Pesquisa acompanhou opiniões de adolescentes em mais de 100 escolas no município de São Paulo e avaliou como pais e responsáveis exercem a autoridade no ambiente doméstico
Aprovada em 2014, a chamada “Lei da Palmada” limitou o uso da força física como forma de pais educarem os filhos. No entanto, a sociedade brasileira encontra-se dividida sobre o castigo corporal ser ou não uma forma de os pais exercerem sua autoridade familiar. Uma tese de doutorado defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP avaliou como os conceitos de autoridade e poder parental variam diante de situações nas quais castigos físicos são parte ou não da educação de adolescentes. O sociólogo Renan Theodoro de Oliveira, autor da tese, conversou com o Serviço de Comunicação Social da FFLCH sobre a pesquisa. Confira a entrevista abaixo:
Serviço de Comunicação Social: Quando a justiça pode interferir na autoridade familiar?
Renan Theodoro de Oliveira: Há diversas ocasiões em que a Justiça pode interferir na vida familiar, como em situação de flagrante abandono ou maus tratos. Apesar de não ser esse o tema principal da minha tese, tive de compreender o contexto em que o uso da força física pelos pais, no exercício da autoridade, passa a ser regulado pelo Estado. Foi por isso que preparei um capítulo a respeito das discussões em torno da aprovação da Lei nº 13.010 de 2014. Apesar da comoção gerada pelo caso que dava nome ao projeto (o menino Bernardo Boldrini foi assassinado com uma super dose de medicamentos), no capítulo que preparei a respeito, destaquei como no debate público não havia (e ainda não há) consenso em torno dos limites para o poder de pais, mães e responsáveis sobre os corpos de seus filhos, em circunstâncias de disciplinamento. Como em outros temas de relevância nacional, a sociedade brasileira também encontra-se dividida a respeito da pertinência desse tipo de controle do Estado sobre a vida familiar. No entanto, o que as e os especialistas na área apontam há anos é que os pais precisam ser preparados para evitar o uso de força física contra seus filhos.
Serviço de Comunicação Social: O que significa a sigla SPLSS?
Renan Theodoro de Oliveira: Trata-se do Estudo da Socialização Legal em São Paulo. A sigla está em inglês (Sao Paulo Legal Socialization Study). Esse estudo faz parte do Projeto de Pesquisa que o Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), ligado ao departamento de Sociologia, realiza com incentivo da Fapesp. Nesse projeto do NEV, que recebeu o nome "Construindo a democracia no dia-a-dia: direitos humanos, violência e confiança institucional" procuramos compreender quais são os principais fatores que influenciam nas percepções que a população nutre a respeito das autoridades da vida pública no Brasil, com enfoque em São Paulo. A confiança e a legitimidade de instituições como a Polícia, ou o Sistema de Justiça Criminal de maneira mais geral, são elementos fundamentais para explicar a violência e a criminalidade no Brasil. Colocado de maneira sumária, a premissa é que quando as autoridades são legitimadas, é improvável que a população procure formas particulares de resolução de conflitos. Assim, no estudo SPLSS focalizamos esse processo mais amplo na fase da adolescência. Partimos da ideia de que as opiniões e as atitudes que os indivíduos desenvolvem em relação às autoridades são fruto dos processos de socialização, são transmitidas entre gerações, aprendidas e reelaboradas pelos mais novos. Para tanto, o SPLSS focalizou em três figuras de autoridade que são consideradas fundamentais nesse processo: os pais, os docentes e a polícia. Em minha tese, eu focalizei nas relações familiares. Mas, junto de meus colegas do NEV, já investiguei a legitimidade da autoridade dos professores e da autoridade policial aos olhos adolescentes.
Serviço de Comunicação Social: Detalhe um pouco sobre sua pesquisa feita com jovens no período de 2016 e 2019?
Renan Theodoro de Oliveira: A pesquisa não foi elaborada apenas por mim, mas por uma equipe interdisciplinar que atua no NEV. O principal instrumento de coleta de dados do SPLSS foi um survey de caráter longitudinal. Sendo a primeira etapa da pesquisa no ano de 2016, os mesmos 800 adolescentes foram acompanhados por quatro anos consecutivos. Eles foram convidados a responder nosso questionário de tipo survey, que era administrado uma vez por ano. Entre um ano e outro, a estrutura do questionário permanecia praticamente inalterada, de forma que fosse possível analisar esses dados em relação às mudanças e permanências nas opiniões dos e das adolescentes entrevistados. A amostra compreendeu estudantes de mais de 100 escolas públicas e particulares do município de São Paulo. Puderam participar da pesquisa adolescentes que haviam nascido no ano de 2005. Assim, eles tinham em média 11 anos no primeiro ano de coleta de dados e 14 ao final. Essa é a faixa etária do estudo e, consequentemente, da minha tese. Participaram do estudo apenas aqueles adolescentes cujos pais assentiram por meio de assinatura de termo de consentimento.
Serviço de Comunicação Social: Especifique sobre a legitimidade da Modelagem Linear Hierárquica?
Renan Theodoro de Oliveira: A Modelagem Linear Hierárquica foi uma das técnicas de análise estatística que empreguei para analisar os dados da minha tese. Recorri a esse tipo de técnica porque era a que melhor atenderia a minha necessidade de observar como uma determinada variável mudava ao longo do tempo. A minha variável de interesse era a legitimidade da autoridade familiar. Empregamos no SPLSS um arcabouço metodológico que tem sido muito utilizado nos estudos de legitimidade mundo afora há algumas décadas. Grosso modo, a legitimidade é compreendida por esse campo como uma questão de aceitação da autoridade e reconhecimento do direito dessa autoridade exercer poder. Assim, na minha tese, a variável de legitimidade dos pais diz respeito à concordância expressa pelos adolescentes em torno do poder dos pais de fazerem regras e do seu dever, enquanto filhos, de obedecerem aos pais.
Serviço de Comunicação Social: Com base em sua pesquisa, fale-nos sobre a autoridade democrática para obtermos melhores resultados?
Renan Theodoro de Oliveira: A partir das respostas dos adolescentes, em minha tese, eu identifiquei três modos como o poder parental é exercido. Um primeiro grupo de adolescentes afirma que, quando alguma regra é desrespeitada em casa (como, por exemplo, quando eles deixam de arrumar o seu quarto) os pais chamam sua atenção, expressam verbalmente alguma forma de responsabilização e mesmo deixam os filhos de castigo, como ficar sem ver TV. Outro grupo afirmava que, além dessas formas brandas, os pais também empregavam algumas formas de violência física, como bater ou ameaçar. É importante desde já notar que esses adolescentes eram também os que mais afirmavam que o ambiente doméstico era permeado por outros tipos de violência interpessoal - o que em si já nos leva ao cerne da problemática levantada pela Lei Menino Bernardo e similares, qual seja, o fato de que não se trata tão somente de castigo físico perpetrado apenas em circunstância de exercício da autoridade parental. Em geral, o castigo físico vem acompanhado de outras formas de violência interpessoal (e é por isso que é preciso estar atento ao que acontece no ambiente doméstico, porque uma simples palmada pode indicar abusos de outra natureza). Por fim, um terceiro grupo de adolescentes afirmava que nem castigo físico nem reprimenda verbal eram aplicados pelos pais. Em seguida, eu investiguei como a opinião dos adolescentes a respeito da legitimidade dos pais variava entre esses três grupos, ao longo do tempo. Em parte eu confirmei minha hipótese de trabalho, em parte fui surpreendido pelos resultados. Eu esperava que os adolescentes cujos pais e responsáveis aplicassem castigos físicos seriam os que apresentariam o menor nível de legitimidade, o que de fato os dados demonstraram. O que eu não esperava encontrar é que os níveis de legitimidade dos pais seriam também mais baixos entre aqueles adolescentes cujos pais simplesmente não aplicam formas não físicas de violência. Esse dado me permitiu aprofundar na reflexão a respeito da atualidade da figura de autoridade para as novas gerações. Ao contrário do que se possa pensar a partir de uma perspectiva conservadora, a autoridade familiar não está perdida entre os mais jovens. Pelo contrário, os mais jovens demandam que a autoridade seja exercida. A questão contemporânea mais relevante passa a ser os modos como a autoridade é exercida. O que não parece mais ser aceito pelos adolescentes é a autoridade inquestionável. Isso é bom, do ponto de vista da democracia.
Serviço de Comunicação Social: Por fim, você poderia falar um pouco mais sobre a Lei da Palmada e se precisaria de alguma atualização?
Renan Theodoro de Oliveira: Não acredito que a partir da minha tese seja capaz de advogar por alguma atualização na referida Lei. De fato, desde a sua promulgação, apontam-se limites à sua eficácia, principalmente porque faltariam-lhe mecanismos mais punitivos. Não sei se a solução é mais punição, nos termos da severidade que alguns setores reivindicam. De todo modo, tivemos recentemente a aprovação da Lei Henry Borel (Lei nº 14344/22), que justamente prevê mais medidas protetivas e torna hediondo o assassinato de adolescentes. O mais difícil nessa matéria é gerar o registro da violência doméstica, pelo óbvio: não sendo uma forma letal de violência, é possível que inúmeros casos nunca sejam publicizados, assim como ocorre com as violências contra as mulheres - que aliás podem em parte ser pensadas conjuntamente com a violência contra crianças e adolescentes. Eu diria que não parece ser o caso de atualização das leis, mas de escrutinar a capacidade de aplicação das referidas leis. É preciso fortalecer mecanismos de identificação e tratamento desses casos. A escola segue sendo um local em que a violência doméstica torna-se pública. Mas é preciso capacitar profissionais para lidar com isso. Do contrário, torna-se um fardo a mais sobre as costas das professoras e professores, bem como de outros profissionais escolares. Mas eu sou positivo quanto ao futuro do país nesse tema. Apesar de jovem, a Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes é uma dessas iniciativas que alimentam meu otimismo. Trata-se de um grupo que congrega diversas instituições da sociedade civil - como o NEV - e que tem avançado nessa pauta, seja com iniciativas de comoção da opinião pública seja com elaboração de políticas públicas junto ao legislativo brasileiro em Brasília.