Kabengele Munanga fala sobre vida acadêmica, antropologia e racismo

O docente receberá título de Professor Emérito na próxima sexta-feira, 2 de junho

Por
Gabriela Ferrari Toquetti e Paulo Andrade
Data de Publicação
Editoria

Antropólogo e professor aposentado, Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo no início da Segunda Guerra Mundial. Com um extenso currículo, produziu contribuições fundamentais na área de Antropologia e de Estudos Africanos ao longo de sua vida. Na próxima sexta-feira, 2, receberá o título de Professor Emérito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em entrevista ao Serviço de Comunicação Social, Kabengele comentou sobre sua vida profissional, as relações entre Brasil e África e a falta de representação negra nas universidades.

Trajetória e vida acadêmica

À época do nascimento de Kabengele, o Congo estava sob colonização belga, que durou até 1960. Quatro anos após a independência, ele decidiu estudar antropologia. As universidades ainda estavam nas mãos dos colonizadores e contavam apenas com professores brancos. Claude Lévi-Strauss descreveu a antropologia como filha do capitalismo e do imperialismo, isto é, como corpus teórico e intelectual para defender a colonização e a exploração. “A antropologia justificava a inferioridade racial do negro em relação ao branco, a inferioridade das culturas africanas e do mundo negro de modo geral”, explica Kabengele.

Por que, então, estudar aquilo que serve à colonização? “Por intuição e por aventura”, o futuro Professor Emérito quis descobrir e transformar a antropologia. Na Universidade Oficial do Congo, era o único aluno de sua turma e, depois de se formar, foi convidado para ser professor assistente na mesma instituição.

Então, foi estudar na Bélgica. Nessa época, voltou para o Congo por um breve período para realizar uma pesquisa de campo, mas sua bolsa de estudos foi cortada por ordem do governo – o país passava por um ditadura militar e a família de Kabengele fazia parte da oposição.

Em 1973, graças ao professor Fernando Mourão – que estava fazendo contato com universidades africanas para restabelecer uma relação de cooperação –, recebeu uma bolsa do Itamaraty para vir à USP e continuar o mesmo projeto. Entre 1975 e 1977, terminou seu doutorado enquanto aprendia a língua portuguesa.

Ao longo de sua carreira, o antropólogo foi professor convidado em universidades de diversas cidades, como Montreal, no Canadá, e Maputo, capital de Moçambique. Em 2012, aposentou-se pela USP, mas continua até hoje em suas atividades acadêmicas no Centro de Estudos Africanos.

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Foto: Pedro Seno

Brasil, África e racismo

“Cheguei [ao Brasil] em 1975, em pleno governo militar do Presidente Geisel”, conta o professor, que saiu de uma ditadura em seu país natal e se deparou com outra em território brasileiro. Na USP, empenhou-se em construir, aos poucos, uma antropologia engajada: “Mas tudo é um processo; não comecei a fazer uma antropologia diferente de um dia para o outro”.

Kabengele sentiu, também, que seu papel era ensinar o Brasil sobre a África e mostrar o verdadeiro continente africano aos brasileiros: “Quando cheguei aqui, eu senti que os brasileiros não conheciam a África”. Ele relata que ouvia perguntas como “você já caçou um leão ou um leopardo?” e “existem carros lá [na África]?”. O antropólogo contou um pouco mais de suas impressões sobre os brasileiros: “A ideia que tinham da África era uma ideia de Safári, filme de Tarzan, mato, gorila, chimpanzé”.

Estereótipos como esses ajudam a perpetuar uma cultura racista, explica o professor. Citou, então, o caso de Vinícius Júnior, jogador do Real Madrid que foi vítima de racismo em partida contra o Valencia no último domingo, 21. Quando questionado sobre seus sentimentos perante situações como a sofrida por Vini Jr, Kabengele replicou: “O mundo é racista. O racismo faz parte da história da humanidade e tem raízes profundas. Os países colonizadores, que foram beneficiados pelo tráfico negreiro, são países racistas. Alguns [racistas] são explícitos, como aqueles que vimos no estádio, outros se escondem e outros são racistas inconscientes. O mais importante é que existam leis antirracistas, uma educação que mostre a riqueza da diferença e da diversidade cultural e políticas de inclusão. As leis só punem as práticas que podemos observar, mas não conseguimos punir o que está na cabeça das pessoas. Isso só a educação pode fazer”.

A antropologia no Brasil

Quando chegou ao Brasil, Kabengele conta que encontrou uma antropologia “diferente”. Era uma antropologia feita pelos brasileiros, que estudavam sua própria sociedade e sua própria realidade com consciência de seus problemas. “Os brasileiros produziam suas teorias em vez de simplesmente copiar teorias de fora”. Mesmo assim, havia falhas: “Professores brancos falavam de indígenas sem escutar os indígenas, ou falavam de negros sem escutar os negros. Professores homens falavam de mulheres sem escutar as mulheres”. Porém, o antropólogo afirma que isso vem passando por um processo de evolução nos últimos 40 anos.

A antropologia cresceu e se diversificou muito, segundo Kabengele. Hoje, os estudos de antropologia da USP estão entre os melhores do mundo. A “antropologia engajada”, como ele chama, “acompanha a evolução e a dinâmica da sociedade contemporânea”. Ele completa: “Eu diria que aprendi mais antropologia na USP do que com os colonizadores belgas”.

Quanto à evolução da antropologia na Europa, Kabengele afirma que o processo é lento e ainda há problemas que não foram superados. No entanto, algumas universidades já estão produzindo “uma antropologia africana em vez de uma antropologia sobre a África”. Apenas o extenso estudo sobre o racismo não é suficiente: “É um longo processo. Quantos livros já foram escritos sobre o racismo no mundo? Mas a racionalidade não resolve todos os problemas da humanidade”.

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Foto: Pedro Seno

Os negros nas universidades

A população negra, no entanto, ainda é sub-representada nas universidades. Na USP, há cerca de 10 mil professores e menos de 100 são negros, segundo Kabengele. Por isso, o futuro Professor Emérito afirma que é através das políticas de inclusão, como as cotas, que transformaremos o mundo. O discurso não basta: “Todo mundo já sabe o que é grave para os negros, o que é grave para as mulheres. As pessoas fazem discursos, a gente aplaude e nada acontece. Precisamos de políticas”.

Ele explica que a USP tem consciência do racismo no Brasil; porém, o país, como um todo, está sempre atrasado nos discursos: “Nos anos 60, enquanto o governo de John Kennedy e os americanos já estavam discutindo as cotas, aqui estávamos discutindo para saber se somos racistas ou não. O Brasil começou o debate sobre cotas 40 anos depois dos Estados Unidos”. Primeiramente, é importante reconhecer a existência do racismo e enfrentar o mito da democracia racial: “Ainda existem pessoas que acreditam que não há racismo no Brasil”.

Em 1995, manifestações foram feitas na USP pelos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Foi criada, na Reitoria, uma comissão para discutir a questão do negro nas universidades brasileiras. Kabengele fez parte desse projeto e organizou um livro que foi publicado pela Edusp: Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação Racial. O debate sobre cotas demorou para começar na USP, mas, como afirma o antropólogo, “antes tarde do que nunca. Esse processo deve ter consciência do que precisa ser mudado na sociedade, e as mudanças devem ser aplaudidas”.

Além da existência das cotas, é necessário que as políticas sejam duradouras, opina o professor. Ele critica, então, os prazos curtos aplicados às cotas raciais: “Como dez anos podem resolver um abismo acumulado de 400 anos em matéria de educação entre brancos e não brancos? A cada dez anos, a sociedade precisa se mobilizar de novo para lutar? Por que não deixar [as cotas] pelo tempo que for necessário, para diminuir a desigualdade?”.

Para reforçar a importância das cotas, Kabengele trouxe alguns dados: antes das cotas, 97% dos brasileiros com diploma universitário eram brancos. Com as cotas, esse abismo diminuiu: hoje, cerca de 14% das universidades públicas são compostas por negros. No entanto, esse número ainda é baixo se considerarmos que mais de 50% da população brasileira é formada por negros e mestiços. O abismo precisa de mais tempo para acabar, e a única saída é a mobilização e a pressão popular, na visão do antropólogo.

O futuro das universidades

Apesar das dificuldades enfrentadas no campo da antropologia, Kabengele mantém uma postura otimista quanto ao futuro e deixa uma mensagem para os jovens universitários: “O futuro de uma nação é sua juventude. São eles que vão transformar a sociedade, que é machista, racista e homofóbica. E os jovens são as maiores vítimas da sociedade, do desemprego, da violência urbana. A universidade serve para que eles se mobilizem. Cada um dá sua contribuição como cidadão. Sem consciência, não há mudança. Não podemos ficar em cima do muro. Devemos nos posicionar, como foi feito, por exemplo, em 2020, após o assassinato de George Floyd. O mundo inteiro se mobilizou e houve manifestações em várias cidades. É a sociedade que pressiona por políticas de transformação”.

A cerimônia será transmitida no canal da FFLCH: