Nota de falecimento do Prof. Rubens Rodrigues Torres Filho

Aos 81 anos de idade morre Rubens Rodrigues Torres Filho, um dos grandes professores de Filosofia da FFLCH

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Rubens Rodrigues Torres Filho (1942-2023)

Aos 81 anos de idade morre Rubens Rodrigues Torres Filho (1942-2023), o grande professor de Filosofia da FFLCH, talvez no ver de muitos, genial. Não sei se se poderia dizer especialista no sentido vulgar da palavra, mas como os que leram sua obra e conviveram com ele, percebia-se nesta figura inesquecível e em suas palavras, o brilho e a genialidade da filosofia. Não dava para se enganar, ele trazia em si a força da palavra e da linguagem. Filosofia na veia e veia humorística insuperável. Estudioso e mestre de Fichte, cujo livro, O espírito e a letra é magistral, poeta, professor sem vícios burocráticos, sua inteligência e aptidão para o saber dominavam com graça e habilidade seus afazeres.

Poeta e dos bons nos trazia mais e mais palavras com seu estofo de verdades. Tive a sorte de ser sua orientanda, coisa de que nunca me esqueço. Tudo que aprendi filosoficamente e quotidianamente (porque não), foi com ele, desde a primeira aula inaugural até a fazer marcha a ré sem derrubar paredes da entrada da casa da Rua Camiranga, onde ele morava numa vila poética e despretensiosa. Lá, além de mil assuntos filosóficos ou não, conversávamos sobre o meu mestrado e doutorado e encontrávamos pessoas queridas, que não sei mais onde andam. Ele dava muitos cursos, sobretudo sobre filosofia alemã, que lia e relia para nós “con amore” apesar do rigor do métier impedir, às vezes, o poupar as ironias e a inevitável retomada dos textos que tinham sido meio amarfanhados na exposição dos candidatos.

Rubens não ensinava filosofia, ele apresentava a filosofia diante de nós, como presença obrigatória. Suas aulas magnas se davam quando lhe aprouvesse e esperávamos por vezes uma a duas horas para seu início. Claro que esse “tempo perdido” valia a pena e preparava para a reflexão, mesmo talvez, à nossa revelia. Esperávamos pela palavra exata e pela pontuação precisa do pensamento. Aliás, foi a isso que sempre associei a palavra “pensamento” e precisão no ensino.

Muito terá que ser dito do Rubens, além dessas impressões de uma “desorientanda”, como ele gostava de me chamar com fino humor.

Esperemos por livros e artigos sobre Rubens e pela sua presença constante junto aos estudantes mais novos, não só daqui, mas do mundo todo. Que essa nota pretenda mostrar apenas algo do que vimos nele.

Adeus querido, Maria Lúcia Cacciola

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Querido Rubens,

filósofo de primeira grandeza e poeta genial, meu colega de graduação, pós-graduação e magistério. Sentiremos sua falta, mas sua obra acompanhará na fieira dos tempos colegas, alunos e amigos.

Marilena Chaui

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Quando Rubens se tornou aluno do curso de graduação de filosofia em meados da década de 1960, cursava direito no Mackenzie. Teve sua destinação alterada quando descobriu uma nova vocação assistindo a uma aula inaugural do jovem sociólogo Fernando Henrique Cardoso, na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na rua Maria Antônia, em São Paulo. Em 1967, defendeu um mestrado sobre “A finitude do eu na primeira filosofia de Fichte”. Em 1972, após um longo estágio na França, veio a tese “O espírito e a letra. A crítica da imaginação pura, em Fichte”, publicada como livro em 1975. O próprio Rubens nunca teve em alta conta o seu mestrado, que ele considerava um trabalho imaturo (a leitura dessas páginas faria corar muitos estudantes mais pretensiosos que vieram depois). Quanto ao doutorado, estava perfeitamente ciente, sem nenhuma falsa modéstia, de que se tratava de um trabalho extraordinário. Começando em meados da década de 70 e indo até os da década de 90, escreveu ensaios que desenvolvem suas pesquisas anteriores e abrem caminhos para novas, estimulantes. Foram parcialmente reunidos em Ensaios de filosofia ilustrada (1987; 2ª edição aumentada, 2004).

Adepto da disciplina acadêmica da “história da filosofia”, elevou-a a níveis de rigor poucas vezes vistos no Brasil. Aplicou sua destreza no manejo das línguas (com destaque para o alemão, o francês e o português) não somente em benefício de seus estudos, mas, também, em traduções esmeradas, que permanecem como referências da arte. Verteu para o português, na coleção os Pensadores e alhures, textos de Adorno, Benjamin, Kant, Fichte, Nietzsche, Novalis e Schelling, entre outros. Além de “professor de filosofia” (como gostava de dizer), Rubens foi poeta, e dos bons. Estreou na cena em 1963 com Investigação do olhar. Em 1981, foi premiado com o Jabuti em poesia pelo volume O voo circunflexo (mantinha a estatueta à vista, na mesa de centro da sala de estar). Reuniu sua obra poética (incluindo um punhado de traduções de autores como Hölderlin, Rimbaud e Schiller) em Novolume, publicado em 1997 pela editora Iluminuras, à qual se associara desde a década anterior como diretor da coleção Pólen, na qual até hoje são publicadas traduções comentadas de textos filosóficos.

Os que foram seus alunos haverão de se lembrar da facilidade com que extraía dos textos os significados mais inesperados, de sua ironia fina, não raro associada a certa mordacidade, e da maneira generosa com que compartilhava achados preciosos, que eram seus. Os que privaram de sua amizade não esquecerão da sedutora urbanidade que permeava o seu trato e do fascínio exercido por uma figura de envergadura intelectual que não cabia nos limites do mundo acadêmico.

Pedro Paulo Pimenta

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O ritual era simples. A cada 15 dias, uma garrafa de uísque à mesa, 2 copos, vários cinzeiros. Eu sentava e lia trechos de uma tradução em andamento. Ele ouvia, corrigia, eu anotava, protestava às vezes, ele contra-argumentava e a solução dele era sempre melhor que a minha. Semanas se passavam, a tradução terminava e ele me entregava um outro texto, uma outra tarefa. Mesma dinâmica. Durante os anos finais da minha graduação e mesmo início da pós, ele me “adotou” para uma espécie de iniciação científica (que não existia ainda) caseira, informal, num sobrado de vila perto da Rua Oscar Freire – nas palavras de um amigo dele, também tradutor, ele morava “numa cidade do interior a um passo de distância de Manhattan”.

Outro ritual, igualmente simples, era em sala de aula. Seus cursos começavam quase sempre com um seminário, dado por ele, sobre um trecho do texto que seria lido ao longo do semestre. Era um “É assim que se faz”, o mais elegante que já vi. Nas semanas seguintes, os alunos se esfalfavam, se contorciam, tartamudeavam e demais verbos assemelhados para apresentar seus respectivos seminários. Ao final de cada exposição, ele pigarreava, fazia um comentário mais genérico, depois dizia algo como “Tem uma coisa aqui, no começo do texto, um verbo, que merece um comentário mais detido”. A seguir, dava novamente o mesmo seminário feito pelo aluno ou aluna e mostrava aspectos que ninguém havia percebido, talvez nem mesmo o autor clássico das linhas analisadas.

A cada aula, portanto, tínhamos demonstrações reiteradas e deslumbrantes de leitura e interpretação de texto, feitas com uma minúcia e um rigor que jamais encontrei superados – uma atividade dificílima, que ele resumia numa fórmula falsamente simples: “uma experiência de texto”. Quando alguém genial nos deixa, sentimos ainda mais nossa pequenez. Rubens Rodrigues Torres Filho, nosso maior tradutor, nosso melhor leitor, nosso melhor intérprete, nossa junção única de filósofo brilhante e poeta finíssimo, era isso: um gênio.

Marcio Sattin