Nascimento de Carolina Maria de Jesus

Autora de “Quarto de Despejo”, Carolina Maria de Jesus narra as condições de moradia na favela

Por
Alice Elias e Pedro Fuini
Data de Publicação

Nascimento de Carolina Maria de Jesus
Segundo Raquel Alves dos Santos Nascimento, "a entrada triunfante de um diário autobiográfico de uma mulher negra pobre no sistema literário brasileiro causou um impacto que ultrapassou a surpresa e denunciou a carência dessa perspectiva no contexto literário brasileiro". (Arte: Alice Elias)

 

Em 14 de março de 1914, nasceu Carolina Maria de Jesus, artista mineira e escritora autodidata. Foi também atriz circense, artesã, compositora e cantora de sambas. Autora de obras como Casa de Alvenaria, Pedaços da Fome e Quarto de Despejo – a última, Best Seller internacional que a tornou conhecida.

Filha de lavradores, se mudou para a favela do Canindé, em São Paulo, cidade onde trabalhou como catadora de papel por 11 anos. Quarto de Despejo, sua obra mais famosa, é um diário autobiográfico de uma catadora de papel que narra, com riqueza de detalhes, as condições de moradia na favela. “Quarto de Despejo revela a miséria que o auge do desenvolvimento econômico queria encobrir. Revela a fome, a desilusão e a moradia em condições subumanas como sendo as únicas companhias das pessoas deixadas para padecer no Quarto de Despejo”, explica Raquel Alves dos Santos Nascimento, doutora em Letras – Estudos da Tradução pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Carolina Maria de Jesus?

Raquel Alves dos Santos Nascimento: Carolina Maria de Jesus (1914 - 1977), foi acima de tudo uma artista e escritora múltipla. Autodidata e leitora assídua, além de exercer a escrita em seus vários registros, como diários, romance, contos, poesia e peças de teatro, Carolina era também compositora e cantora de sambas, atriz circense, artesã entre outras habilidades que vamos descobrindo pouco a pouco à medida que seus manuscritos vão sendo disponibilizados.

Segundo ela mesmo conta em uma mini biografia enviada em 11 de agosto de 1973 para a  editora alemã Insel do grupo Suhrkamp, ela nasceu na cidade de Sacramento no Estado de Minas Gerais em 14 de março de 1914. Foi filha de lavradores, profissão que também chegou a exercer até a idade de 18 anos. Abandonando a casa paterna, foi tentar a sorte na cidade de São Paulo. Antes de editar suas obras, também exerceu a profissão de doméstica e depois com a vinda dos filhos João José, José Carlos e Vera Eunice Jesus, viu-se obrigada a deixar a profissão e dedicar-se aos filhos, passou a exercer a profissão de catadeira de papel a qual exerceu por 11 anos, foi nessa época que escreveu a maior parte de seus livros e também vários artigos para os jornais da época.

Em 1940, Carolina publicou, pelo que se sabe, seu primeiro poema O Colono e o Fazendeiro, no Jornal da Manhã e a matéria foi intitulada: “Carolina Maria, poetiza (sic) preta”. Vinte anos depois, em 1960, já bastante decepcionada com meio editorial, por conta de investidas frustradas para publicar sua obra ficcional, publicou o livro Quarto de Despejo, Best Seller internacional. A partir daí  ficou conhecida como escritora Favelada. Título que por muito tempo aguçou a curiosidade e o instinto voyeurista das classes mais abastadas no mundo todo.

Segundo essa mesma minibiografia, "Carolina sofreu muito no meio literário e por isso não quer mais editar suas obras, sendo que alguns experts que conseguiram chegar a algumas das obras dizem ser obras primas da literatura brasileira”.

De fato, foi possível constatar, de acordo com muitos trabalhos acadêmicos que se destinaram a comparar original e obra publicada, que Carolina sofreu um processo de editorial bastante suspeito. Não é raro encontrar nos livros publicados inserções de trechos que jamais saíram das canetas de Carolina, ou supressões de trechos que compunham sua dicção poética.

Depois do sucesso de Quarto de Despejo, a autora ficou motivada a finalmente publicar alguns de seus escritos ficcionais, como o romance-novela Pedaços da Fome e Provérbios, mas eles não receberam o mesmo reconhecimento. Seu sucesso relâmpago quase não chega ao fim dos anos 1960.

Fora do Canindé, depois de algumas tentativas de sentir-se em casa em bairros de casas de alvenaria (nome de seu segundo livro), a autora parece ter se sentido bem em um sítio de sua propriedade na localidade de Parelheiros onde criava galinhas e fazia algumas plantações sem interesses comerciais e passou o fim de seus dias. Em 1977, Carolina deixa esse mundo para poetizar em outro plano, mas seu legado permanece vivo em cada pesquisa realizada sobre ela, coletivo que se inspira nela, sem falar nos muitos manuscritos ainda inéditos. 

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais obras? O que a escritora aborda em sua obra mais famosa, Quarto de Despejo?

Raquel Alves dos Santos Nascimento: Carolina publicou em vida, além de Quarto de Despejo (1960), Casa de Alvenaria (1961), Provérbios (1962), Pedaços da Fome (1962). Postumamente foram publicados Diário de Bitita (1986), Meu Estranho Diário (1996), Antologia Pessoal (1996), Onde Estás Felicidade (2014), Meu Sonho é Escrever (2018) e Cliris (2019). Em 2021, a Companhia das Letras publicou uma edição estendida e sem cortes baseada nos manuscritos de Casa de Alvenaria e tem o projeto de publicar toda a obra manuscrita da autora acessível.

Quarto de Despejo é um diário autobiográfico de uma catadora de papel. O livro, escrito em primeira pessoa, marca o cenário do gênero autobiográfico com uma voz fora do cânone narrando condições de moradia e sobrevivência em favela ainda novas no imaginário paulistano. Nele é narrado com riqueza de detalhes o cotidiano dessa catadora e da extinta favela do Canindé, em São Paulo.  Além disso, registra fatos relevantes da vida social e política do Brasil entre 1955 e 1960. Em linguagem nua e crua, Quarto de Despejo revela a miséria que o auge do desenvolvimento econômico queria encobrir. Revela a fome, a desilusão e a moradia em condições subumanas como sendo as únicas companhias das pessoas deixadas para padecer no Quarto de Despejo. O livro é sobre elas, mas também sobre as belezas da natureza que não escolhe para quem se mostra e sobre o sol que não aquece somente os que têm posses. As pequenas alegrias de valor imenso, como o ouvir a gordura esquentando no fogão, as valsas vienenses no rádio, o dançar no barraco com os filhos, também são contadas no livro entre outras riquezas.

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância da escritora para a história literária brasileira?

Raquel Alves dos Santos Nascimento: Para além de ter sido um fenômeno literário que quebrou recordes de vendas e de traduções pelo mundo todo, acredito que a entrada triunfante de um diário autobiográfico de uma mulher negra pobre no sistema literário brasileiro causou um impacto que ultrapassou a surpresa e denunciou a carência dessa perspectiva no contexto literário brasileiro, ainda que ele estivesse despreparado para compreendê-lo em sua amplitude.

Ademais, Carolina insere em suas narrativas conectadas com momentos históricos do Brasil, a presença, agência e a importância da população negra na constituição do Brasil-nação, um ótimo exemplo disso é o livro Diário de Bitita.

Serviço de Comunicação Social: Você poderia nos contar um pouco sobre as pesquisas que desenvolveu em sua pós-graduação?

Raquel Alves dos Santos Nascimento: Intitulada “Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus na Alemanha: mesma tradução, diferentes leituras - uma análise a partir dos paratextos das diversas edições sob a ótica da Linguística de Corpus”, minha tese de doutorado teve como objetivo apresentar uma análise crítica da tradução para o alemão de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, sob a perspectiva dos elementos paratextuais que compõem o livro traduzido em 1962 por Johannes Gerold e reeditado nove vezes no período entre 1962 e 1989. A tradução segue o enquadramento dado ao livro pela recepção brasileira, mas encontra solo fértil em um momento político-ideológico das ex-Alemanhas Ocidental e Oriental na década de 1960 que revela interesse pela alteridade e suas condições sociais específicas.
A análise dos elementos paratextuais que compõem o livro como capa, orelha, quarta capa, prefácio e posfácio revelou a importância dada aos aspectos político-sociais do livro e o objetivo de orientar a compreensão e a leitura desta tradução. Isso pode ser vislumbrado nas respostas de leitores-teste da obra e dos paratextos que, na sua maioria, sofreram influências desses textos. Além da característica de orientação, esses paratextos apontaram para características determinadas pelos que encomendaram a tradução.
Já a dissertação de mestrado, intitulada “Do exotismo à denúncia social: sobre a recepção de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, na Alemanha”, teve como principal foco identificar os possíveis eixos de recepção a partir da análise de artigos de jornal publicados sobre o livro e a autora naquele país.
Ambos os trabalhos contaram com recursos da Linguística de Corpus como abordagem teórico-metodológica que permitiu a ampliação das análises textuais. Os Estudos Descritivos da Tradução e a teoria de paratextos de Genette (2009) foram tomados como principais aportes teóricos.

Raquel Alves dos Santos Nascimento é mestre e doutora em Letras pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH, e participou do programa de bolsas DAAD/CAPES de doutorado-sanduíche na Universidade de Leipzig, na Alemanha. Em 2021 e 2022 ministrou cursos sobre Carolina Maria de Jesus no âmbito da Exposição "Um Brasil para Brasileiros" do Instituto Moreira Salles. Ainda inspirada pela autora participou em 2021 da publicação Carolinas, organizada pela FLUP (Feira Literária das Periferias - RJ) e em 2023 contribuiu com um capítulo no livro Traduzindo no Atlantico Negro Vol.2 da Editora Ogum´s.     
Para quem se interessar, sua tese de doutorado está disponível em Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus na Alemanha: mesma tradução, diferentes leituras - uma análise a partir dos paratextos das diversas edições sob a ótica da Linguística de Corpus, e sua dissertação de mestrado em Do exotismo à denúncia social: sobre a recepção de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, na Alemanha