Falecimento: Maria Isaura Pereira de Queiroz

A professora fez parte da geração de sociólogos brasileiros formados pela "Missão Francesa" que fundou a Faculdade de Filosofia em 1934

Por
Paulo Andrade
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Editoria

 

Faleceu no último sábado (29/12), a Professora Emérita Maria Isaura Pereira de Queiroz, do Departamento de Sociologia da FFLCH USP, aos 100 anos.

A professora fez parte da geração de sociólogos brasileiros formados pela "Missão Francesa", que fundou a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, em 1934.

Foi pioneira em estudos de Sociologia Rural no Brasil e uma das fundadoras do Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) da FFLCH USP.

Autora de diversas obras sobre sociologia rural, foi vencedora do Prêmio Jabuti de 1967 com o livro "O Messianismo no Brasil e no Mundo", fruto de sua tese de livre docência.

O professor e amigo José de Souza Martins escreveu sobre a professora:

O falecimento da Professora Maria Isaura Pereira de Queiroz é uma dessas perdas irreparáveis para a Universidade e para a cultura brasileira. Foi a grande discípula de Roger Bastide, orientador de seu doutorado, e socióloga que deu continuidade, com grande competência, a uma linha de pesquisas do grande mestre francês, que se  baseava em criativas intuições sobre a consistente realidade social à margem da razão e da dominância cultural e política européia. Maria Isaura foi quem melhor compreendeu  a criatividade sociológica de Bastide, que ensinara aos jovens estudantes da Faculdade de Filosofia da USP a enxergar e interpretar o Brasil com olhos antropologicamente brasileiros, a ver o que somos e não o que não somos e achamos que somos.

Maria Isaura Pereira de Queiroz, como Bastide, revelou-nos o Brasil para o qual as gerações seguintes ficaram melancolicamente cegas. Estudou o caipira e o sertanejo, a religiosidade popular, o mandonismo político, os movimentos messiânicos e o cangaço. O Brasil pré-político de uma falsa modernidade que nos ilude e engana. Temas ainda de grande atualidade, que já não reconhecemos, embora, ainda que nestas horas finais de 2018 estejamos no limiar de um ciclo político que repete os vícios do oligarquismo brasileiro, de uma reordenação da ordem política que se apoia mais em religião do que em partidos e doutrinas políticas.

A importância da obra de Maria Isaura foi mais reconhecida fora do Brasil do que aqui dentro, mesmo do que aqui em nossa Faculdade de Filosofia. Ela foi exilada aqui dentro da Universidade. Mas seus trabalhos foram traduzidos na Europa. O próprio Eric Hobsbawm, que tinha por ela enorme respeito, traduziu para o inglês um de seus trabalhos.

Filiada, aqui em São Paulo, ao grupo socialista de que fazia parte Antonio Candido, ativo contra o getulismo e a ditadura do Estado Novo, deu reiteradas demonstrações de coerência política, de ética e de integridade. Quando Florestan Fernandes foi preso, em 1965, Ela se encontrava no Canadá, participando de um Congresso. Ali sua voz indignada foi ouvida e repercutiu nos meios intelectuais de vários países. Repercutiu na Presidência da República. O general Castelo Branco, alarmado com as repercussões, determinou ao seu chefe da Casa Civil que apurasse quem era Florestan, para entender o acontecido. Luiz Viana faz referência a isso em suas memórias.

Quando do movimento estudantil de 1968, lá na rua Maria Antonia, os estudantes saíram da Faculdade de Filosofia para sua primeira grande passeata contra a ditadura. O diretor da Faculdade mandou fechar e trancar as portas da escola para que os estudantes fossem impedidos de nela reentrar. Maria Isaura puxou uma cadeira, colocou-a contra a porta, para impedir que fosse fechada, nela se sentou e com seu proverbial guarda-chuva em riste, informou ao professor Erwin Rosenthal: “Os estudantes combinaram que vão bater pique aqui. E vão fazê-lo.” Referia-se ao brincar de pique das nossas crianças. Para ela, era um pique político, não era uma brincadeira.

Quando a Faculdade foi atacada e fomos removidos para a Cidade Universitária, declarou ela numa reunião: “Vou ter dificuldade para me adaptar lá na Cidade Universitária. Minha família é tão urbana...” Ela foi dos poucos que entenderam que a mudança era um banimento de motivação política e militar. Era preciso afastar do centro da cidade o principal núcleo do pensamento crítico em São Paulo.

Num momento difícil de minha carreira, na renovação bienal de meu contrato de trabalho, Luiz Pereira, que foi meu amigo e que ficou me devendo o extenso trabalho solitário de pesquisa nos bairros e na periferia de São Paulo, entrevistas realizadas à noite, de seu projeto sobre Trabalho e Desenvolvimento no Brasil, alegou que não podia votar pela renovação porque não sabia se eu tinha méritos ou não. Eu havia trabalhado com ele durante anos, fazendo-lhe relatórios todas as manhãs sobre o andamento da pesquisa. Ele próprio não foi capaz de fazer uma única entrevista de sua extensa pesquisa. Nessa altura, eu já havia publicado vários trabalhos, citados dentro e fora do Brasil, um deles de certo modo até mesmo plagiado por terceiros. Maria Isaura foi a única voz no conselho departamental em minha defesa e em meu favor. Quando mais tarde precisei de uma cópia da ata para enfrentar novo episódio de adversidade, primeiro uma colega me disse que, sim, a ata existia, como não poderia deixar de existir. Minutos depois me telefonou para dizer que havia mentido, a ata não existia. Na verdade, fora destruída. Mais tarde, no concurso para regularização da situação funcional dos docentes, em face de uma conspiração para acertar previamente o resultado do concurso, Maria Isaura assegurou a isenção da banca, que foi firme na defesa da lisura do concurso, para assegurar que a classificação final se faria com base no mérito, no desempenho e na biografia intelectual dos participantes. Nesses dois episódios, minha carreira teria sido encerrada não fosse ela.

Tentei convencê-la a traduzir para o português sua referencial tese de doutorado sobre a Guerra do Contestado. Facilmente, convenci a Editora Hucitec a publicar o livro. Ela preferia que outra pessoa, de sua confiança, fizesse a tradução. Infelizmente, o projeto não vingou. O livro fora publicado em francês, num dos boletins da nossa Faculdade de Filosofia e assim permanece. Pode ser uma grande homenagem a ela traduzir esse livro e publicá-lo aqui, com todas as honras. A Edusp deveria assumir essa missão.

É preciso quebrar o silêncio. Por essa ausência, a Heloisa e eu estamos de luto.

José de Souza Martins

A professora foi sepultada no Cemitério da Consolação, em São Paulo, no último dia 30/12. 

A Missa de Sétimo Dia será realizada neste sábado (05/01), às 17 horas, na Igreja da Cruz Torta, na Av. Professor Frederico Hermann Júnior, 105 - Alto de Pinheiros, São Paulo. A entrada será aberta ao público.