Assinatura do Tratado de Versalhes

Fernando Sarti explica que “o Tratado de Versalhes, se não determinou a eclosão da Segunda Guerra Mundial, foi responsável por condicionar muitos de seus principais aspectos”

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Pedro Seno
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Segundo Sarti, “um dos pequenos astros que até mesmo Marc Ferro negligenciou foi a XIIIª Parte do Tratado de Versalhes, as chamadas ‘Cláusulas dos Tratados de Paz relativas ao trabalho’”. (Arte: Pedro Seno)

Em junho de 1919, o Tratado de Versalhes firmou os termos do fim da Primeira Guerra Mundial e gerou resoluções para uma nova ordem mundial. Seu contexto de elaboração ilumina a história e o cenário globais dos últimos cem anos, desde a criação de organismos internacionais até a idealização de direitos trabalhistas fundamentais que ecoam ainda nos tempos atuais.

Segundo Fernando Sarti Ferreira, pesquisador e doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a nova ordem, na qual mirava o Tratado, além de buscar gerar um equilíbrio político e econômico entre os Estados, queria, diz o professor Sarti: “mediar e resolver problemas gerais e evitar a guerra como instrumento de resolução dos problemas entre as nações”. O Tratado instituiu a Sociedade das Nações (ou Liga das Nações), que futuramente serviria como base da Organização das Nações Unidas (ONU) e também da Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituição que existe até hoje. O objetivo mais evidente da assinatura do documento era restabelecer a paz, mas também a punição contra os alemães, que perderam territórios, recursos naturais e populações, além de terem sofrido com pesadas indenizações.

De acordo com Sarti, as resoluções do Tratado de Versalhes têm origem com os processos e contextos geopolíticos que geraram a guerra em primeira instância e, depois dela, uma crise de proporções globais. Podem-se elucidar essencialmente três naturezas de conflitos e tensões dentro desse contexto. A primeira é um conflito horizontal, isto é, em que os poderes disputam como semelhantes, entre as potências industriais da época: a América do Norte, a Europa e o Japão, os três polos disputavam e concorriam por uma acelerada industrialização e incorporação de diversas partes do mundo no processo produtivo, o que resultou em um acirramento das suas tensões. A segunda é um conflito vertical externo, uma desigualdade historicamente consolidada entre as nações imperialistas e colonizadoras do hemisfério norte, e os países periféricos ao sistema, no sul global. Estes sofriam com a ampliação de seus problemas e conflitos e eram afetados por levantes e rebeliões que refletiam diretamente os embates de seus respectivos países imperialistas. A terceira é um conflito vertical interno, ou seja, de desigualdades causadas pelo contexto do capitalismo no cerne das economias de todos os âmbitos, referente ao crescimento das lutas sociais lideradas “pelos trabalhadores industriais e assalariados”, movimento que culminou, também, na Revolução Russa (1917-1921), nação esta que esteve envolta nas três naturezas conflitantes, sendo que os países vitoriosos da primeira guerra desejavam “esmagar o exemplo russo” tanto quanto penalizar a Alemanha pela guerra. Desse modo, o Tratado de Versalhes recuperava a memória da agitação internacional e, portanto, almejava estabelecer o apaziguamento desta conjuntura total.

Na prática e contra muito do que foi ambicionado em Versalhes, os impactos da sua assinatura vieram a irromper no horizonte breve. Não há dúvidas de que as condições às quais a então República de Weimar (1919-1933), a Alemanha democrática pós primeira guerra, fora submetida com o Tratado, como a instabilidade política, a forte crise econômica e o sentimento de injustiça, corroboraram para a ascensão do fascismo e motivaram em parte a pretensão imperialista de expansão do regime nazista. Porém, não foi somente aos alemães derrotados que surtiu o efeito do acordo; Sarti explica que a França e a Inglaterra tiveram suas imagens internacionais prejudicadas a partir do momento em que dominaram politicamente a recém criada Liga das Nações e, ainda, não obtiveram a assinatura dos EUA no Tratado. A Itália e o Japão inclinaram-se em apoio à Alemanha pois tiveram suas investidas imperialistas bloqueadas por essas nações. Além dessa desmoralização e do enfraquecimento político, os vitoriosos países foram condescendentes com o crescimento do fascismo na Europa porque viam a Itália e a Alemanha como potenciais aliadas futuras contra a União Soviética. É por isso que o “Tratado de Versalhes, se não determinou a eclosão da Segunda Guerra Mundial, foi responsável por condicionar muitos de seus principais aspectos.”

Uma interessante e não muito explorada face do Tratado que, nas palavras de Sarti, passou despercebida até mesmo por célebres historiadores, “foi a XIIIª Parte do Tratado de Versalhes, as chamadas ‘Cláusulas dos Tratados de Paz relativas ao trabalho’”. Nesse trecho de grande importância e repercussão atual, como forma de encontrar um caminho relativo ao contexto dos conflitos das lutas sociais, ficavam contempladas as reivindicações de direitos trabalhistas do movimento operário e socialista e retomavam o cintilar das proclamações instituídas na Revolução Russa relacionadas às conquistas do universo do trabalho. Dentre as resoluções postas, “eram elencados oito procedimentos e princípios da comissão formuladora das ‘Cláusulas dos Tratados de Paz relativas ao trabalho’, considerados de particular e urgente importância, entre os quais se destacam que ‘o trabalho não deve ser considerado simplesmente como uma mercadoria’, o direito à sindicalização, o estabelecimento da jornada de oito horas, a adoção do descanso semanal de 24 horas e a isonomia salarial entre homens e mulheres.”

Disponibilizamos a entrevista completa com o pesquisador Fernando Sarti para aqueles que desejam adentrar com mais detalhes no panorama geral relacionado ao Tratado de Versalhes, firmado no dia 28 de junho de 1919. Confira:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre o que foi o Tratado de Versalhes, imaginando leitores leigos?

Fernando Sarti Ferreira: Em um sentido mais objetivo, o Tratado de Versalhes de junho de 1919 foi o principal acordo assinado após o fim da Primeira Guerra (1914-1918) durante a Conferência de Paz instalada em Paris entre 1919 e 1920. Envolvendo de um lado EUA, Japão, Império Britânico, França, Itália e outros 22 países e a Alemanha do outro, o tratado não só estabeleceu os termos para o fim do estado de guerra, como também buscou organizar uma nova ordem mundial. Esta nova ordem deveria equilibrar-se entre os interesses econômicos e geopolíticos dos vencedores do conflito e a criação de instituições, como a Sociedade das Nações e suas organizações subsidiárias como a Organização de Saúde e Organização Internacional do Trabalho (OIT), que buscassem mediar e resolver problemas gerais e evitar a guerra como instrumento de resolução dos problemas entre as nações.

No entanto, para realmente entendermos os principais objetivos, limites e efeitos da assinatura do tratado, é necessário jogar luz sobre os processos que precipitaram a guerra e a crise de alcance global que sobreveio ao seu fim. Basicamente, a guerra e a crise por ela desencadeada foram o resultado de tensões e conflitos de três naturezas. O primeiro destes diz respeito ao conflito horizontal entre as potências industriais. A Primeira Grande Guerra do século XX foi o resultado das tensões diplomáticas, geopolíticas, históricas e culturais acirradas pelo processo de difusão da industrialização na Europa, Japão e América do Norte. Esse processo de expansão dos países industrializados resultou na consolidação de uma economia genuinamente global, marcada pela incorporação em maior ou menor grau da maior parte das regiões habitadas do planeta ao mercado mundial, seja como fornecedores de alimentos e matérias primas, seja como destino dos capitais e mercadorias das potências industriais. Além deste mercado mundial ter se transformado em um catalisador para a concorrência entre estas potências, foi dele também que emergiu a segunda natureza de conflitos que marcou o contexto histórico analisado: a guerra e a crise por ela provocada trouxe à tona o conflito vertical entre o que se chama hoje de norte e sul global; entre os países industrializados e o vastíssimo universo dos países e regiões da periferia do sistema.  O acirramento dos problemas e contradições econômicas e culturais provocadas pelo domínio europeu, estadunidense e japonês; a crise econômica provocada pela guerra; a incitação ao levante contra autoridades imperiais rivais, além da convocação à participação no esforço de guerra ao lado dos colonizadores, provocou verdadeiras rebeliões na Ásia e na África contra o domínio colonial. Por fim, o período foi marcado pelo conflito vertical interno às economias capitalistas, centrais e semiperiféricas, cuja principal característica foi um levante social liderado pelos trabalhadores industriais e assalariados. Nesse contexto, a Revolução Russa de 1917-1921 ganha importância fundamental, pois foi um processo que esteve perpassado pelos três tipos de conflitos, sendo a preocupação em esmagar o exemplo russo um elemento tão importante para elaboração dos termos da paz de Versalhes quanto o enfraquecimento da Alemanha.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram os principais impactos posteriores da assinatura deste tratado, para a Europa e para o mundo?

Fernando Sarti Ferreira: São famosos os diagnósticos feitos por personalidades históricas que estiveram diretamente ligados ao processo de elaboração do tratado sobre os problemas que ele poderia gerar no curto e médio prazo. O Marechal Foch, importante chefe militar do exército francês, segundo as memórias de Paul Reynaud, teria dito que o Tratado de Versalhes não era um tratado de paz, mas apenas um armistício de vinte anos. Para o marechal, a punição aos alemães teria sido branda demais, abrindo a possibilidade do país inimigo se recuperar e se lançar novamente contra a França em poucos anos. Em um sentido oposto, o jovem John Maynard Keynes, naquele momento à serviço da chancelaria britânica, afirmava que a dureza com que os impérios centrais foram tratados pelos vencedores, e especialmente a Alemanha, ou jogaria esses países para a esfera de influência dos bolcheviques, ou os levariam a buscar sua “vingança”.
Sem dúvida alguma, as pressões as quais a Alemanha foi submetida pelo tratado, como a perda de importantes territórios e seus recursos naturais e população, além das pesadas indenizações, serviu de combustível para alimentar a instabilidade econômica e política que marcou a ascensão e queda da República de Weimar (1919-1933) e a chegada dos fascistas ao poder. Além disso, o fato da Conferência de Paz em Paris e da Sociedade das Nações terem sido dominadas pelos interesses franceses e britânicos, levou a uma rápida desmoralização da nova ordem internacional. A Itália e o Japão, cujos interesses de expansão imperialistas foram bloqueados por franceses e ingleses, passaram a desafiar, em conjunto com a Alemanha, a ordem global, apoiando-se mutuamente em suas agendas imperialistas. Por outro lado, a França e a Inglaterra, cuja posição na área internacional se viu enfraquecida pela rejeição do tratado pelo Congresso dos EUA, não só não reagiram às investidas do futuro Eixo fascista, como foram condescendentes a muitas das suas exigências, vendo naquele grupo de países um possível aliado no combate à União Soviética. Nesse sentido, o Tratado de Versalhes, se não determinou a eclosão da Segunda Guerra Mundial, foi responsável por condicionar muitos de seus principais aspectos.

Por outro lado, se as consequências do Tratado de Versalhes cessaram de influenciar as relações internacionais ao fim da Segunda Guerra Mundial, outros tantos tratados elaborados naquele contexto ainda hoje se fazem sentir de maneira dramática. Em uma bela imagem, o historiador Marc Ferro afirmou que o Tratado de Versalhes foi uma grande estrela que monopolizou nossas atenções até o fim da Segunda Guerra Mundial. No entanto, outros pequenos corpos celestes que orbitavam esta estrela ainda cintilam nos dias de hoje, como, por exemplo, o Tratado de Sévres assinado em agosto de 1920 e que repartiu o Império Otomano entre a França e a Inglaterra. Ainda hoje, toda vez que a guerra civil e étnica abre suas asas sobre o Oriente Médio e o norte da África, é possível escutar seu eco.

Serviço de Comunicação Social: Após o Tratado de Versalhes e nos tempos atuais, houve, em alguma medida, um aprendizado, por parte da sociedade, acerca da realização de tratados de paz pelo mundo?

Fernando Sarti Ferreira: A realidade histórica que alimentou as intenções e condicionou a sorte do Tratado de Versalhes não existe mais. No entanto, isso não impediu que, ao lado de novos problemas - como o advento das armas de destruição em massa -, muitos agentes da política internacional cometessem os mesmos erros e propagassem as mesmas ilusões que embalaram seus antecessores. Por meio da comparação ou da analogia histórica, e tomando todo o cuidado para não cairmos em anacronismos, podemos pensar em algumas lições legadas não só pelos seus formuladores e críticos, mas também por suas consequências práticas. Um dos maiores estudiosos sobre o tema, o historiador britânico Edward Carr (1892-1982), por exemplo, ao prescrever em 1939 o que ele entendia ser o caminho para superar a antiga ordem que havia desembocado em Versalhes e nas Grandes Guerras do Século XX, afirmava que a conciliação internacional só seria possível caso o conflito de interesses entre Estados nacionais fosse reconhecido francamente, e não escamoteado por meio de alusões à conceitos abstratos e à sujeitos inclinados à perversão; que a ideia de uma necessária harmonia natural de interesses entre os Estados fosse esquecida e substituída por um mínimo de bom senso; que aquilo que fosse moralmente desejável não fosse identificado com o que fosse economicamente vantajoso para as principais potências; e que interesses econômicos fossem sacrificados para resolver conflitos causados pelas desigualdades. Frente a crescente disfuncionalidade e decadência da Ordem Mundial pós-1945 que marca o tempo presente, cenário que nos concede o direito a algum grau de analogia histórica com aquele que produziu o Tratado de Versalhes, uma análise crítica do atual cenário internacional a partir das prescrições de Carr parece ser um exercício factível e proveitoso.

Serviço de Comunicação Social: Você acredita que há alguma informação relevante e pouco conhecida no senso comum sobre o contexto das grandes guerras que gostaria de compartilhar?

Fernando Sarti Ferreira: Um dos pequenos astros que até mesmo Marc Ferro negligenciou foi a XIIIª Parte do Tratado de Versalhes, as chamadas “Cláusulas dos Tratados de Paz relativas ao trabalho”. Este cintila até hoje, principalmente quando muitos setores sociais confundem direitos sociais com privilégios em sua gana insaciável pelo rebaixamento do preço da força de trabalho. A XIIIª parte do Tratado de Versalhes contemplava uma série de reivindicações históricas do movimento operário e socialista mundial e, em alguns casos, buscava ampliar a todos os signatários algumas conquistas pontuais ocorridas em alguns países. Em seu último artigo, eram elencados oito procedimentos e princípios da comissão formuladora das “Cláusulas dos Tratados de Paz relativas ao trabalho”, considerados de particular e urgente importância, entre os quais se destacam que “o trabalho não deve ser considerado simplesmente como uma mercadoria”, o direito à sindicalização, o estabelecimento da jornada de oito horas, a adoção do descanso semanal de 24 horas e a isonomia salarial entre homens e mulheres. 
Adotada como forma de responder às agitações sociais que marcaram o fim do conflito mundial, assim como para ser um contraponto aos avanços nesta matéria consagrados pela “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado” de janeiro de 1918 proclamada na Rússia Soviética, as “Cláusulas dos Tratados de Paz relativas ao trabalho” e as deliberações da OIT serviram e ainda servem como norte para a defesa e ampliação do direito dos trabalhadores em todo o mundo.

Fernando Sarti Ferreira é doutor em História Econômica pela FFLCH-USP e professor substituto de História na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).