Nascimento de Ana Cristina Cesar

De acordo com Julia Izumino, “A poética de Ana C. é bastante autêntica, e pode até surpreender o leitor de primeira viagem.”

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

Nascimento de Ana Cristina Cesar
Segundo Julia Izumino, “Esse sujeito lírico que ao mesmo tempo convida e afasta o seu leitor, que promete revelações e se esconde por trás de imagens fragmentárias, parece ser movido por algumas forças diferentes.” (Arte: Pedro Seno)

Ana Cristina Cesar foi uma poeta brasileira contemporânea da segunda metade do século 20 que, mesmo tendo vivido até os 31 anos, entregou uma obra autêntica na sua complexidade literária. Suas publicações se inseriram no contexto da literatura marginal, devido sobretudo à situação política do regime militar e à então crescente indústria cultural no Brasil, fazendo com que sua literatura operasse uma oposição crítica ao ambiente da época. Apesar disso, ela possui um caráter diferente e autônomo em relação aos demais escritores da sua geração, chamada também de geração mimeógrafo pelo formato dinâmico e direto dos textos.

Segundo a pesquisadora entrevistada Julia Izumino, Ana Cristina Cesar produziu “poemas em versos e pequenas prosas que se assemelham a entradas de diário e correspondências íntimas”, com temáticas de cotidiano, relatos confessionais e biográficos, mas envoltos em uma atmosfera de elaborada poeticidade com alto valor referencial a outras formas de arte, como música e cinema, contendo em si nuances de ironia, acidez e liberdade. Sua escrita carrega o elemento da ruptura com a expectativa do leitor, na sua forma e assunto, que tanto causa provocações, quanto pede por releituras à sua compreensão.

Dentre as obras da autora, algumas célebres são Cenas de Abril e Correspondência Completa, ambos de 1979, e A Teus Pés, de 1982, que já fez parte da lista obrigatória de leituras do vestibular da Unicamp. Não deixe de ler a entrevista completa que esboça muito bem a vida e obra dessa escritora:

Serviço de Comunicação Social: Comente brevemente quem foi Ana Cristina Cesar para os leitores que ainda não a conhecem.

Julia Izumino: Ana Cristina Cesar foi uma poeta brasileira, nascida no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1952. Em 1975, formou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Posteriormente, desenvolveu um mestrado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e outro em Teoria e Prática de Tradução Literária pela Universidade de Essex, na Inglaterra.

Sua produção poética é relativamente pequena: sua estreia foi na antologia 26 Poetas Hoje (1976), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Depois publicou seus dois primeiros livros, Cenas de Abril e Correspondência Completa, em 1979, seguidos por Luvas de Pelica (1980) e A Teus Pés (1982). Ao mesmo tempo, também atuava como tradutora e crítica literária, tendo escrito artigos e resenhas para jornais e suplementos de cultura, como o Jornal do Brasil e Opinião. Depois da sua morte prematura, em 1983, seus poemas inéditos foram organizados em algumas publicações - Inéditos e Dispersos (1985), Antigos e Soltos (2008) e Poética (2013) - que nos dão um panorama mais compreensivo de sua obra e sua forma de produzir. 

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita da autora?

Julia Izumino: A poética de Ana C. é bastante autêntica, e pode até surpreender o leitor de primeira viagem. Quando começamos a leitura, encontramos formas literárias familiares, como o poema em versos e pequenas prosas que se assemelham a entradas de diário e correspondências íntimas. Seus temas parecem girar em torno de acontecimentos cotidianos, biográficos e confessionais, envoltos por uma linguagem coloquial, de expressão rápida e informal. Entretanto, se, num primeiro relance, parece que esse sujeito poético está nos convidando para uma conversa, logo percebemos que esse chamado sedutor também é uma espécie de armadilha. Isso porque os poemas são principalmente formados por imagens poéticas dissonantes, em versos e frases que por vezes não se completam sintaticamente, repletos de referências a outros textos, filmes, músicas, acontecimentos de época… Rapidamente nos vemos provocados diante desses poemas; quer dizer, caímos na expectativa de uma escrita autobiográfica, mas o texto elíptico e descontínuo não nos deixa descobrir muito, e nos faz voltar algumas vezes para tentar compreender melhor o que pode estar nas entrelinhas. 

Esse sujeito lírico que ao mesmo tempo convida e afasta o seu leitor, que promete revelações e se esconde por trás de imagens fragmentárias, parece ser movido por algumas forças diferentes. Por vezes, ele se mostra bastante melancólico de não conseguir criar no poema um espaço de diálogo equivalente a uma conversa cara-a-cara, na qual uma pessoa se dirige a um interlocutor e pode receber a sua resposta. Afinal, a palavra escrita de ficção impõe uma distância importante e intransponível entre o sujeito que enuncia e aquele que lê. Em outros momentos, porém, predomina um tom irônico, de chiste, de quem está construindo uma cama de gato sabendo que irá deixar o outro confuso e enredado. 

Essa ironia também é notável quando trabalha elementos que convencionamos chamar de próprios de uma escrita de autoria feminina. Justamente para desestabilizar e irritar essa categoria, me parece. Desde o uso das formas epistolares e confessionais, que remetem a uma tradição de escrita dita feminina, passando pela tematização de histórias de amor, encontros sexuais, fofocas de comadres, até chegar na própria representação do corpo de mulher - o despojamento do tom e os modos de construção formais e imagéticos deixam entrever uma visada bastante crítica de um esperado cerceamento de produção em função de seu gênero, e faz operar pela chave da ironia e da acidez a liberdade de dizer o que quer.

Serviço de Comunicação Social: Como foi a inserção de sua obra dentro do contexto da época em que viveu?

Julia Izumino: Durante as décadas de 1970 e 1980, a cena da poesia brasileira, particularmente a carioca, começou a ver o surgimento de publicações amadoras, de revistas e livros mimeografados e artesanais, às vezes vendidos e circulados pelos próprios autores. Essa forma de publicação, que se convencionou chamar de marginal, foi uma alternativa encontrada por esse grupo de pessoas que, vivendo um momento de recrudescimento da ditadura militar (após o decreto do AI-5, em 1968) e de crescimento de uma indústria cultural de massa, desejava criar uma poesia mais despojada, espontânea, que flagrasse como fotografias cenas cotidianas e corriqueiras. Alguns desses autores, como Chico Alvim e Cacaso, pegavam frases e conversas ouvidas na rua, e transformavam em poemas-pílula ou poemas-piada, retomando Oswald de Andrade. Assim, com pouquíssimos versos, sintetizavam em tom humorístico, irônico e furtivamente político algum comentário sobre a realidade brasileira. Uma discussão importante da época, que informava esse tipo de procedimento de escrita, era sobre a necessidade que se sentia de aproximar a arte e a poesia da vida, de diminuir o máximo possível aquele intervalo que de que dizia mais cedo, esperando que a matéria da vida pudesse ser passada autenticamente, sem depuração, para a literatura. 

A crítica literária passou a falar de uma poesia da geração marginal, ou geração do mimeógrafo, em referência principalmente a esse modo de produção e circulação. E costumamos aproximar Ana Cristina Cesar dessa geração, afinal eram seus contemporâneos e amigos - sabemos que ela mantinha laços estreitos, diálogos teóricos e frequentava os mesmos espaços que muitos desses poetas. Os seus três primeiros livros, aliás, foram publicados de modo artesanal, em edições que planejou meticulosamente para que a forma dos livros dialogasse com o conteúdo dos poemas - ainda que de maneira provocativa, por exemplo o Correspondência completa, que apesar do título abrangente, é composto por um único texto, escrito em formato de carta, publicado em um livrinho que cabe na palma da mão. 

Mas também é necessário ter atenção ao inserir Ana C. na geração marginal, uma vez que a sua poética difere bastante das demais. Como já comentei acima, uma questão central de sua produção é a consciência da impossibilidade de operar a junção entre arte e vida que tanto se desejava, e a incorporação de dados autobiográficos ou confessionais sempre vem complicada por algum jogo formal ou de linguagem. Então, apesar de estar em constante diálogo com os seus pares, de ler e ser lida por eles, ela adota um tom mais analítico do que coloquial, e faz uma poesia mais autorreflexiva do que espontânea.

Serviço de Comunicação Social: Na sua percepção, como Ana Cristina Cesar contribuiu com a literatura, mundial ou brasileira?

Julia Izumino: Essa não é uma pergunta fácil de responder - inclusive me lembrou de um debate que percorreu os jornais e suplementos de cultura em 2016, quando Ana C. foi escolhida como autora homenageada da Festa Literária de Paraty (FLIP) daquele ano. Em defesa dessa escolha, se disse muito sobre a potência e a originalidade de sua poesia, e sua capacidade de adensar vários elementos testemunhos de época, que a fazem uma das grandes representantes da poesia marginal brasileira. Acho que Ana C. de fato é uma das vozes mais frescas e inconfundíveis da nossa poesia contemporânea. A maneira como tematiza e problematiza questões prementes do debate literário e cultural brasileiro faz com que sua produção se mantenha relevante e instigante. Seus poemas contêm camadas de vozes, referências, sentidos, sensações que continuam a provocar inúmeras leituras e releituras, poéticas, artísticas e acadêmicas, porque nunca se esgotam. 

E, ainda que a questão da originalidade na arte e na literatura possa ser espinhosa e cada vez mais problematizada, também podemos admitir que, quando surge alguém capaz de arejar e reinventar as fórmulas de expressão, que abre de par em par as portas para a descoberta e a experimentação, as gerações posteriores ganham a possibilidade de andar a passos mais largos. Penso, por exemplo, em parte do nosso apreço contemporâneo por obras de autoficção, que têm conquistado uma parcela da produção nacional, e na maneira como Ana C., lá nos anos 1970, subvertia o gênero confessional e inventava um tipo de intimidade literária, de relação entre sujeito lírico e leitor. Penso também no fato de que muitas das nossas poetas em atividade hoje serem, admitidamente, leitoras de Ana C. - como Alice Sant’anna, Marília Garcia e Angélica Freitas, para nomear apenas algumas. É como se, formando uma rede de inspirações e interferências, todos e todas que lêem Ana Cristina Cesar, ou que lêem obras de leitores dela, pudessem percorrer as trilhas apontadas pela ousadia e inventividade de sua voz.

Julia Izumino é mestre e pesquisadora na área de Teoria Literária e Literatura Comparada. Atua como professora dos anos finais do Fundamental 1 e leciona Literatura em cursinho pré-vestibular. Já fez parte da Comissão editorial da Revista Magma dos alunos de pós-graduação do DTLLC (USP).