apenas 3% foram vítimas de bombardeios e 97% por motivo da fome e frio instalados. Hoje, no entanto, muitos historiadores contestam os números oficiais e chegam a calcular os mortos em 1,5 milhão, sendo 780 mil somente no primeiro e mais pesado ano de cerco.

Serviço de Comunicação Social: Qual o contexto do cerco e a forma como ocorreu?

Henrique Canary: O cerco de Leningrado foi uma decisão consciente do alto comando alemão no marco da “Blitzkrieg” contra a União Soviética, ou seja, a guerra que se esperava rápida e indolor. Hitler não tinha especial interesse em tomar o controle sobre a cidade, optando então por uma tática de cerco, o que seria o suficiente para abalar a capacidade produtiva da cidade e dificultar sua participação no esforço de defesa do país, ao mesmo tempo que pouparia os soldados alemães de uma tentativa de invasão, o que poderia se demonstrar uma operação demasiado difícil e sangrenta. Segundo documentos revelados mais tarde, o objetivo era cercar a cidade e destruí-la ao máximo via bombardeio. Após a guerra, o plano era entregar à Finlândia a parte da cidade que fica ao norte do rio Neva e acabar definitivamente com Leningrado como grande centro urbano.

É importante lembrar que Leningrado tinha tanto uma importância prática (empresas de defesa instaladas), quanto histórica e simbólica, já que era o berço da Revolução de Outubro e símbolo da expansão russa para os territórios mais ao norte do país.

Logo nos primeiros meses de guerra, Leningrado foi cercada por todos os lados por tropas alemãs e finlandesas. Apenas um pequeno corredor que passava pelo Lago Ládoga ficou intacto. Durante o inverno, a entrega de mantimentos e combustível era feita por uma estrada improvisada sobre o gelo chamada “Estrada da Vida”. Durante o resto do ano, a comunicação era realizada por barco, sendo que em todas as ocasiões as caravanas se encontravam ao alcance da artilharia alemã e sofriam sempre enormes perdas. Além disso, permaneceu aberta uma via aérea de comunicação, através da qual também chegavam mantimentos à cidade.

De qualquer forma, a quantidade de mantimentos que chegava à cidade nunca foi o suficiente para resolver a fundo o problema da fome e desabastecimento de combustível, como o comprova o número de vítimas do cerco.

A cidade foi parcialmente evacuada no início do cerco, com ênfase na remoção de pessoas, fábricas de defesa e peças museais mais para o leste.

Para combater a fome, que chegou a gerar casos de canibalismo entre a população civil, medidas extraordinárias foram adotadas, como o aproveitamento sistemático das terras urbanas para cultivo (jardins, vias públicas etc.), o estabelecimento de um sistema de racionamento de alimentos e a mistura de serragem à ração diária de pão, que em nenhum momento do cerco atingiu o número mínimo de calorias necessário à sobrevivência humana.

Relata-se que, durante o cerco, as pessoas morriam aos milhares a cada dia. Os corpos se acumulavam nas calçadas e vias públicas literalmente aos montes, que eram recolhidos e enviados para valas comuns.

Serviço de Comunicação Social: Quais as maiores consequências e repercussões desse período?

Henrique Canary: Apesar das condições bárbaras em que se encontrava, a população de Leningrado tentou manter uma vida normal durante o cerco. A vida cultural se manteve ativa, com apresentações musicais e teatrais em praça pública, campeonatos de xadrez e futebol, funcionamento normal de bibliotecas, publicação de jornais, etc.

Outros exemplos de perseverança orgulham os russos e, em especial, a população de Leningrado. Durante todo o cerco, foi feito um enorme esforço para a preservação de obras de arte. Inúmeros monumentos históricos foram retirados de seus lugares originais e enterrados para serem poupados dos bombardeios. Além disso, mesmo nas condições mais duras da fome e frio, o fundo de sementes do Instituto Agrícola Soviético, um dos mais ricos do mundo em diversidade genética, foi inteiramente preservado. Nem uma única semente foi utilizada para alimentação. Todas foram preservadas para pesquisa e reconstrução agrícola pós-cerco.

Ainda assim, muitos objetos de interesse cultural, como palácios, monastérios e cemitérios foram destruídos pelos bombardeios alemães. Um exemplo é a famosa “Sala de  mbar”, dada de presente pelo rei da Prússia a Pedro I e roubada pelos nazistas durante o cerco. Até hoje não se sabe o seu paradeiro.

Serviço de Comunicação Social: Por último, como o cerco chegou ao fim?

Henrique Canary: Desde o início do cerco, o exército soviético realizou uma série de operações para enfrentar as tropas alemãs, que chegaram a totalizar 730 mil soldados no auge do cerco. No entanto, dada a superioridade numérica e de armamento dos alemães, nenhuma dessas tentativas obteve sucesso. Somente em janeiro de 1943 o cerco foi parcialmente rompido, o que ajudou a normalizar um pouco a vida na cidade, com o aumento relativo do fornecimento de comida e combustível. O cerco só foi retirado definitivamente em 27 de janeiro de 1944, depois de uma grande operação militar realizada pelo Exército Soviético e que custou a vida de dezenas de milhares de soldados.

De um modo geral, a vitória do Exército Soviético se deu já no marco da virada da guerra, pós Batalha de Stalingrado, quando o Exército Alemão começou a perder terreno e recuar de volta à Alemanha. Fruto da resistência do povo durante o cerco, a cidade de Leningrado foi oficialmente reconhecida pelo governo soviético como “Cidade-Herói” e agraciada com a Ordem Lenin. Em 2022, o Tribunal Municipal de São Peterburgo reconheu o Cerco de Leningrado como ato de genocídio contra o povo soviético.

Henrique Canary Rodrigues é doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa da FFLCH, além de possuir graduação em História e mestrado em História Contemporânea pela Universidade da Amizade dos Povos da Rússia. Foi professor de História da América, Introdução à Sociologia e Realidade Sócio-Econômica e Política do Brasil, trabalhou como tradutor de russo, revisor de textos e posteriormente como editor-chefe na Editora Sundermann entre 2010 e 2016. Atualmente é professor de russo.