Trabalho reprodutivo era a única escolha para a mulher no século 19

Pesquisa da USP analisa os papéis sociais que eram atribuídos à mulher a partir do romance norte-americano Little Women

Por
Lívia Lemos
Data de Publicação

 

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Da esquerda para a direita, Meg, Amy, Jô e Beth [Arte por Astral/Foto: Reprodução Instagram @emmawatson]

Casar, ter filhos e cuidar dos afazeres domésticos. Esse era o único cenário possível para as mulheres há 200 anos. Ainda que existissem algumas poucas possibilidades para o gênero feminino no mercado de trabalho, como trabalhar em fábricas ou dar aulas — ou, caso fossem talentosas o suficiente para se destacarem na arte, como escritoras, pintoras e pianistas —, a dificuldade de serem reconhecidas como boas profissionais impedia que as mulheres fossem bem remuneradas pelo seu trabalho. Restava para quem era mulher exercer o trabalho reprodutivo, isto é, se casar e ter filhos.

Foi o que Fernanda de Araujo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP defendeu na sua dissertação de mestrado no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução. Para estudar os papéis sociais que eram atribuídos à mulher no século 19, a pesquisadora analisou o romance norte-americano Little Women (intitulado como “Mulherzinhas” em edições brasileiras), publicado em 1864, e sua adaptação para o cinema, também chamada Little Women (traduzido para “Adoráveis Mulheres”), lançada em 2019 e dirigida por Greta Gerwig.

Escrito por Louisa May Alcott, o livro conta a história das irmãs March, quatro jovens que, apesar de terem recebido a mesma criação, tinham sonhos diferentes. Meg, irmã mais velha, era a mais tradicional: queria se casar e ter filhos. Jô, segunda irmã, e Amy, a caçula, carregavam ambições muito além da realidade social imposta na época. Enquanto a primeira queria seguir carreira como escritora, a segunda desejava ser uma renomada pintora. De todas, Beth, a terceira irmã, era a única que não fazia projeções para o futuro. Para ela, continuar com sua família já era o suficiente.

Casamento: um acordo comercial

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Amy e Laurie, seu futuro marido [Imagem: Reprodução/Instagram @emmawatson]

“Sou apenas uma mulher. E, como mulher, não tenho como ganhar dinheiro, não o suficiente para sustentar minha família. Mesmo se eu tivesse meu próprio dinheiro, o que não tenho, ele pertenceria ao meu marido no minuto em que nos casássemos. Se tivéssemos filhos, pertenceria a ele, não a mim. Portanto, não me diga que o casamento não é um acordo econômico, porque é.” - Amy March

Tanto a obra de Alcott quanto a adaptação cinematográfica de Gerwig trazem um reflexo fiel do que era ser mulher na era vitoriana. Ainda que tivessem grandes sonhos, as irmãs Jô e Amy reconheciam as limitações impostas ao seu gênero e questionavam, com frequência, sobre o destino do qual não poderiam escapar.

Para Amy, o matrimônio foi um acordo comercial. Apesar de ter estudado e praticado a pintura durante dois anos na França, por não conseguir se sobressair na arte e vender seus quadros, a jovem vê o casamento como única possibilidade para sobreviver, como explica a pesquisadora:

“Ela percebe que não tem muito espaço para pintar e que não consegue ser um gênio [na pintura]. Naquela época, para ser considerada uma mulher livre e poder fazer o que quisesse, era preciso ter um status de genialidade. Ela vê que não tem isso, se frustra e decide fazer a segunda coisa que falaram para ela: se casar por dinheiro. A Amy se casou para ajudar a família".

Casamento: uma pressão social

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Jô, a esquerda, e Laurie, seu melhor amigo, a direita [Imagem: Reprodução/Instagram @emmawatson]

“Mulheres têm mentes e têm almas, além de só corações. Elas têm ambições e elas têm talentos, além de beleza. Eu estou tão cansada de pessoas dizendo que amor é a única coisa para a qual a mulher serve. Estou tão cansada!” - Jô March

Diferente de sua irmã mais nova, Jô conseguiu concretizar seu sonho de se tornar uma escritora. Após se mudar para Nova Iorque, a personagem passa a escrever contos e a vendê-los para jornais: “A mulher tinha mais espaço para escrever nos jornais, principalmente em colunas de mulheres. Mas ainda assim, a escrita era limitada”.

O motivo da personagem não querer se casar estava relacionado com a profissão que Jô queria seguir: “Ela sempre foi uma pessoa contra o casamento porque casar-se significava abdicar da sua vida como escritora”. No século 19, os livros não eram publicados com os nomes das mulheres caso fossem as autoras, mas com os nomes de seus cônjuges, como explica a mestranda: “Tiveram várias autoras que suas obras foram atribuídas aos maridos. Esse pode ser uns dos motivos da Jô não querer se casar”.

Apesar disso, no final do livro, Jô se casa. Esse destino da personagem não foi uma escolha da autora Louisa Alcott, mas sim uma pressão do editor-chefe: “Havia duas únicas opções para Jô: casar ou morrer. Casar a Jô foi uma pressão editorial e do público, visto que ser solteira naquela época não era moralmente aceito pela sociedade”.

Ser mulher e a perda da identidade

O filme dirigido por Greta Gerwig aborda uma perspectiva que, no livro, não é explorada: a perda de identidade da mulher na sociedade. Apesar de alcançar seu sonho de infância e ser remunerada pelo seu trabalho, Jô não se sente realizada com a sua profissão, uma vez que, como mulher, não tinha total liberdade para exercer sua criatividade: 

“No caso da Jô, para ela ganhar dinheiro com seus contos, eles precisavam ser sensacionalistas. E chega uma hora que ela toma nojo dos seus contos super sensacionalistas e cogita desistir da escrita porque começa a duvidar da sua habilidade. Ela sempre se pergunta: em que espaço consigo ser eu como autora perante a sociedade e ainda sentir orgulho de quem sou?”, pontua Fernanda. 

E para Amy, há uma falta de fé no próprio talento e uma dependência de receber aprovação de terceiros. “A Amy se questiona: ‘eu quero pintar, mas ninguém me fala que eu sou boa o suficiente. Falaram que eu preciso casar, mas com quem vou casar? Quem  sou neste mundo e qual a minha identidade?’”. Para a pesquisadora, essa perda da identidade feminina está relacionada com a falsa ilusão alimentada numa sociedade que não dava espaço para a mulher: “Você tinha uma identidade quando criança, mas chega na fase adulta e vê que é tudo mais difícil para a mulher".

O espaço da mulher atualmente

Apesar da mulher ter conquistado seu espaço no mercado de trabalho atualmente, a pesquisadora chama atenção para a limitação que ainda é imposta, sobretudo, na criatividade das mulheres: “Na área do cinema, vemos mulheres roteiristas e diretoras, mas ainda há uma restrição para elas exercerem a criatividade. A maioria é convidada para fazer um filme doméstico ou um romance, não tem como sair muito disso…”.

Fernanda salienta que, mesmo que uma mulher esteja produzindo um filme ou série, por trás, há uma mão invisível dos produtores, que em sua maioria, são homens, e que vão interferir na produção: “Se considerarmos o filme Little Women, o diretor de fotografia, de cenografia, de montagem, todos são homens. Temos poucas mulheres que são reconhecidas neste trabalho”.

A pesquisadora ressalta a importância de abrir portas para as mulheres ocuparem diferentes cargos no mercado cinematográfico e de terem liberdade para executar as produções.