Jejum de Mahatma Gandhi contra opressão britânica na Índia

Os jejuns de Gandhi eram uma forma de resistência não violenta

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
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Segundo Rafael Regiani, “o colonialismo britânico, apesar de ter durado menos de um século, deixou múltiplas marcas na Índia”. (Arte: Gabriela Ferrari Toquetti)

Há 90 anos, em 8 de maio de 1933, o ativista Mahatma Gandhi iniciou um jejum como forma de protesto à opressão da Grã-Bretanha na Índia, que, na época, era colônia do Estado britânico. Nesse cenário, o processo de independência indiana foi longo e teve Gandhi como figura central. Seus jejuns funcionavam como uma maneira de mostrar discordância em relação àquilo que julgava errado, em razão de seu amplo reconhecimento e de sua autoridade moral. Gandhi não utilizava os jejuns como chantagem, mas sim na esperança de demonstrar suas convicções e fazer com que os britânicos mudassem de posição.

Em 1942, com a fragilização causada na Grã-Bretanha pela Segunda Guerra Mundial, os indianos iniciaram o movimento Quit India para exigir a independência com o apoio de Gandhi, que passou a pressionar ainda mais as autoridades britânicas. Ele acabou preso e, na cadeia, iniciou mais um jejum, pois sabia da grande revolta que seria iniciada caso viesse a falecer. Sua tática foi bem sucedida e ele foi solto. A independência da Índia ocorreria apenas em 1947, mas Gandhi não viveu por muito tempo para ver seu país independente: foi assassinado por um hindu extremista em janeiro de 1948.

A resistência não violenta utilizada por Gandhi serviria como modelo para diversos movimentos sociais ao redor do mundo. Além disso, as heranças do colonialismo estão presentes na Índia em múltiplos aspectos até hoje, como nas fronteiras, no sistema político e na língua inglesa, adotada pela administração pública. “Poderia ainda acrescentar a influência britânica na infraestrutura ferroviária, no campo da literatura, nos esportes como o críquete, o preferido nacionalmente – enfim, muitas coisas para serem enumeradas neste breve espaço”, afirma Rafael Regiani, mestre em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre o contexto histórico que levou ao domínio britânico na Índia?

Rafael Regiani: O colonialismo britânico na Índia se desenvolveu inicialmente na forma de empreendimento comercial através da Companhia Inglesa das Índias Orientais, que adquiriu terras na província de Bengala do Império Mogol, então a força dominante no subcontinente indiano, mas que já estava em declínio e perdendo terreno para outras forças estrangeiras, como os britânicos e os franceses, adquirindo possessões coloniais, ou mesmo forças políticas nativas, como os maratas e os sikhs, construindo seus impérios.
A Grã-Bretanha, passada a Segunda Revolução Industrial, entrara na etapa imperialista do desenvolvimento capitalista, quando se busca aumentar a acumulação de capital através da dominação do mercado exterior. A Índia, país grande e populoso, tornou-se a principal colônia do Império Britânico, importando grande quantidade de produtos industrializados, como têxteis, e fornecendo a matéria-prima, uma troca desigual que desmontou a indústria artesanal indiana e desorganizou a economia dos vilarejos, a espinha-dorsal da Índia.
Após a Revolta dos Cipaios, em 1857, uma revolta que começou entre os soldados (sepoys) a partir da região de Bengala sob um boato de que gordura de porco estava sendo usada para lubrificar as armas – o que era considerado impuro –, os britânicos ganharam mais terreno em detrimento dos mogóis, inclusive tomando a capital Delhi. Ao final da rebelião, a Índia foi declarada um Vice-Reino britânico pela Rainha Victoria e posta sob administração direta do Estado britânico e não mais através de uma empresa.

Serviço de Comunicação Social: Como Mahatma Gandhi transformou um jejum em uma ferramenta política contra a opressão britânica?

Rafael Regiani: Os jejuns de Gandhi eram parte de uma estratégia de luta contra o domínio colonial britânico que ele chamava de resistência não-violenta (ahimsa). Gandhi possuía uma grande autoridade moral e utilizava os jejuns como uma forma de mostrar sua desaprovação por algo que considerava moralmente errado, na esperança que o seu gesto de penitência fizesse a outra parte mudar de posição e concordar com ele. Não utilizava como uma forma de pressão e chantagem que fizesse a outra parte mudar de fora para dentro, posto que pareceria uma mudança forçada, coagida, o que iria contra a filosofia de não-violência dele, mas esperando que a mudança se desse a partir de dentro dela.
A primeira vez que Gandhi jejuou publicamente foi para arbitrar uma disputa salarial entre trabalhadores e proprietários de moinhos no norte da Índia, em 1916, uma vez que ambas as partes respeitavam a figura de Gandhi como justa e imparcial para mediar a disputa. A partir dali, ele sempre usaria essa estratégia como forma de induzir as partes à negociação em tempos de crise.
Gandhi jejuaria novamente diversas vezes no período pré e pós-independência, quando os ânimos acirrados entre hindus e muçulmanos provocavam ondas de violência comunal com milhares de mortos, feridos e refugiados, e Gandhi tentava manter a união entre hindus e muçulmanos em favor da causa da independência e unidade da Índia.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os britânicos se viram atacados e fragilizados pelos nazistas, então eles tentaram obter o apoio político e material de outros países, incluindo o do grande contingente militar disponível na Índia, mas as lideranças nacionalistas indianas inicialmente relutaram em apoiar a Grã-Bretanha. Eles se aproveitaram da posição de fragilidade da metrópole para iniciar a campanha Quit India, em 1942, demandando a retirada britânica do país. Gandhi, que tradicionalmente tinha uma postura mais colaboracionista com as autoridades coloniais britânicas, também mudou de atitude e passou a pressionar mais. Eles foram presos, e da cadeia Gandhi iniciou um jejum de 21 dias. Gandhi arriscava sua própria vida sabendo que, se eventualmente morresse por causa da intransigência britânica, a ira da população com a morte de seu carismático líder provocaria revolta e desestabilizaria o país ainda mais, algo que os britânicos queriam evitar. Ao final, os britânicos, temendo pela sua saúde, relaxaram a prisão e prometeram conceder a independência para a Índia após a guerra se houvesse colaboração indiana na luta contra os nazistas na Europa, o que acabou ocorrendo em 1947.

Serviço de Comunicação Social: De que forma as marcas do colonialismo estão presentes atualmente na Índia?

Rafael Regiani: O colonialismo britânico, apesar de ter durado menos de um século, deixou múltiplas marcas na Índia. As fronteiras da Índia atual foram traçadas pelos ingleses, tema que estudei na minha dissertação de mestrado. A que separa a Índia do Paquistão chama-se Linha Radcliffe, traçada às pressas, em 1947, por um jurista britânico sem conhecimento da Geografia; a que separa o Paquistão, na época Índia Britânica, do Afeganistão chama-se Linha Durand, traçada em 1893 à revelia da população pashtun local, que ficou dividida entre os dois Estados; e a que separa a Índia da China chama-se Linha McMahon. Então, basicamente, todos os problemas de segurança territorial que a Índia enfrenta hoje, fontes de intermináveis conflitos esporádicos, são heranças do colonialismo inglês e sua tentativa de dar contornos precisos ao território da colônia e separá-la dos Estados vizinhos.
O sistema político indiano atual é herança dos ingleses. A tradição política hindu era monárquica, mas uma monarquia descentralizada. Os invasores islâmicos substituíram esse modelo por uma monarquia centralista ao estilo persa, unificando administrativamente o país. E os britânicos impuseram o sistema parlamentarista na década de 1930. Após a independência, a Índia rompeu com a Coroa britânica para virar uma república, mas manteve o parlamentarismo, em que o primeiro-ministro é o chefe de governo e mais forte do que o presidente.
O aparato estatal, as instituições, a estrutura da governança etc., muitas coisas da administração colonial britânica simplesmente foram tomadas pelos indianos na independência e mantidas. O Estado secular, tentando manter uma neutralidade e equidade política entre os hindus e os muçulmanos, também é herança do liberalismo inglês, do jeito inglês de pensar, herdado pela elite indiana, que é fortemente anglicizada, uma vez que seus líderes foram educados na própria Inglaterra. Personalidades como Gandhi, Nehru, Ambedkar, Savarkar, Jinnah etc., todos estudaram em universidades inglesas.
A adoção e utilização da língua inglesa na administração pública é outra herança colonial. Sua origem remonta à introdução do idioma pelos britânicos no Serviço Civil Indiano, na década de 1830, no lugar da língua persa, e teve um efeito unificador no país, que é muito fragmentado em diversas etnias e dialetos. Alguns grupos, como os tâmeis, de cultura dravídica, no sul da Índia, preferem falar o inglês como língua nacional do que o hindi, pois consideram a imposição deste um imperialismo cultural do norte do país, e o inglês, vindo de fora, seria etnicamente mais neutro. Ainda hoje, o inglês é um dos 38 idiomas oficiais da Índia e amplamente utilizado nos negócios.
Poderia ainda acrescentar a influência britânica na infraestrutura ferroviária, no campo da literatura, nos esportes como o críquete, o preferido nacionalmente – enfim, muitas coisas para serem enumeradas neste breve espaço.

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Rafael Regiani é mestre e doutorando em Geografia Humana pela FFLCH. Atua principalmente nos seguintes temas: geopolítica, Índia, fronteiras.