Genocídio Armênio

O extermínio de armênios durou de 1915 até 1923, com uma estimativa de 1,5 milhões de mortos pelo governo otomano

Por
Paulo Andrade
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Genocídio Armênio
De acordo com Sarkissian, "apesar de ser muito estudado, o Genocídio Armênio foi por muito tempo desconhecido do público brasileiro talvez pelo fato da omissão do Brasil em reconhecê-lo como tal e não ser trabalhado nos livros didáticos". (Arte: Renan Braz)


O enredo é conhecido e atualíssimo: um governo em crise escolhe um culpado que, uma vez eliminado, possibilita a volta da prosperidade.

Em 24 de abril de 1915, o Império Otomano em crise econômica e geopolítica autoriza a prisão e execução de intelectuais e líderes armênios sob o pretexto de evitar supostos levantes separatistas.

As perseguições e assassinatos duraram até 1923, com uma estimativa de 1,5 milhões de armênios mortos pelo governo otomano.

Conversamos com Sarkis Ampar Sarkissian, professor da área de extensão em Armênio do Departamento de Letras Orientais da FFLCH e pesquisador do assunto, que explicou o contexto histórico do Genocídio Armênio.

Serviço de Comunicação Social: Poderia explicar em linhas gerais qual era contexto histórico e as motivações em que se desenrolou o genocídio?

Sarkis Ampar Sarkissian: A crise econômica provocada pela perda dos Bálcãs, somada às pressões por reformas e melhores condições das minorias, interesses financeiros das potências credoras do Império Otomano, além do aumento das tensões com o Império Russo e instabilidade interna tornaram terreno fértil para a propagação e implantação de uma ideologia nacionalista apoiada no fanatismo religioso que visava aniquilar qualquer voz contrária que servisse de pretexto para uma intervenção externa, como ocorrido anteriormente na Questão Balcânica.

Neste contexto, o panturquismo ajuda a diferenciar e estereotipar a minoria armênia como responsável pelas mazelas do império. Esta seria a solução mais rápida para a Questão Armênia.

Nos final do século XIX, o sultão Abdul Hamid II aproveita-se da radicalização presente na sociedade para conduzir massacres preventivos contra os armênios antes que um movimento separatista tomasse conta do seio do império, resultando no assassinato de aproximadamente 300 mil armênios.

Sob uma perspectiva reformadora, europeia e liberal, o Comitê União e Progresso liderado pelos Jovens Turcos angaria apoio das minorias que os viam como esperança de melhores condições de vida pela implementação de uma constituição e a instauração de um sistema parlamentarista frente ao absolutismo do sultão.

Deste modo, a deposição do sultão em meio à crise dos Bálcãs leva ao poder os Jovens Turcos. Porém, a ingerência do novo governo no interior do império tornou a convivência entre armênios e turcos cada vez mais tensas, desencadeando entre 15 e 20 mil mortos pelos conflitos com a participação do exército otomano que alimentavam ainda mais os ânimos de uma sociedade polarizada nos primeiros anos do século XX.

A partir de então, a política otomanista dos Jovens Turcos é substituída por um nacionalismo panturquista que visava resgatar o orgulho e a união dos povos turcos desde a Europa até a Anatólia e Ásia Central.

Assim, o Comitê União e Progresso se organiza paramilitarmente para oportunamente colocar em prática o plano genocida contra os armênios e o estopim da Primeira Guerra Mundial seria a oportunidade perfeita para esta solução final em meio à cortina de fumaça do conflito.

A entrada na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Impérios Alemão e Austro-Húngaro tinha por objetivo vingar o apoio das potências à independência dos Bálcãs.
 

Serviço de Comunicação Social: Qual foi a reação da comunidade internacional da época? E por que o Genocídio Armênio é um assunto pouco conhecido no Brasil?

Sarkis Ampar Sarkissian: Um mês após o Império Otomano ter colocado em prática o plano de extermínio dos armênios, as Potências Aliadas (França, Grã-Bretanha e Rússia) utilizaram o termo “crime contra a humanidade” pela primeira vez na história para acusar um outro Estado de executá-lo.

Testemunhos como os do embaixador estadunidense em Constantinopla Henry Morgenthau, dos historiadores britânicos Arnold J. Toynbee e James Bryce, da missionária dinamarquesa Maria Jacobsen, do médico e soldado alemão Armin T. Wegner e do casal de missionária e físico estadunidenses Elizabeth e Clarence Ussher são alguns dos que denunciaram e  repercutiram as atrocidades cometidas contra os armênios, mobilizando a opinião pública internacional em campanhas de ajuda humanitária como a Cruz Vermelha Internacional e o American Committee for Armenian and Syrian Relief.

Apesar de ser o segundo genocídio mais estudado, o Genocídio Armênio foi por muito tempo desconhecido do público brasileiro talvez pelo fato da omissão do Brasil em reconhecê-lo como tal e não ser trabalhado nos livros didáticos.

Nos últimos anos o movimento de afirmação deste crime contra a humanidade ganhou forças com os reconhecimentos pelos estados de São Paulo, Ceará, Paraná e Rio de Janeiro e em 2015, quando de seu centenário, tomou grande projeção e foi reconhecido pelo Senado Federal.
 

Serviço de Comunicação Social: Quais as principais consequências geopolíticas na região após o genocídio? E como isso se reflete nas atuais regiões turcas e armênias?

Sarkis Ampar Sarkissian: O Genocídio Armênio trouxe grandes consequências geopolíticas para a região. A Primeira Guerra Mundial é conhecida por colocar fim aos grandes impérios e deslocar o eixo de poder do Velho Continente para os Estados Unidos.

Na região, o Império Russo cai e a Revolução Russa desencadeia uma guerra civil. A instabilidade interna em meio à Primeira Guerra Mundial dá abertura a negociações entre a Rússia Soviética e as Potencias Centrais que resultam na saída russa da guerra com a assinatura do Tratado de Brest-Litovsk.

A Armênia, que neste momento constituía-se como parte da Federação Transcaucasiana, vem a declarar sua independência em 1918 nos limites da chamada Armênia Russa e de uma pequena porção dos territórios armênios do Império Otomano.

Posteriormente, nas negociações do Tratado de Sèvres os armênios apresentam suas mais abrangentes revindicações e compensações territoriais que constituiriam a Armênia Integral.

As pretensões armênias receberam respaldo do presidente estadunidense Woodrow Wilson, que delimitaria as novas fronteiras da Armênia. Em 1920, o tratado é assinado e, além da partilha do Império Otomano entre armênios, britânicos, gregos e franceses e zonas de influência, estabelecia o reconhecimento da Sublime Porta por seus crimes cometidos durante a guerra.

No entanto, a ascensão do movimento nacionalista liderado por Mustafá Kemal Atatürk retoma as hostilidades contra os armênios e sepulta o efeito do tratado.

Apesar das duras posições dos Estados Unidos e Grã-Bretanha contra os desmandos turcos e dos apelos armênios à Liga das Nações apoiados, inclusive, pelo Brasil e Espanha, a Armênia tem sua entrada vetada na organização e sem saída, o que ainda restava de seu território, acaba sendo anexado em 1920 pelos soviéticos em troca de proteção ao custo de sua autonomia e soberania.

A Turquia, sucessora do Império Otomano, surge em 1923 tentando recompor as frustrações otomanas por meio de um nacionalismo que visava modernizar e ocidentalizar o país. O fracassado Tratado de Sèvres é substituído então pelo Tratado de Lausanne que reconheceu a soberania das fronteiras turcas nos territórios da Armênia Wilsoniana e abafa de vez as reivindicações armênias por reparações, permanecendo a Turquia até hoje impune pelo crime cometido.

A bipolaridade da balança de poder não era favorável à Armênia, pois seria uma grande ameaça a existência de um protetorado estadunidense às portas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Assim, Armênia e Turquia permaneceram mais de 70 anos até a desfragmentação da URSS e a reconquista da independência armênia, em meio a um conflito com o vizinho Azerbaijão pelo controle do território de Nagorno-Karabagh, que desde 1994 permanece em um cessar-fogo sem solução. Apesar de a Turquia ter sido um dos primeiros países a reconhecer a segunda independência da Armênia de 1991, mantém suas fronteiras unilateralmente fechadas por um embargo em apoio aos azerbaijanos.

Em 2009, uma tentativa de estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países foi realizada por meio dos Protocolos Armeno-Turcos sob os auspícios de França, Rússia e Estados Unidos. Contudo, ambas as partes postergaram por anos suas ratificações em meio a duras críticas sob as concessões impostas. Em 2018, a Armênia declara os protocolos nulos e sem efeitos mediante a falta de boa-vontade política da parte turca para ratificá-los.
 

Serviço de Comunicação Social: Poderia falar um pouco sobre a área de estudos armênios na USP e como ela pode ajudar para uma consciência histórica mais sólida para nós?

Sarkis Ampar Sarkissian: A Área de Língua e Literatura Armênia da FFLCH USP data de 1962, quando da criação da Secção de Estudos Orientais pelo professor Eurípedes Simões de Paula, e teve como seu fundador e primeiro professor Yessai Ohannes Kerouzian. Assim, a USP se torna uma instituição pioneira nos estudos armênios no país e em toda a América Latina, além de ter sido a primeira universidade fora da Armênia a oferecer titulação superior em armênio.

Desde então, a manutenção do curso de armênio na USP é responsável pela difusão da língua, literatura, história e cultura armênias para gerações de descendentes de armênios e brasileiros, sendo um núcleo de resistência e preservação da memória de uma nação milenar numa das melhores e mais respeitadas universidades do mundo.

O Curso de Armênio nasceu do interesse e necessidade histórica de fornecer uma visão de mundo ampla e diversificada para além da hegemônica ocidental. Neste contexto, a Área tem trabalhado, essencialmente, desde sua fundação para a educação e conscientização do Genocídio Armênio, tema onipresente em manifestações artísticas, culturais e literárias.

A intensa atuação do curso se dá não apenas no ensino, mas na pesquisa e extensão, atraindo centenas de alunos para suas cadeiras todos os anos. Entre os temas mais pesquisados e de interesse dos alunos está o Genocídio Armênio, que se somam a eventos internacionais sobre o tema organizados na USP.