Canal facilita a rota marítima na ligação entre Europa e Ásia
Em abril de 2021, um navio ficou encalhado durante 12 dias no Canal de Suez. Nesse período, mais de 400 embarcações ficaram aguardando para poderem navegar ao longo das extremidades sul e norte. Com o acontecimento, ficou evidente a importância do Canal de Suez para o comércio marítimo mundial.
Os professores Natalia Nahas Carneiro Maia Calfat, da área de Ciência Política e com estudo no Oriente Médio e Mundo Muçulmano, e Alexandre Almeida Marcussi, da área de História da África, explicam sobre o Canal de Suez.
Serviço de Comunicação Social: Em qual contexto o Canal de Suez surgiu?
Alexandre Almeida Marcussi: O canal de Suez foi construído entre 1859 e 1869, mas o projeto para um canal ligando o mar Mediterrâneo ao mar Vermelho era mais antigo. Napoleão Bonaparte, que promoveu uma campanha de conquista militar e uma grande expedição científica ao Egito no final do século 18, financiou estudos arqueológicos sobre os canais fluviais que haviam existido na antiguidade, ligando o Nilo ao mar Vermelho. Ele também apoiou a ideia de abrir um canal mais longo, conectando o mar Vermelho ao Mediterrâneo. O projeto não saiu do papel, mas os planos não foram abandonados, e a viabilidade da construção do canal continuou sendo estudada durante toda a primeira metade do século 19.
Não é fortuito que a ideia tenha sido alimentada nessa época. A primeira metade do século 19 foi um período de expansão do comércio marítimo europeu e, sobretudo, de mudança de paradigma dos projetos comerciais das nações europeias. A abolição gradual do comércio atlântico de pessoas escravizadas da África para as Américas abriu espaço e capitais para o comércio de outras mercadorias relacionadas com as novas economias industriais. A independência política das Américas também levou à procura de novas zonas de influência europeia para além do Atlântico, com destaque para a Índia. A Grã-Bretanha já exercia controle sobre algumas regiões da Índia desde o final do século 18, mas expandiu significativamente seus territórios por meio de uma série de invasões militares e anexações na primeira metade do século 19, o que intensificou o comércio com a região. Houve, assim, um gradual deslocamento do eixo comercial do imperialismo europeu do Atlântico para o Índico nessas décadas. Em meados do século 19, a Índia e o extremo Oriente recebiam até 60% das exportações britânicas de algodão, por exemplo.
Nesse contexto de expansão do comércio europeu e de consolidação da dominação política europeia sobre regiões do Oriente, a abertura de uma rota marítima que diminuísse tanto o tempo quanto os custos dos transportes tornou-se um projeto cobiçado pelas potências e companhias europeias. O canal foi construído pela Companhia Universal do Canal Marítimo de Suez, criada com capitais franceses especialmente para a tarefa, com o aval do governante do Egito, o quediva Said Pasha. Tanto a companhia quanto o governo egípcio detinham ações do canal, e o Egito precisou fazer vultosos empréstimos financeiros com bancos europeus para levantar sua parte do capital necessário para o investimento inicial na obra. Mais tarde, essa dívida externa adquirida com a construção do canal viria a cobrar um preço muito alto para o governo egípcio.
Serviço de Comunicação Social: Qual era a importância do Canal de Suez no século passado e qual seu impacto para o Oriente Médio?
Natalia Nahas Carneiro Maia Calfat: Conectando o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho, o Canal de Suez permitiu a facilitação da rota marítima na ligação entre Europa e Ásia. A partir de 1869, não havia mais necessidade de se contornar o Cabo da Boa Esperança para se dirigir à Ásia, tornando o Canal de Suez uma das rotas marítimas mais usadas no mundo até hoje. Com uma localização altamente estratégica, Albert Hourani se refere a sua inauguração “como uma das grandes ocasiões do século”, na medida em que introduziria a inserção do Egito ao “mundo europeu”. O próprio evento de inauguração da obra contou com imperadores, príncipes, artistas e cientistas do continente. A abertura do canal e as exportações egípcias beneficiavam industrialistas e financistas europeus, tendo atraído também a atenção do Império Britânico, cujo comércio na Ásia ia até a Índia e o Extremo Oriente. A manutenção dos interesses franceses e britânicos no Oriente Médio e a garantia dos impérios enquanto potências não somente mediterrâneas, mas também mundiais, passavam pelo canal. Além disso, seu financiamento foi feito através da Suez Canal Company, sediada na França, que detinha 52% das ações. Com o endividamento egípcio, em 1875 as ações do Egito foram vendidas à Grã-Bretanha, impondo-se o controle financeiro anglo-francês sobre o canal. A intervenção diplomática franco-britânica precedeu a intervenção militar britânica em 1882 – que passou a virtualmente governar o Egito. Por fim, além do mercado manufatureiro, financista, petroleiro e de recursos minerais, o interesse no Oriente Médio também foi composto pelo compromisso moral britânico de apoiar a criação de um lar judaico na Palestina, e do comprometimento francês com os cristãos nas regiões sob seu mandato. Além de centro para o comércio internacional, o canal também representou a oportunidade de concessões em inúmeras regiões para portos, estradas de ferro, fornecimento de água, eletricidade e rede de comunicações, beneficiando financistas estrangeiros. No início do século 20, o norte da África também atraia comunidades estrangeiras, contribuindo para alterar inclusive os costumes sociais, sobretudo nas grandes cidades. Ao longo do século 20, a disputa pelo canal marcou não somente as aspirações nacionalistas egípcias e a presença estrangeira, como também a relação e disputa com seus vizinhos regionais.
Serviço de Comunicação Social: Qual impacto o Canal de Suez teve para a África?
Alexandre Almeida Marcussi: O impacto da construção do canal foi especialmente relevante para o Egito. Inicialmente, houve também um pequeno impacto para a colônia britânica do Cabo, na atual África do Sul, que perdeu um pouco de sua importância como ponto de parada da navegação marítima entre a Europa e o Oriente. Contudo, essa relativa perda foi mais que compensada pelo boom econômico que se seguiu à descoberta de diamantes e ouro na África do Sul na década de 1860.
No caso egípcio, as consequências da construção do canal foram muito mais profundas e duradouras. Na época, o Egito era formalmente parte do império Otomano, mas havia conquistado uma autonomia política de fato com o regime do quedivato. Os quedivas iniciaram um processo de modernização do Egito que era politicamente autônomo em relação às potências europeias, ainda que dependessem fortemente dos investimentos financeiros europeus. A construção do canal de Suez foi uma das maiores apostas desse processo de modernização, e foi viabilizada por vultosos empréstimos junto a bancos europeus. O acúmulo da dívida externa levou o governo egípcio a vender suas ações do canal para companhias britânicas, e constituiu o pretexto para que franceses e britânicos impusessem um controle político sobre o Egito que culminaria na dominação colonial britânica.
Em 1876, França e Grã-Bretanha impuseram ao quediva egípcio a criação de uma comissão de dívida pública, que detinha controle sobre todas as finanças do governo egípcio e que estava, na prática, nas mãos de diplomatas franceses e britânicos. Foi o chamado regime do “Controle Dual”, que rapidamente levou à deposição do quediva e ao aumento da influência europeia sobre o governo local. Em 1882, uma revolta das forças armadas egípcias contra o regime de Controle Dual serviu como pretexto para um bombardeio militar britânico em Alexandria e para a instauração de um regime de protetorado, com controle político muito mais estrito por parte dos britânicos. Essa situação política só terminaria na prática em 1952, com a revolução nacionalista liderada por Gamal Abdel Nasser. Portanto, é possível dizer que o canal de Suez foi um dos eventos-chave que conduziram à dominação colonial do Egito no final do século 19.
Serviço de Comunicação Social: Qual a importância do Canal de Suez nos dias atuais?
Alexandre Almeida Marcussi: Apesar de o canal de Suez ter sido idealizado e construído numa época em que os transportes marítimos eram a única alternativa viável para longas distâncias, o desenvolvimento da aviação comercial não alterou significativamente a importância econômica do canal. Ele inclusive adquiriu nova relevância econômica no contexto de expansão econômica e transferência de plantas fabris para a China desde o final do século 20, e hoje é especialmente importante para o comércio entre a China e os países europeus.
Por conta de sua continuada relevância econômica ao longo de todo o século 20 e até os dias atuais, o canal vem recebendo uma série de obras de alargamento e aprofundamento. Atualmente, por conta dessas expansões, o canal permite o trânsito simultâneo de cargueiros comerciais nos dois sentidos. Um indício de sua importância continuada é o fato de que o canal obteve, no ano de 2023, lucro recorde de 9,4 bilhões de dólares. Para se ter uma ideia do volume do trânsito de mercadorias, em 2021, quando o canal ficou obstruído durante quase 6 dias por um cargueiro vindo da China que encalhou, as perdas econômicas totais foram estimadas em mais de 50 bilhões de dólares.
Serviço de Comunicação Social: Como os conflitos envolveram o Canal de Suez?
Natalia Nahas Carneiro Maia Calfat: A Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos alteraram a estrutura de poder mundial, ao cabo, significando o fim do domínio francês e britânico na região nas décadas seguintes. O nacionalismo árabe efervescente dos anos 1950 e 1960 teve na figura do egípcio Gamal Abdel Nasser a representação da necessidade de independência do julgo europeu e de reformas sociais mais inclusivas. O não-alinhamento egípcio durante a Guerra Fria, ao lado de outros países árabes, além do acordo de fornecimento de armas soviéticas ao Egito em 1955, o colocava em rota de colisão com os interesses políticos e econômicos de potências ocidentais. O sentimento nasserista pró-palestino também desagradou norte-americanos, em razão de sua aliança com Israel, além de suas influências revolucionárias potenciais sobre Iraque e Argélia. Em 1956, o Canal de Suez foi protagonista de uma crise quando o governo egípcio subitamente decidiu pela nacionalização do canal, após a retirada da oferta norte-americana de financiamento de um projeto de irrigação no país, a barragem de Aswan. A ação egípcia de administração do canal foi entendida como hostil, motivando o ataque ao Egito e tentativa de derrubada de Nasser por França, Grã-Bretanha e Israel. Devido às tensões com Israel e sob presença militar estrangeira, o canal foi fechado entre 1956 e 1957. Contudo, em razão do potencial colapso financeiro e sob pressão norte-americana e soviética, as forças israelenses, francesas e britânicas se retiraram do Suez. Israel não ganhou a liberdade de utilizar o canal, mas recuperou os direitos de navegação no Estreito de Tiran. Como resultado da crise, Grã-Bretanha e a França perderam a maior parte da sua influência no Médio Oriente.
O canal foi protagonista de uma nova crise durante a guerra de 1967, quando a passagem também foi fechada para transporte marítimo internacional, dessa vez por 8 anos. Após o fechamento do Golfo de Aqaba aos navios israelenses, forças de Israel ocuparam o Sinai até o Suez. A guerra de 1967 mudou o equilíbrio de forças no Oriente Médio e deteve o avanço do nacionalismo e união árabe na medida em que representou a derrota de países como Egito, Síria e Jordânia, dispersando a reação árabe nas décadas seguintes entre a normalização com Israel e o islamismo político. Além do estabelecimento de Israel enquanto potência regional, o conflito assumiu uma face internacional, derrotando aliados soviéticos. Egito e Israel travaram uma “guerra de atrito” entre 1969 e 1970 ao longo do Canal de Suez, que foi encerrada com o auxílio da diplomacia internacional. Em 1973, durante a Guerra do Yom Kippur, Egito e Síria atacaram Israel novamente, quando mais uma vez o Canal foi palco de disputas regionais. Em 1979, o Egito selou um acordo de paz com Israel. Além do reconhecimento das fronteiras internacionais das partes, o tratado estabelece o direito à navegação e à livre passagem de navios e mercadorias israelenses pelo Canal do Suez.
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Alexandre Almeida Marcussi é historiador, com graduação, mestrado (2010) e doutorado (2015) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pós-doutorado (2023) pela Universidade Estadual de Campinas. É professor de História da África no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor do livro Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana (2016), e seus temas de pesquisa incluem a história das religiões e dos intelectuais africanos na África e na diáspora.
Natalia Nahas Carneiro Maia Calfat é doutora em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Possui mestrado em Ciência Política e bacharelado em Ciências Sociais pela mesma instituição e pós-graduação em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). É integrante desde 2009 do Grupo de Trabalho sobre Oriente Médio e Mundo Muçulmano na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (GT OMMM), vinculado ao Laboratório de Estudos da Ásia (LEA).