Lei de Terras de 1850

Ainda que a escravidão tenha sido abolida somente em 1888, já na época da Lei de Terras os engenhos preocupavam-se com a iminente escassez da sua força produtiva

Por
Pedro Seno
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Entre 1822 e 1850, não havia regimento para terras no Brasil. (Arte: Pedro Seno)

Em entrevista concedida ao Hoje na História, o professor Rodrigo Goyena, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, explica a lógica da primeira legislação agrária do Brasil recém independente.

Foi a Lei de Terras, assinada em 18 de setembro de 1850, durante a regência do Imperador Pedro II. Duas semanas antes, a Lei Eusébio de Queirós determinou o fim do tráfico de escravizados no Brasil. Essas duas leis são interrelacionadas. Ainda que a escravidão tenha sido abolida somente em 1888, já na época da Lei de Terras os engenhos preocupavam-se com a iminente escassez da sua força produtiva. Os escravizados, que possuíam alta mortalidade e baixa natalidade, estariam em vias de esgotamento.

A nova mão de obra que passaria a vingar no país, a imigrante europeia, representava um risco às elites se ela passasse a possuir terras, pois a estrutura fundiária à época era juridicamente fraca e caótica. Havia forte interesse das oligarquias cafeeiras e do Estado para a manutenção e ampliação das terras brasileiras nas mãos dos já produtores. Todo novo trabalhador de lavoura, seja ele imigrante ou futuro ex-escravizado, deveria manter-se como mão de obra, jamais poderia tornar-se proprietário.

Entre 1822 e 1850, não havia regimento para terras no Brasil. Bonifácio, naquele ano de independência, foi quem congelou o sistema das sesmarias, uma herança da colonização portuguesa. A sesmaria era a doação de terras públicas a quem as tornasse produtivas, mas era tida como incerta para a realidade brasileira, onde a imensidão do território dificultava mantê-lo produtivo.

Mesmo assim, foi esse o início do perfil latifundiário do país. O antigo sistema que outrora serviu para frear o êxodo rural em Portugal, um país com muita população para pouca terra, no Brasil significou o ganho de enormes porções de terra para pouca população.

A primeira estratégia da Lei de Terras, porém, era o advento do registro da terra, em cartório, para garantir segurança jurídica ao proprietário e permitir a abertura de um mercado de terras. Depois, era fazer com que as terras tivessem um preço elevado o suficiente para que imigrantes e ex-escravizados não pudessem comprá-las. 

Além disso, os recursos advindos da venda das terras serviriam para o Estado patrocinar os custos gerais dos imigrantes, compondo um novo mercado de trabalho. Rodrigo Goyena chama isso de uma “lógica duplamente perversa”: ela impede o acesso mais amplo à terra e utiliza recursos públicos para o benefício de cafeicultores, com a garantia de que o trabalhador se fixaria à terra (pois precisa quitar suas dívidas com o Império).

Porém, a Lei falha. Ainda de acordo com Rodrigo, as terras públicas ofertadas eram latifúndios colossais e ficavam distantes dos centros de escoamento, impossibilitando a viabilidade de produção. Por isso, venderam-se poucas terras e não serviu de financiamento para mão de obra imigrante.

Contudo, a Lei vingou na medida em que gerava alta dos preços dos estabelecimentos que já eram privados no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, pois esses eram certamente mais valiosos do que as então muito caras terras distantes das províncias de Goiás ou Mato Grosso, por exemplo.

Outra formação que aparece com a Lei de Terras é um mercado de capitais. A concessão de crédito elevado, à época, era sobretudo de forma hipotecária. Com o registro, o proprietário poderia dar a terra aos bancos como garantia de crédito e assim fomentar seu plantel de escravos e aumentar a produção da fazenda. De forma geral, a Lei beneficiou um setor muito específico da população: os donos de engenhos.

Apesar dos muitos ajustes nas regras fundiárias, desde 1850, a divisão do território que a Lei propiciou tem reflexo até hoje. Lá, ficou marcada a escolha do país pelo latifúndio. Segundo dados do IBGE, em 2017, 1% dos estabelecimentos agropecuários concentravam 47,6% da área ocupada por todas as propriedades. Isso representou mesmo uma alta na concentração fundiária, pois o censo anterior, feito em 2006, mostra que essa área era de 45%.

A título de comparação, observa-se a Homestead Act, a lei de terras dos Estados Unidos da América, editada pelo presidente Lincoln em 1862, em meio à Guerra de Secessão. O objetivo era outro: o norte do país, de caráter mais industrial, precisava ampliar toda sua produção agrícola para o abastecimento dos quartéis, contra o sul, que já era mais agrário.

A definição, pois, foi a doação de minifúndios, pequenas propriedades, para os imigrantes que as fizessem produtivas. Isso fez com que o país se tornasse muito mais atrativo aos estrangeiros do que o Brasil e, de fato, captou uma enorme quantidade de europeus. A ideia não era a manutenção de mão de obra, mas sim a ampliação da produção geral.

Para Rodrigo, as duas leis são “perfeitos opostos”. A estrutura fundiária dos EUA hoje é de pequenas e médias propriedades com alta tecnologia, ainda que possua, sim, latifúndios, sobretudo no sul, mas nada que se compare à realidade brasileira.

Em artigo, a Agência Senado explica que o predomínio do latifúndio levou ao surgimento dos movimentos de trabalhadores sem terras e atraso técnico. A dificuldade em fiscalização de grandes propriedades “permitiu que os fazendeiros mudassem suas plantações de lugar sempre que determinada terra se esgotava, avançando sobre novas fronteiras agrícolas e derrubando florestas”. Caso fossem menores, as fazendas precisariam de tecnologia para continuar produzindo (Fonte: Agência Senado).

Confira entrevista realizada na íntegra:



Rodrigo Goyena da Silveira Soares é professor e doutor do Departamento de História da FFLCH. Leciona a disciplina de Brasil Império na graduação.