"Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos, é publicado

Publicada postumamente, “Memórias do Cárcere” é um depoimento sobre a perseguição política de Vargas

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, é publicado
“A maestria de Graciliano Ramos torna cada um de seus livros muito singulares e relevantes: são pontos altos de uma produção praticamente sem desnível, o que é bastante raro na literatura brasileira”, afirma Fabio Cesar Alves. [arte: Renan Braz]

Em 1953, foi publicada a obra Memórias do Cárcere, meses após a morte de Graciliano Ramos. A narrativa de gênero híbrido trata sobre a perseguição política e a repressão do governo de Getúlio Vargas a partir de 1935, mas foi escrita a partir de 1946, em um contexto de outro governo repressor, o de Dutra.

Os temas abordados por Graciliano seguem atuais, em uma obra de caráter social que desenvolve reflexões sobre a parcialidade da justiça, a cegueira de setores da esquerda, a arbitrariedade policial, o limbo ao qual são atirados os intelectuais em momentos de tibieza “democrática”, etc. Além disso, é uma obra marcada pela auto análise, na qual o escritor revisa seus preconceitos, sua formação, seu papel na luta política, e outras questões tanto internas quanto externas.

“Podemos pensar o livro como um retrato cruel do Brasil moderno e escravista, tacanho e cosmopolita, patriarcal e excludente, e também uma dolorosa ponderação sobre os limites da literatura e do escritor empenhado diante desse quadro. É como se, a partir da prisão, Graciliano desvelasse o que há de pior na realidade brasileira, de forma implacável e contundente”, afirma Fabio Cesar Alves, professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Memórias do Cárcere para a Literatura? Em linhas gerais, quais as temáticas abordadas pela obra?

Fabio Cesar Alves: Memórias do Cárcere, publicada em 1953, meses após a morte de Graciliano Ramos, é uma obra singular por várias razões. Trata-se de um depoimento sobre a perseguição política e a repressão perpetradas por Getúlio Vargas desde 1935, em razão dos levantes que ocorreram nesse mesmo ano em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a narrativa foi escrita a partir de 1946, isto é, quando Graciliano já era oficialmente membro do Partido Comunista e quando o Brasil se via às voltas com mais um governo repressor, agora de Dutra. Esse quadro dá a dimensão do problema com o qual o escritor teve de lidar: como tratar do indizível? O narrador-memorialista toca em temas candentes e até hoje atualíssimos, como a parcialidade da justiça, a cegueira de setores da esquerda, a arbitrariedade policial, o limbo ao qual são atirados os intelectuais em momentos de tibieza “democrática”. Ao mesmo tempo, trata-se de um exercício rigoroso de auto análise: o escritor passa em revista seus preconceitos, sua formação nos ramos empobrecidos da oligarquia e reflete criticamente sobre o seu lugar no interior da luta política, tudo isso condensado em seu estilo, o que confere à obra alta voltagem literária. 

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere?

Fabio Cesar Alves: A maestria de Graciliano Ramos torna cada um de seus livros muito singulares e relevantes: são pontos altos de uma produção praticamente sem desnível, o que é bastante raro na literatura brasileira. No caso das Memórias, o estilo rebarbativo e moroso, entrecortado pelas reflexões sistemáticas do narrador-memorialista, parece formalizar não apenas a modorra do quase um ano de prisão, mas a dificuldade de atuação do escritor comunista, especialmente se levarmos em conta a dupla temporalidade da narrativa, isto é, o tempo do enunciado, que remete ao prisioneiro de 1936, e o tempo da enunciação, que remete ao militante que escreve dez anos depois. É nesse complexo jogo temporal e situacional que a obra constrói o seu campo de força. 

Serviço de Comunicação Social: De que forma o romance consolida o caráter social presente em muitas das suas obras?

Fabio Cesar Alves: Como traço inerente a um gênero híbrido, como é o caso da memória, há muito de testemunhal no relato, ao mesmo tempo que Graciliano se vale de expedientes literários para recriar espaços e personagens com as quais travou contato quando esteve preso. Entretanto, muito do caráter social da obra decorre da capacidade de tornar literário o registro dessa “descida aos infernos” da sociedade brasileira, o que significa também pôr-se à prova e discutir os dogmas partidários em um momento histórico em que as dissensões não eram bem-vindas. Podemos pensar o livro como um retrato cruel do Brasil moderno e escravista, tacanho e cosmopolita, patriarcal e excludente, e também uma dolorosa ponderação sobre os limites da literatura e do escritor empenhado diante desse quadro. É como se, a partir da prisão, Graciliano desvelasse o que há de pior na realidade brasileira, de forma implacável e contundente.

Fabio Cesar Alves é professor de Literatura Brasileira da FFLCH e autor de Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileiro (Editora 34, 2016). Mestre em Literatura Brasileira e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH, fez o pós-doutorado na Université Sorbonne – Paris IV.