Publicação de "Raízes do Brasil"

Sérgio Buarque de Holanda, no seu livro Raízes do Brasil, identificou os elementos que teriam modelado o caráter nacional a partir de um levantamento histórico

Por
Larissa Gomes
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HOMEM COM PAISAGEM ATRAS
Sérgio Buarque de Holanda dedica o primeiro capítulo do seu ensaio à identificação da herança legada por portugueses e espanhóis ao longo do processo de colonização da América, segundo Monica Isabel de Moraes. (Arte: Larissa Gomes)


Como entender a estrutura e personalidade de um povo por meio de suas raízes históricas? Foi o que Sérgio Buarque de Holanda buscou compreender em seu livro Raízes do Brasil, ensaio publicado em 1936.

Segundo Monica Isabel de Moraes, doutoranda em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH), Buarque identificou elementos que teriam moldado o caráter nacional e a estrutura da sociedade brasileira, através de um levantamento histórico partindo das tradições ibéricas.

Entretanto, é necessário ressaltar que o objetivo da obra não é reconstruir a identidade nacional brasileira enquanto um conjunto de características estáticas que singularizam um povo, mas identificar mentalidades e concepções nascidas desde a colonização portuguesa, buscando entender as formas de vidas sociais aqui criadas a fim de superá-las.

Dessa forma, entende-se que esses aspectos sociais do país não são fixos e imutáveis, mas estão em contínua transformação.

Confira a entrevista completa com a doutoranda abaixo:

Serviço de Comunicação Social: Qual a temática central abordada pela obra? 

Monica Isabel de Moraes: O eixo investigativo que conduz Sérgio Buarque de Holanda no ensaio Raízes do Brasil corresponde a um esforço de compreensão das relações que aqui se estabeleceram, a partir das tradições ibéricas, entre estrutura da personalidade e estrutura da sociedade. Ou seja, o autor, a partir de um levantamento histórico, identificou os elementos que, segundo ele, teriam modelado o caráter nacional e, através do seu enquadramento sociológico, pôde identificar o desenho da estrutura da sociedade e da organização política a ela correspondentes. O professor Leopoldo Waizbort desenvolve mais longa e detidamente essa interpretação do ensaio de Sérgio Buarque de Holanda em seu texto O mal-entendido da democracia: Sérgio Buarque de Holanda e Raízes do Brasil, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 26 nº 76, junho/2011. 

Ao conjugar essas duas estruturas (personalidade e sociedade), buscando entender sua articulação, transformações e ajustes (o que implicava uma discussão histórico sociológica), Sérgio Buarque de Holanda constatou um desencontro entre, de um lado o “caráter nacional”, a “ética de fundo emocional” e, de outro, as exigências impostas pela “organização coletiva” e “racionalização da vida”, o que explicaria o sucesso do positivismo entre nós, posto ser a legislação o principal requisito de toda disciplina social. Esse descompasso revelaria a inaptidão do povo brasileiro para a convivência sob regras de instituições democráticas, cujo trecho emblemático segue transcrito: 

Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitido tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos. (HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. Ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 160) (Negrito meu) 

Sendo assim, Sérgio Buarque de Holanda dedica o primeiro capítulo do seu ensaio à identificação da herança legada por portugueses e espanhóis ao longo do processo de colonização da América. 

Apesar da bem-sucedida capacidade dos portugueses de adaptação às condições naturais aqui encontradas, bem como de enfrentamento de toda sorte de adversidades, predominava entre eles a cultura da personalidade. Esse sentimento de uma dignidade própria a cada indivíduo, marcado pela valorização extremada da pessoa e de sua autonomia em relação aos seus semelhantes, dificultaria, conforme o autor, o estabelecimento de formas de organização social que exigissem a solidariedade livremente pactuada.

No capítulo segundo, Sérgio Buarque de Holanda, valendo-se da tipologia weberiana – os tipos não são encontrados no mundo real e em estado puro, mas têm um valor heurístico por possibilitarem a identificação das disposições de conduta predominantes nas sociedades – considera que o processo de colonização nos trópicos foi um empreendimento que se deveu à ética da aventura. Isto é, o aventureiro, com características de audácia, imprevidência e irresponsabilidade, regeria suas ações pelo seu ideal a conquistar. Sem se deter diante de fronteiras e vivendo em espaços ilimitados, consideraria desprezíveis a estabilidade, a paz e a segurança pessoal. Por oposição à ética da aventura, Sérgio Buarque aponta a ética do trabalho, cujo indivíduo regido por diferentes valores, daria maior importância aos meios, à dificuldade a vencer e à persistência do esforço mesmo quando o resultado custa a ser atingido. Contudo, foi principalmente o espírito de aventura que favoreceu e estimulou a obra de colonização portuguesa nos trópicos. 

Quanto ao terceiro capítulo, Sérgio Buarque de Holanda volta-se para domínio rural autossuficiente e seus desdobramentos até a abolição, marco divisório entre duas épocas, pois, para o autor, o trabalho escravo era o principal esteio em que descansava o prestígio dos antigos senhores. Consequentemente, até 1888 predominara uma organização social enraizada no meio rural, sendo as cidades subordinadas ao campo. Posteriormente, os meios urbanos foram adquirindo, gradativamente, maior proeminência.

Na fase anterior à abolição, desde a colônia, a família patriarcal era o eixo que organizava o meio rural, cuja autoridade maior e inquestionável cabia ao proprietário das terras. O senhor rural tinha poder quase ilimitado, mantendo-se praticamente imune a pressões ou restrições externas ao seu domínio, que funcionava com bastante autonomia, pois mantinha internamente escola, capela; produzia toda a alimentação necessária à subsistência e manutenção daqueles que abrigava, bem como os móveis e demais itens necessários ao bom funcionamento do engenho. Enfim, a família patriarcal, que além dos membros consanguíneos, incluía também os agregados, escravos domésticos e das plantações, tornou-se tão poderosa e exigente que os sentimentos privados dessa comunidade doméstica se sobrepunham à ordem pública. Ou seja, o resultado da autoridade inquestionável do quadro familiar é que, em toda a vida social da época, houve “uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família”, conforme Buarque de Holanda.

Em seguida, no quarto capítulo, o ensaísta busca apontar as diferenças entre o processo de colonização português e o espanhol. Embora os dois povos partilhassem a cultura da personalidade e o espírito de aventura, a dominação colonial de Portugal orientou-se predominantemente pela vida rural e pelo objetivo de conformação às circunstâncias naturais encontradas. A orientação seguida na América espanhola, de forma contrastante, transcorreu de molde a se impor sobre a natureza, moldando-a aos seus interesses e objetivos. O traçado das cidades o demonstra com nitidez, posto que as cidades portuguesas se expandiam sem rigor e método, seguindo as determinações topográficas e enlaçando-se à linha da paisagem. Por sua vez, as cidades construídas sob o domínio do reino de Castela demonstram ter havido algum planejamento e a preocupação com o traçado retilíneo a partir da praça maior. 

O que explicaria tais contrastes seria o fato, conforme Sérgio Buarque de Holanda, de os portugueses priorizarem a exploração comercial de suas possessões de forma concentrada na faixa litorânea. Os espanhóis, em decorrência de ainda não constituírem, à época, um reino estável e unificado – mas composto por aragoneses, catalães e outros povos em disputa – buscaram fazer de suas terras na América uma possessão homogeneizada, racionalmente mais estruturada, e, por isso, espraiada pelo interior.

Dada a hipertrofia do ambiente doméstico patriarcal e autossuficiente, no quinto capítulo o ensaísta focaliza as consequências do seu predomínio sobre o funcionamento das atividades estatais, uma vez que o indivíduo oriundo de um núcleo familiar submetido ao patriarcalismo, e às suas disposições particularistas, dificilmente seria capaz de distinguir o domínio privado do domínio público. Daí resultaria que a esfera da política e a administração pública, instrumentalizadas para servirem a laços afetivos e de parentesco, se confundiriam com os interesses pessoais de seus agentes. O funcionário “patrimonial” – por oposição ao burocrata moderno, leal aos fins impessoais e funcionais em termos weberianos – tenderia a se comportar de modo a, na gestão política, sobrepor o interesse particular às exigências abstratas do Estado.

Por outro lado, essa “supremacia incontestável, absorvente do núcleo familiar” e as relações que ali se criam, estabelecendo laços de sangue e de coração, teriam contribuído, segundo Sérgio Buarque de Holanda, para a formatação de um traço do caráter brasileiro: a cordialidade.

Por fim, e de maneira bastante condensada, nos dois últimos capítulos de Raízes do Brasil a ênfase está em apontar que o conjunto da herança ibérica, e a orientação da cultura portuguesa em particular, ambas identificadas no predomínio do personalismo e do círculo doméstico entre nós, estariam em descompasso com as novas condições urbanas e industriais que se impunham nas primeiras décadas do século 20.

A superação desse desajuste não se viabilizaria pela simples importação de fórmulas estrangeiras, que apesar de tanto atraírem os brasileiros, não servem à vida no país. Talvez, por isso, “a democracia no Brasil tenha sido sempre um mal-entendido”. Não obstante, o país vivia um processo de profundas transformações que levariam a uma lenta, mas segura e concertada revolução. 

Serviço de Comunicação Social: Raízes do Brasil passou por muitas alterações por parte do autor; a ideia central do livro mudou ao longo das edições?

Monica Isabel de Moraes: O ensaio Raízes do Brasil foi publicado pela primeira vez em 1936, pela Livraria José Olympio Editora, inaugurando a Coleção Documentos Brasileiros sob a direção de Gilberto Freyre, que prefaciou o livro. A edição seguinte foi a público em 1948, pela mesma Coleção Documentos Brasileiros, desta vez sob a direção de Octávio Tarquínio de Sousa. Para esta segunda edição, Sérgio Buarque de Holanda modificou substancialmente o texto original, fazendo não apenas expurgos e inclusões, mas diversas alterações formais e de conteúdo. Nas edições seguintes, sendo a terceira de 1956, a quarta de 1963 e, a quinta e definitiva edição, de 1969, quando houve a inclusão do importante texto introdutório escrito por Antonio Candido, O significado de “Raízes do Brasil”, as alterações efetuadas por seu autor foram menos significativas e não impactaram as ideias contidas na obra, tampouco seu arcabouço argumentativo. 

Portanto, cumpre conhecer e entender as modificações que Sérgio Buarque de Holanda realizou em Raízes do Brasil para a segunda edição, em 1948.

O período que permeou a concepção e elaboração do ensaio publicado em 1936 foi marcado pelo insucesso das democracias liberais ocidentais em se recuperarem do colapso econômico do entreguerras; de darem uma resposta eficiente às demandas trabalhistas e, de uma forma geral, conseguirem dirimir conflitos sociais e econômicos acentuados pela Grande Depressão. Com o profundo impacto sofrido pela economia capitalista e de livre mercado, e assim, diante do fracasso do liberalismo clássico, os Estados iam se articulando, intelectual e politicamente, a partir algumas alternativas, como o fascismo – cujo avanço e crescimento deveu-se, em grande medida, ao fato de Adolf Hitler ter se tornado chanceler da Alemanha em 1933. Chamado de nacional-socialismo, o fascismo alemão contou com o incentivo da tradição intelectual alemã avessa às teorias neoclássicas do liberalismo econômico. Tendo sido bem sucedida na recuperação do desemprego e da depressão econômica da década anterior, a experiência alemã de abandono da democracia liberal tornou-se uma tendência mundial, de modo que as nações passaram a privilegiar o dirigismo estatal e os governos fascistas. No Brasil, a situação não era diferente, de modo que o debate versava sobre a organização nacional e o restabelecimento da ordem, com o fortalecimento da autoridade. O Estado Novo de Getúlio Vargas se aproximava e com ele, o Estado totalitário. Em face desse contexto político marcado pela forte crítica ao liberalismo, o projeto de um regime autoritário soava como uma alternativa política moderna, inovadora e promissora.

Portanto, em conformidade com os critérios políticos prevalecentes no período, sobretudo entre os países da Europa Ocidental, seria remota a possibilidade do autor de Raízes do Brasil, na edição de 1936, se manter fiel a um regime liberal sem sucumbir à onda autoritária que atingia os Estados. Autoritarismo e a figura carismática de um líder compunham as referências políticas internacionais que se mostravam mais habilitadas a conduzir a moderna sociedade de massas. As elites nacionais não poderiam (nem conseguiriam) se furtar a esses já consagrados modelos políticos.

Sérgio Buarque justificaria a sua crítica antiliberal expondo o artificialismo de um regime democrático destituído de bases sociais convergentes. No Estado liberal, o mundo das formas vivas seria precedido por um mundo de fórmulas e conceitos escorados em concepções abstratas, “como os famosos Direitos do Homem”, conforme consta na edição de 1936:

Superestimaram-se as ideias, que usurparam decididamente um lugar excessivo na existência humana. Julgou-se que um formalismo rígido e compreensivo de todas as ações individuais é o máximo de perfeição e de apuro a que pode aspirar uma sociedade. Esse engano só agora se dissipa lentamente. 

[...] Em verdade o racionalismo excedeu os seus limites somente quando ao erigir em regra suprema os conceitos assim arquitetados, separou-os irremediavelmente da vida e criou com eles um sistema lógico, homogêneo, a histórico (Holanda, 1936, p. 146-147).

Para reforçar seu argumento, o ensaísta faz referência ao professor Carl Schmitt, “conhecido teórico do Estado Totalitário” e “ilustre professor de Direito Público da Universidade de Bonn”, para quem o liberalismo “não estabeleceu ‘nenhuma teoria positiva do Estado, mas buscou tão somente associar a Política à Ética e subordiná-la à Economia; elaborou uma tese da divisão e do equilíbrio dos ‘poderes’, portanto um sistema de freios e controles do Estado que não pode se designar de teoria do Estado ou princípio político de construção’” (Holanda, 1936, p. 155, Nota 52, grifos meus).

Como para o nosso povo, para sua “alma”, o impulso natural à sua personalidade é o personalismo, nossa organização social e política só prosperará afinada com suas lógicas. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que Sérgio Buarque, sem pretender vincular se à ditadura, e tampouco à anarquia, propõe o regime oligárquico, marcado por lideranças pessoais, como aquele mais habilitado a identificar e expressar os sentimentos do povo de modo a articular a nação como organismo social.

O argumento cresce em importância diante do diagnóstico apresentado por Sérgio Buarque no capítulo inicial de Raízes, segundo Leopoldo Waizbort no artigo já citado. O controle da “nossa desordem” e da “nossa anarquia” só seria possível através de força externa e impositiva. Predominando, entre nós, o indivíduo autárquico e a personalidade individual exaltada, mas com forte propensão à obediência, dado que seria essa, para os ibéricos, a “virtude suprema entre todas” e “para eles o único princípio político verdadeiramente forte”, a sociedade correspondente viabilizar-se-ia enquanto garantida “por meio da força e do temor”.

Daí a defesa que Sérgio Buarque faz, no encerramento e conclusão de seu ensaio (capítulo sete), da tirania como princípio de autoridade e dominação capaz de organizar e conduzir a sociedade.

Com a cordialidade, a bondade, não se criam os bons princípios. É necessário um elemento normativo, sólido, inato na alma do povo, ou implantando pela tirania para que possa haver cristalização social. A tese de que os expedientes tirânicos nada realizam de duradouro é apenas uma das muitas invenções fraudulentas da mitologia liberal, que a história está longe de confirmar (Holanda, 1936, p. 156-157).

Por ocasião da edição de 1948 do ensaio buarquiano, nos pós Segunda Grande Guerra, retornou a forma de governo democrático. Com a prosperidade norte-americana, acompanhada progressivamente pelos países em reconstrução após o armistício, restou facilitada a negociação de acordos consensuais, especialmente em torno da aceitabilidade de seu Estado pela maioria dos cidadãos. No Brasil, após a queda de Getúlio Vargas em outubro de 1945, com a instauração de uma forma democrática de governo a partir das eleições de dezembro de 1945 e a promulgação de uma constituição liberal em 1946, o país aproximou-se dos Estado Unidos.

A tendência política global, ao menos prevalecente no Ocidente, priorizava os valores democráticos cujo porta-voz principal era a nação norte-americana. Com a retomada da orientação liberal, com algumas variações – como liberal-democracia, social democracia etc., as alterações empreendidas por Sérgio Buarque em seu texto apontam para a inflexão sofrida pelo pensamento do ensaísta em razão do movimento de redemocratização em plano nacional e internacional, como indica o professor Brasílio Sallum Júnior no texto Sobre a noção de democracia em “Raízes do Brasil” (In MARRAS, Stelio (Org.). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros, 2012).

Ainda que Sérgio Buarque tivesse mantido, para a segunda edição de seu ensaio, o mesmo enquadramento teórico-analítico da publicação de 1936, ou seja, o desencontro entre as ideias e a estrutura da personalidade nacional, a tensão que esse distanciamento provoca é atenuada no escrito de 1948 de modo a sugerir um amálgama possível e promissor. A partir da abordagem do movimento de entradas e bandeiras que expandiram as fronteiras do país a partir do Planalto de Piratininga, a tradição ibérica passou a ser vista não mais como legado fixo e imutável, mas em transformação continuada e permanente processo de adaptação às condições específicas do continente americano. Por meio das alterações efetuadas para a edição de 1948 de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque deixa entrever que o disciplinamento do sertanista paulista pôde exercer influência transformadora nos hábitos de vida patriarcais.

Um importante conjunto de modificações encontra-se no capítulo sete de Raízes do Brasil, quando o autor parece ter amenizado o personalismo que identificaria o caráter nacional, consequentemente oferecendo uma alternativa menos autoritária à tensão que resulta da sua dificuldade de associação coletiva. 

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Raízes do Brasil para a construção da identidade brasileira?

Monica Isabel de Moraes: Inicialmente, é necessário sublinhar que Raízes do Brasil não é um livro dedicado à reconstrução histórica, mas que a utiliza para a identificação de mentalidades e concepções nascidas no passado, em busca de entender a instituição e formas de vida social aqui gestadas. Sendo assim, seu objeto não é a reconstituição da identidade nacional brasileira enquanto um conjunto de características que singularizam nossa sociedade e seu povo. Sérgio Buarque buscou reconstituir aspectos de formas de vida social do país desde a colonização portuguesa tendo em vista que elas seriam superadas pela sociedade brasileira em transformação. Portanto, não são formas de sociabilidade fixas e imutáveis, mas que estão em contínuo processo de construção. 

Serviço de Comunicação Social: O conceito “homem cordial” se tornou muito relevante, poderia nos explicar melhor qual o sentido que Sérgio Buarque de Holanda quis trazer com cordialidade?

Monica Isabel de Moraes: Sérgio Buarque de Holanda, ao falar em cordialidade, não pensa em qualidades como a polidez e a civilidade, embora elas possam se confundir com a cordialidade. A polidez, para o ensaísta, serviria como uma defesa ante a sociedade; a civilidade resultaria de princípios coercitivos; para o “homem cordial” a sua sociabilidade sofreria forte impacto dos sentimentos, em detrimento da racionalidade.

O termo “cordial” está relacionado ao coração e aos sentimentos que dele se originam, como amor ou ódio. Portanto, o “homem cordial” é aquele que é dirigido pelo coração e por sentimentos, não por normas impessoais e abstratas, o que ocasiona graves empecilhos ao estabelecimento de uma ordem pública que se sobreponha aos interesses individuais ou de alguns grupos. Consequentemente, resulta difícil uma democracia estável.

Confira o Hoje na História sobre o nascimento de Sérgio Buarque de Holanda:
Nascimento de Sérgio Buarque de Holanda

Monica Isabel de Moraes é graduada em direito e em ciências sociais pela Universidade de São Paulo. Mestre e doutoranda em sociologia pela mesma Instituição. Também integra o Núcleo de Sociologia da Cultura da USP. Sua área de pesquisa é sociologia da cultura, com ênfase temática em pensamento social brasileiro, intelectuais e produção cultural.