Pesquisadores de Ciência Política comentam sobre eleições 2022

Para fazer uma retrospectiva sobre o tema, entrevistamos dois doutorandos, Hannah Maruci Aflalo e Pedro Donizete Costa Junior, e uma que já concluiu o doutorado, Daniela Costanzo de Assis Ferreira

Por
Eliete Viana e Bruna Correia
Data de Publicação
Editoria

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Praça dos Três Poderes, em Brasília - Foto: José Paulo Lacerda / Agência CNI de Notícias


O ano de 2022 foi marcado por muitos eventos e assuntos. Entre eles, as eleições para presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais, que tiveram grande cobertura da mídia.  

Por isso, as solicitações recebidas pela Assessoria de Imprensa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP relacionadas à política e ao cenário eleitoral foram destaque.

Foram 200 solicitações sobre a temática de um total de 763 solicitações de imprensa de mídias da própria USP (Jornal da USP, Rádio USP, Jornal do Campus e outros veículos que os alunos da Escola de Comunicações e Artes - ECA participam) quanto de veículos externos, nacionais – como a Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e TV Globo – e internacionais – como BBC, El País, The News York Times, La Nacion, Deutsche Welle, The Mainichi Newspapers, MIT Technology Review Brasil, Vlaamse Radio-en Televisieomroeporganisatie (emissora da Bélgica), Agence France-Presse (AFP), Reuters, entre outros.

Para fazer uma retrospectiva sobre o tema, a Assessoria de Imprensa da FFLCH entrevistou (por e-mail) alguns pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da FFLCH, que atenderam muitos pedidos da imprensa no ano de 2022. Dois destes pesquisadores são doutorandos: Hannah Maruci Aflalo e Pedro Donizete Costa Junior, e uma já concluiu o doutorado, Daniela Costanzo de Assis Pereira. 

Balanço geral 

Uma mesma pergunta foi feita para todos os pesquisadores: Como avalia em geral as últimas eleições brasileiras e os seus desdobramentos?

Hannah destacou que as eleições foram desafiadoras. "As últimas eleições foram das mais desafiadoras das últimas décadas. Por serem eleições marcadas pela disseminação do ódio, a violência política, principalmente a embasada em gênero, raça e orientação sexual, foi extremamente alta. (...) Apesar disso, o percentual de mulheres, negros, LGBT+ e indígenas eleitos cresceu e a representatividade – ainda muito distante da proporcionalidade – aumentou. Apesar de essa ser a eleição do "ainda", ela abre caminhos para a política que queremos e marca a vitória institucional da democracia. Isso não significa que nossa democracia não esteja em perigo, nem que não tenhamos que nos preocupar, pelo contrário, temos muito trabalho pela frente", frisou.

Daniela observou que as eleições foram marcadas pelo "terceiro turno". "O terceiro turno já era esperado por quem acompanha a crise política brasileira, mas era difícil saber de onde ele viria e por quais forças ele seria combatido (se seria). O que vimos de mais importante foi o capitólio à brasileira e a omissão – senão a conivência e até a participação – de integrantes dos braços armados do Estado brasileiro, embora a rápida resposta de outras forças tenha segurado a desestabilização almejada pelos invasores do Planalto. Os desdobramentos desses eventos ainda devem ser acompanhados e podem resultar em um fortalecimento do governo, que tem a razão ao seu lado e que pode aproveitar a situação para avançar em investigações sobre os braços armados do Estado e sua participação em aspirações golpistas", comentou.

Costa Junior falou das eleições e as relações externas. "As eleições de 2022, no Brasil, assumiram uma importância crucial, que atravessava os interesses mais profundos de republicanos e democratas [nos Estados Unidos, EUA]. Lula não era a primeira opção dos pombinhos democratas, certamente lhes agradaria uma “terceira via" explicitamente alinhada aos interesses de Washington. Entrementes, o candidato do Partido dos Trabalhadores, passou a ser bem quisto na medida em que era o único capaz de derrotar o “Trump dos Trópicos”, e todo o mais que ele representava. A primeira conclusão é que a Política Externa de Lula III terá uma janela de dois anos para atuar com “certo respaldo” do governo [Joe] Biden. Isto porque, nas eleições de meio de mandato, os republicanos retomaram a maioria do Congresso, e caso retornem à Casa Branca em dois anos, nas eleições presidenciais [2024], certamente voltarão com um candidato extremista ligado a alt-right. Isto significaria uma alteração nas relações bilaterais de Brasil-EUA e fortaleceria a oposição extremista ao governo Lula".

Depois, foi feita uma pergunta específica para cada pesquisador, de acordo com a sua área de pesquisa e os temas que abordaram em entrevistas à imprensa.
 

Hannah
Hannah Maruci Aflalo é doutoranda em Ciência Política - Foto: Acervo Pessoal


Representação política feminina

Para Hannah, foi feita a seguinte pergunta: O número de mulheres candidatas foi o maior das últimas três eleições gerais e o número de mulheres eleitas no pleito de 2022 também cresceu. Mas a representatividade feminina nos governos estaduais, Senado Federal, Câmara dos Deputados e assembleias legislativas continua baixa. Só duas das 27 unidades da federação serão administradas por mulheres: Pernambuco e Rio Grande do Norte, por exemplo. Com estes dados gerais (e outros que quiser apontar) comente sobre a participação feminina e como os temas "relacionados" às pautas femininas foram abordados nas últimas eleições.
Ela pesquisa sobre a representação política feminina, e está com a tese de doutorado em andamento Mulheres em partidos e partidos de mulheres: uma análise das concepções de representação política feminina, com orientação da professora Eunice Ostrensky.



"A sub-representação de mulheres na política é um déficit democrático que tem raízes históricas. Ao falarmos "mulheres", é importante frisarmos que essa não se trata de uma categoria universal e que os marcadores sociais de raça, classe e orientação sexual possuem uma influência decisiva nas experiências de cada uma dessas mulheres na política. Assim, precisamos ter sempre em vista de quais mulheres estamos falando. No caso do Brasil, as mulheres são 51% da população, as mulheres negras 28%, mas ainda temos uma distância muito grande dessa proporção nos representantes eleitos. 

A ausência de importantes parcelas da população em cargos eletivos é danosa para a sociedade como um todo. Para que as leis sejam formuladas de forma justa e que contemplem a sociedade de maneira completa, é preciso da multiplicidade de perspectivas. Se um homem não passa diariamente por problemas relativos à sua segurança no transporte público, por exemplo, qual a chance de ele, enquanto um dirigente do Executivo, priorizar essa questão? As chances com certeza são muito mais baixas do que se estivesse ali uma pessoa que vivesse esse problema e tivesse conhecimento sobre suas especificidades e necessidades.

As pautas relativas às mulheres ganharam mais visibilidade nesse pleito, uma vez que essas foram entendidas como um importante eleitorado, cujos votos poderiam ser decisivos, principalmente nas eleições à presidência, e por isso deveriam ser disputados. Isso se revelou com clareza no papel assumido pelas esposas dos presidenciáveis, com vistas a ganhar o voto das mulheres. Por isso, a escolha dos ministros e ministras foi tão importante para selar essa importância e hoje possuímos o quadro ministerial mais diversos e com a maior presença de mulheres da história do país. Isto não significa, porém, que exista a paridade de gênero e de raça, mas que esperamos estar caminhando para essa direção.

Assim, destaco que o aumento de mulheres candidatas e eleitas, assim como de pessoas negras, LGBT+ e indígenas, nessas eleições é sim um avanço. Porém, há ainda uma disparidade muito grande marcada por raça e classe dentro desses grupos, e ainda estamos muito longe de atingir uma proporcionalidade de maneira que o Parlamento e o governo representem de fato a população brasileira. Soma-se a isso o fato de que a violência política de gênero e raça ameaça não apenas as candidaturas de mulheres, mas também sua permanência na política depois de eleitas. Por isso, a política eleitoral ainda é extremamente excludente e precisa ser reformulada para que contemple efetivamente as diferentes perspectivas".

Hannah Maruci Aflalo também é co-fundadora e diretora da Tenda das Candidatas (@instadatenda), projeto social que capacita lideranças de mulheres para a corrida eleitoral e que tem realizado algumas iniciativas no sentido de suprir a lacuna deixada pelos partidos políticos já pensando nas Eleições Municipais de 2024.
 

Daniela
Daniela Costanzo de Assis Pereira é doutora em Ciência Política - Foto: Acervo Pessoal


Comportamento político e relações entre o Estado e a iniciativa privada 

Para Daniela, o questionamento foi: Em sua visão, quais as consequências que a quebra do sigilo das ações do governo Bolsonaro pode trazer e quais as perspectivas de crescimento econômico do Brasil no novo governo? 
Ela pesquisa política brasileira e escreveu a tese Estado, centrão e empreiteiras: o ensaio republicano de Dilma Rousseff antes da Lava-Jato, com orientação do professor André Singer (a tese foi defendida em dezembro de 2022 e por isso ainda não está disponível no Portal da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo).  



"Olhando de forma ampla para o Estado brasileiro, há algumas quebras de sigilo que estão acontecendo e podem acontecer em relação ao governo Bolsonaro. A primeira é aquela relacionada aos documentos que o governo havia colocado no sigilo máximo de 100 anos. Há coisas que poderão ser reveladas e outras que talvez continuem sob sigilo, a não ser que alguma investigação solicite e consiga aprovar a quebra de sigilo. Então tudo que é relacionado a sigilo bancário ou fiscal será difícil de ser revelado, como informações fiscais sobre os filhos do ex-presidente Bolsonaro. Assim como o processo contra o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello também não deve ser revelado, pois foi colocado em sigilo pelo exército. Já outras informações negadas pelo governo Bolsonaro, seja pelo sigilo de 100 anos ou não, podem ser reveladas mais facilmente pelo novo governo, à medida que ele tenha acesso às informações, como créditos do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] ao agronegócio, visitas ao Palácio do Planalto, reuniões da presidência, etc. Cabe saber se essas informações continuam disponíveis após as invasões aos edifícios dos três poderes em Brasília.

A outra quebra de sigilo que já foi realizada e que não é uma quebra de sigilo, pois acontece todo fim de governo, é aquela do cartão corporativo do presidente. Ao que parece, ela foi ruim para a imagem de Bolsonaro. Além disso, podemos ainda descobrir mais informações e mais documentos oficiais conforme as investigações no STF [Superior Tribunal Federal] e no TSE [Tribunal Superior Eleitoral] avancem.

Nos três casos, as "quebras de sigilo" podem ter um impacto na força do bolsonarismo na sociedade, na possibilidade do ex-presidente concorrer a algum cargo público e na descoberta da verdade, como costuma acontecer em processos de justiça de transição. Por exemplo, seria importante a sociedade ter acesso a informações que a ajudem a compreender o que aconteceu em situações graves de desrespeito aos direitos humanos e de crimes contra a humanidade que aconteceram no governo, como nos casos das ações do governo a favor do vírus durante a pandemia, da não assistência a indígenas assolados pela pandemia de covid-19, por outras doenças e por garimpeiros, da morte de políticos como Marielle e do jornalista Dom Phillips e Bruno Pereira. Por mais que o governo não esteja envolvido em todos esses casos, sua interferência nos órgãos responsáveis pelas investigações podem ter impactado nelas, algo ainda a ser investigado conforme novas informações forem reveladas.

Sobre o crescimento econômico do Brasil, ainda é difícil dizer, pois há uma expectativa de uma recessão global e de baixo crescimento no Brasil para 2023, mas isso pode mudar nos anos seguintes e o Brasil ainda pode contar com aberturas de mercados que podem acontecer no novo governo. O Brasil tem também um mercado interno poderoso que pode ser aproveitado neste governo, como já foi em outros com Lula na liderança, mas ainda não sabemos quais serão as políticas econômicas do governo para entender se este é um caminho viável".

Daniela Costanzo de Assis Pereira, atualmente, é pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). 
 

Pedro
Pedro Donizete Costa Junior é doutorando em Ciência Política - Foto: Acervo Pessoal 


Relações internacionais contemporâneas  

Para Pedro, que desenvolve a tese de doutorado A nova ordem no pós-Guerra Fria, com orientação do professor Jean Tible, a questão foi: Como a Guerra da Ucrânia e as relações internacionais do Brasil (proximidade entre Trump e Bolsonaro, por exemplo) influenciaram nas eleições de 2022?
Entre as áreas de pesquisa dele estão: Economia Política Internacional, Filosofia Política, Relações Internacionais Contemporâneas e Teoria das Relações Internacionais.
 



"O Governo Biden tem dois inimigos muito bem definidos. Um interno e outro externo. Internamente, os Estados Unidos nunca estiveram tão divididos desde sua Guerra Civil, de meados do século XIX. A polarização entre democratas e republicanos é selvagem. O segundo inimigo do governo Biden é um adversário bipartidário e consensual no Departamento de Estado, trata-se da contenção à China, enquanto seu potencial desafiante ao poder global. O Partido Republicano, tal qual era conhecido até o início deste século, já não existe mais. Os clássicos falcões foram esmagados pela alt-right, a nova extrema direita que chega ao poder em 2016, com o trumpismo. Valendo-se de “teorias da conspiração” ilimitadas e, sobretudo, da internet em vez da política tradicional para se organizar e compartilhar opiniões, enxergando no campo político uma disputa explícita entre o “bem” e o “mal”, esta extrema direita articulou-se com tentáculos transnacionais. 

Deste modo, qualquer vitória de um candidato associado a este movimento, em qualquer país do Sistema-Mundo, representa um inequívoco fortalecimento do trumpismo, – que tomou o Partido Republicano de assalto – ou um sucessor radical estadunidense que postule sua candidatura para as eleições de 2024, tornando-se uma eminente ameaça ao governo Biden e os democratas, que ora ocupam a Casa Branca. 

Neste sentido, diversas eleições ao redor do Sistema Internacional, ganharam um peso deveras fundamental, uma vez que passaram a refletir as próprias disputas de poder internas da superpotência dividida. Países como Hungria, Itália, Inglaterra, França, Chile, Bolívia, Peru e Brasil foram alguns destes palcos de disputas draconianas, nos quais candidatos extremistas, assumidamente se identificavam com a agenda trumpista. Certamente o Brasil, por sua própria proeminência regional – como disse Truman: “para onde o Brasil vai a América do Sul vai atrás” – e o bolsonarismo, com suas imbricações umbilicais com a família Trump, se tornou um ator fundamental nestas disputas de poder. 

Na administração Trump se iniciou a nominada “Guerra Comercial a China”. A gestão Biden, por sua vez, não só continuou a “Guerra Econômica” com a China, iniciada por Trump, como a elevou para uma “Guerra Humanitária”, bem ao estilo dos democratas. E, sobretudo, o envolvimento umbilical dos EUA na “Guerra da Ucrânia”, com o enfrentamento à Rússia, alcançou proporções sistêmicas, implicando as grandes potências globais, o que desencadeou no estreitamento de uma “aliança sem limites” sino-russa, o pior dos cenários para a Política Externa Americana".

Pedro Donizete da Costa Júnior é também professor licenciado de Relações Internacionais e Economia das Faculdades de Campinas (FACAMP).