O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, é publicado

Toda a empreitada de O Segundo Sexo organiza-se em torno do seguinte questionamento: no que consiste, para um indivíduo do sexo feminino, existir neste mundo?

Por
Larissa Gomes
Data de Publicação

mulher com pintura atrás
“Seja qual for o caminho para a liberdade, este não se dará certamente pela via individual, pela luta de cada mulher isoladamente, mas, antes, terá de ser feito por meio da união das mulheres e pela via coletiva, isto é, por meio da ação política”, segundo Izilda Cristina Johanson.

Afinal, no que consiste, para uma mulher, existir nesse mundo? Este é o questionamento que Simone de Beavouir busca responder no seu livro, O Segundo Sexo. Na obra, a intelectual busca comprovar que não há nada em certos discursos sobre a vida biológica, psíquica e material, que comprove a existência da mulher como outro ou como segundo sexo.

Izilda Cristina Johanson, doutora em filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em questões de gênero e estudos feministas e decoloniais, explica que, no livro, Beauvoir não pretende prescrever um caminho único que liberte a mulher do sistema patriarcal, mas que se alcance um deslumbre de uma possível liberdade feminina. 

Na entrevista concedida ao Serviço de Comunicação Social, Izilda cita algumas reflexões que Beauvoir coloca a respeito da emancipação feminina. Confira a entrevista completa abaixo:

Serviço de Comunicação Social: Poderia nos dizer qual a temática central abordada pela obra?

Izilda Cristina Johanson: Toda a empreitada de O Segundo Sexo organiza-se em torno do seguinte questionamento: afinal, no que consiste, para um indivíduo do sexo feminino, existir neste mundo? Como nós, mulheres, nos tornamos segundo sexo? Como isso se torna possível? Por que meios? De que maneira? Essas perguntas a levarão a proceder ao reconhecimento e à descrição das condições dessa existência agora já bem delineada (o que ela fará, na verdade, no segundo volume de O Segundo Sexo, intitulado, justamente, A Experiência Vivida), mas não sem antes passar em revista certos discursos e saberes - voltados ao conhecimento da vida biológica, psíquica e material - a fim de comprovar que nada há neles que possa fundamentar e mesmo explicar essa existência da mulher como outro absoluto, relativo, como sujeito objetificado, como, enfim, segundo sexo. Junto dessa crítica, feita sobretudo no primeiro volume de O Segundo Sexo (intitulado, justamente, Fatos e Mitos), Beauvoir mostrará a impropriedade - ou a má-fé - da pergunta que até então podia ser ponto de partida de muitas das investigações empreendidas sobre o ser mulher e que pretendem ser objetivas, a saber: "o que é uma mulher?" Esta pergunta como ponto de partida será definitivamente recusada e subvertida em O Segundo Sexo, pois o que quer que se diga sobre ser mulher, concluirá ali nossa filósofa, nunca poderá ser respondido desse modo pretensamente absoluto, isto é, ignorando algo essencial relacionado à existência própria de uma mulher (e de todo e qualquer indivíduo humano, no mais): o contexto específico em que esta se dá, ou, mais precisamente, a sua situação.

Serviço de Comunicação Social:  Pode-se dizer que a frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher” tornou-se uma das mais famosas de Beauvoir. Poderia nos explicar o significado dela? 

Izilda Cristina Johanson: Vivemos todas e todos no mundo em situação. O grau de possibilidade de interferir e, portanto, de conferir sentidos possíveis a esse mundo e à própria existência nele está diretamente relacionado, assim, ao campo de possibilidades, de condições de possibilidades de conferir autenticidade à própria subjetividade. Tendo isto em vista, podemos, então, definir uma situação de opressão. E o que principalmente define uma situação de opressão é a condição de que ela nunca é natural. O ser humano nunca é oprimido por coisas, assim como também não se revolta contra elas, porque a resistência que as coisas oferecem às pessoas é de ordem radicalmente diferente daquela que as pessoas oferecem umas às outras. Apenas o ser humano pode ser inimigo do ser humano. A opressão apenas pode ser vivida, e também praticada, por indivíduos humanos. E essa prática, prossegue Beauvoir, leva à divisão do mundo, no limite, em dois grupos: aquele dos que "edificam a humanidade", ou seja, que constituem propriamente o sentido dela e para ela; e aquele dos que são "condenados a vegetar sem esperança", que vivem apartados de si e cuja vida é empregada fundamentalmente na manutenção de uma coletividade da qual não pertencem inteiramente. A única alternativa ao oprimido, nessa situação, não pode ser outra senão a de recusar essa pretensa harmonia em virtude da qual sua liberdade é anulada. Ciente da existência dessa possibilidade real de revolta do oprimido e tendo como objetivo fundamental evitá-la, o "truque" mais diretamente empregado pela opressão é o de camuflar-se em situação natural, uma vez que não seria possível revoltar-se contra a natureza. De sorte que, um primeiro passo no sentido da libertação em relação às opressões é esse que precisa ser dado em direção à desmistificação da situação de opressão: ela não é natural. O ponto chave anunciado é precisamente esse que nesta obra posterior irá se transformar na descrição, feita com método, conhecimento de causa e rigor conceitual, dos mecanismos por meio dos quais se faz crer ser natural aquilo que, de fato, é opressão do sexo feminino. Assim, não será certamente por acaso que o primeiro volume de O Segundo Sexo - intitulado, justamente, Fatos e Mitos - será dedicado à desmistificação da situação da mulher. Toda a análise ali empreendida será dedicada a desfazer o mito do "segundo sexo" constituído, ao longo da história, pelas ciências, pelas artes, pelos saberes objetivos, por tudo aquilo que, afinal, tratou até hoje de dizer e de determinar o que é dado (da natureza, da vida psicológica, da vida social) e que, como tal, não pode ser superado pela vontade humana, e o que, ao contrário, pode ser construção desta. Um dos passos definitivos, no meu entender, dado por ela no sentido de uma ação realmente libertadora em relação à opressão à qual tem sido submetido o sexo feminino - e, neste sentido, já um engajamento feminista - foi esse empreendido na concretude da filosofia contida em O Segundo Sexo: saibamos todos e, principalmente, nós todas, mulheres, a situação de opressão do sexo feminino - e não se trata aqui de uma opinião simplesmente, mas de uma constatação - não é natural!

Serviço de Comunicação Social:  Qual a importância do livro para a luta feminista? Como essas ideias repercutem atualmente?

Izilda Cristina Johanson: Na medida em que a existência da mulher vai se compondo e se revelando em meio às suas situações, também as perspectivas de mudança desse cenário e, portanto, da mudança das condições para sua libertação, passam a ser também colocadas de modo concreto. Isto não significa que, por meio de O Segundo Sexo, Beauvoir pretenda prescrever o que exatamente se deve fazer para libertar inteiramente a mulher da opressão de gênero à qual está submetida (e mesmo que ela pretendesse, o que não é o caso, isto seria impossível). No entanto, é possível se chegar a algumas conclusões a respeito do vislumbre de um caminho possível para a liberdade da mulher. Eu gostaria, então, de pontuar duas coisas, neste sentido. A primeira e talvez a mais fundamental consideração a respeito disso seja a de que, seja qual for o caminho para a liberdade, este não se dará certamente pela via individual, pela luta de cada mulher isoladamente, mas, antes, terá de ser feito por meio da união das mulheres e pela via coletiva, isto é, por meio da ação política, as quais, por sua vez, deverão produzir transformações na sociedade como um todo, e não apenas a mudanças localizadas aqui e ali, para este ou aquele grupo, neste ou aquele momento. A segunda consideração diz respeito à causa na qual a ação política deve se engajar. Muito importante é a luta por direitos iguais em relação aos homens: o que significa ter livre acesso ao campo da ação (pública ou privada) sem ser discriminada nem muito menos excluída dela, mas muito importante também - e este é o ponto que Beauvoir faz questão de destacar na conclusão de O Segundo Sexo - é a luta para que seja possível mudar as condições que criam ou sustentam as situações de opressão e que, assim, impedem a mulher de constituir o mais livremente possível a sua subjetividade. Trata-se, portanto, de uma luta no sentido da mudança das condições por meio da qual a mulher relaciona-se consigo própria e com o mundo, algo que se faz sempre, e conforme a fenomenologia de Beauvoir ensina, por meio de seu corpo. O corpo em Beauvoir assume, assim, esse caráter político. Não, evidentemente, no sentido de que ele possa vir a ser um instrumento e como tal, tenha uma utilidade política, mas antes, porque, é como uma subjetividade encarnada que um indivíduo e, portanto, uma mulher pode não apenas se colocar no mundo, mas também, e principalmente, colocar o mundo, ou seja, realizar-se como liberdade.

Izilda Cristina Johanson é doutora em Filosofia pela FFLCH-USP, onde também concluiu mestrado e graduação. Seu trabalho de pesquisa concentra-se na área de filosofia contemporânea, com ênfase nos temas relacionados ao vital, à criação, à subjetividade, e também às questões de gênero e os estudos feministas e decoloniais.