Estudantes se culpam por afastamento escolar na rede pública

Pesquisa avaliou que decisão de trabalhar, sofrimento psicológico, bullying, isolamento e empreendedorismo como alternativa de trabalho estão entre os motivos que afastam jovens da escola

Por
Eliana Bento e Paulo Andrade
Data de Publicação

 

Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou os motivos que levam jovens estudantes a faltar, abandonar e eventualmente retornar à escola.

Em suas experiências de sala de aula como professora de sociologia na rede estadual em São Paulo, Maysa Ciarlariello Cunha Rodrigues observou um clima de profundo esvaziamento e desânimo entre os alunos. "Isso colocava desafios ao docente, não apenas sobre como motivar a turma, mas também sobre como dar continuidade ao conteúdo".

Maysa explica que o ponto de vista subjetivo dos jovens em relação ao abandono escolar dificultou sua caracterização. "Muitas vezes, o abandono escolar é confundido com reprovações por faltas e dificilmente é visto com uma decisão definitiva, havendo quase sempre a expressão do desejo de retorno".

Ao se afastar de seu papel de professora e encarar o tema como pesquisadora, Maysa verificou um grande afeto e a defesa explícita da escola pelos alunos. "Alguns sociólogos chamam de tendência do indivíduo contemporâneo à responsabilização por tudo aquilo que lhe ocorre, ficando omitido o caráter social e político dos problemas, de forma que as pessoas acabam por sentirem-se profundamente culpadas e sozinhas em seus desafios". 

A presença do empreendedorismo como conteúdo escolar explica em parte essa responsabilização quando cobra do indivíduo a criação de seu próprio emprego numa realidade marcada pelo desemprego estrutural. A pesquisadora acredita que isso enfraquece e desqualifica a escola como o principal caminho para o sucesso profissional.

A pesquisa também abordou a viabilidade na implantação do ensino integral, a educação especial em escolas estaduais, a flexibilização nas avaliações, dificuldades emocionais, sociais e pedagógicas envolvidas com o tema da evasão escolar. Confira a entrevista completa abaixo:

Serviço de Comunicação Social: Poderia explicar como esse tema chegou até você e, em linhas gerais, o que foi propriamente a sua pesquisa?

Maysa Ciarlariello Cunha Rodrigues: Entre 2013 e 2016, fui professora efetiva de Sociologia na rede estadual de ensino em São Paulo, atuando no ensino médio, em uma escola no centro da cidade. No decorrer dessa experiência, comecei a sentir grande desconforto com a percepção de que as turmas iam encolhendo ao longo do ano e que também diminuíam na comparação de um ano para o outro. Eu tinha uma expectativa de que, principalmente no período noturno, haveria grande concentração de trabalhadores-estudantes, porém, encontrei um clima de profundo esvaziamento e de desânimo, sobretudo à noite, quando eu ministrava a maioria de minhas aulas. Além dos jovens que sumiam e retornavam depois de meses, havia grande volatilidade entre um dia e outro, pois quem estava presente em uma semana, poderia estar ausente na próxima. Isso colocava desafios ao docente, não apenas sobre como motivar a turma, mas também sobre como dar continuidade ao conteúdo. Em um determinado momento, senti necessidade de investigar essas questões a partir de um ponto de vista acadêmico e a minha pesquisa de doutorado emergiu desse contexto. Busquei compreender os sentidos que os jovens atribuíam às suas experiências de faltas e abandonos, mas também de permanência e eventuais retornos à escola, bem como se era possível identificar dinâmicas recorrentemente vinculadas a essas questões. Fiz isto a partir de uma perspectiva predominantemente qualitativa, entrando em quatro escolas públicas no bairro de Pirituba (Zona Noroeste de São Paulo) e entrevistando quatro perfis de jovens: alunos com trajetórias escolares mais regulares; alunos que haviam abandonado a escola em algum momento, porém tinham retornado; alunos que apenas cogitaram a evasão e; por fim, jovens que estavam fora da escola e, portanto, sem vínculos formais com as instituições, mas que foram acessados por intermédio delas.

Serviço de Comunicação Social: Poderia apontar quais foram os principais resultados obtidos? E que conclusões você tirou desses dados?

Maysa Ciarlariello Cunha Rodrigues: Um primeiro achado importante é que, ao considerar o ponto de vista subjetivo dos jovens, é muito difícil caracterizar o abandono escolar, pois, muitas vezes, é confundido com reprovações por faltas e dificilmente é visto com uma decisão definitiva, havendo quase sempre a expressão do desejo de retorno. Outro ponto relevante é que, ao sair de meu papel e das expectativas de professora, a hipótese de haver uma crise de sentido da escola, conforme aventado por mim durante a experiência de docência, precisou ser melhor qualificada, pois, no geral, foi notável grande afeto e defesa explícita da instituição pelos entrevistados, incluindo aqueles que estavam mais afastados dos estudos. Nesse sentido, foi possível identificar algo que alguns sociólogos como François Dubet, Danilo Martuccelli, Alain Ehrenberg e Richard Sennet chamam de tendência do indivíduo contemporâneo à responsabilização por tudo aquilo que lhe ocorre, ficando omitido o caráter social e político dos problemas, de forma que as pessoas acabam por sentirem-se profundamente culpadas e sozinhas em seus desafios. Além disso, no que se refere à recorrência de dinâmicas associadas ao abandono, foram destacadas sete caminhos recorrentes: certas lógicas associadas a decisão por trabalhar (o que não corresponde a uma ligação unívoca entre trabalho e abandono, uma vez que nem todos os tipos de trabalho rivalizam com a escola); experiências de sofrimento psicológico; experiências de bullying e isolamento; valorização do empreendedorismo como caminho para o sucesso; perda ou ausência do que chamei de “outro educacionalmente significativo”, ou seja, de uma pessoa importante na vida do jovem que, por caminhos múltiplos, pode ajudar a sustentar o projeto escolar e, por fim, duas outras dinâmicas menos incidentes; demonstração de uma dúvida mais pronunciada com relação à instituição e sensação de ser incapaz de aprender.

Serviço de Comunicação Social: Onde você acredita que sua pesquisa vai contribuir para a sociedade?

Maysa Ciarlariello Cunha Rodrigues: Acredito que a pesquisa ajuda a perceber que não há atalhos fáceis para a questão das desigualdades educacionais no Brasil. Por exemplo, um dos principais pilares do chamado Novo Ensino Médio e da Base Nacional Curricular Comum é o surgimento do empreendedorismo como conteúdo escolar. Busco argumentar que o culto ao empreendedorismo está ligado à responsabilização do indivíduo – inclusive responsabilizado por criar o seu próprio emprego em uma sociedade marcada pelo desemprego estrutural - e que, de certa forma, isto enfraquece a própria escola enquanto instituição, desqualificando-a como caminho principal para o sucesso profissional. Outra questão importante que a pesquisa levanta é sobre a viabilidade do ensino integral no nível médio, uma vez que o ingresso no mercado de trabalho ainda é, por vários motivos, muito atrativo para os jovens, precisando ser alvo das políticas públicas, pois pode rivalizar com a escola. O estudo também acabou abordando o complexo tema da educação especial e da falta de meios das escolas estaduais para realizarem um ensino verdadeiramente inclusivo, seja pela escassez de profissionais especializados e das chamadas “salas de recurso”, seja pela dificuldade de acesso aos profissionais de saúde mental, que devem ser buscados pelos pais fora da escola (na rede de saúde) e que são o meio de se obter os laudos necessários para que se tenha acesso à educação especial. Além disso, lançou luz para o fato de que a flexibilização avaliativa, com aprovação decorrente, muitas vezes, é a única medida tomada face à falta de intervenções pedagógicas. Diante dessas lacunas, a pesquisa indica que é muito provável haver subdiagnóstico, bem como uma tendência a diagnósticos informais que pode acabar estigmatizando os jovens, que internalizam a ideia de que não são capazes de aprender. Isso ocorre quando os docentes e a coordenação atribuem ao aluno um “problema” (que não é apenas de mal comportamento) e destinam a ele a mesma única medida disponível, ou seja, a aprovação, à despeito de não conseguirem ampará-lo em suas dificuldades emocionais, sociais e pedagógicas.