Dissertação de mestrado realiza estudo sobre Luiz Gama e sua clientela

A partir de documentos judiciais, periódicos, literários e cartas produzidas pelo intelectual e ativista negro, ou nas quais ele é assunto, foi elaborada uma amostra com mais de 100 pleitos judiciais e mais de 400 clientes

Por
Eliete Viana
Data de Publicação

*Matéria atualizada em 01/12/2021, às 11h49
 

Luiz Gama - Rede Brasil Atual
Durante a pesquisa, foi encontrado um grande volume de textos de jornal escritos por Luiz Gama ou em que ele aparece como notícia. Foram Identificamos quase 300 desses textos, distribuídos entre vários órgãos de imprensa, como o Correio Paulistano, A Província de São Paulo, o Jornal da Tarde, o Diário de São Paulo; e a Revista Comercial - Fotomontagem: Vinicius Vieira/Jornal da USP 

 

No começo de novembro, mês da Consciência Negra, foi defendida uma dissertação de mestrado com o título Entre as ruas e os tribunais: um estudo de Luiz Gama e sua clientela, de Luiz Gustavo Ramaglia Mota, com orientação da professora Maria Helena Pereira Toledo Machado, do Departamento de História, pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

No trabalho, o xará do abolicionista usou como fontes documentos judiciais, periódicos, literários e cartas produzidas por Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), intelectual e ativista negro, ou nas quais ele aparece como assunto.

Nos procedimentos metodológicos, priorizou a análise das fontes judiciais e periódicas e, a partir do cruzamento delas, encontrou inúmeras evidências de Luiz Gama e de seus clientes. Então, foi elaborada uma amostra com as informações coletadas, totalizando mais de 100 pleitos judiciais e mais de 400 clientes. 

O contexto histórico que envolve esta pesquisa é que a partir da segunda metade do século XIX, a província de São Paulo observou crescentes manifestações de sujeitos e grupos que denunciavam os abusos do regime escravista, incluindo a ilegalidade do cativeiro.

Gama destacou-se entre esses agentes, buscando em seu conhecimento jurídico e nas suas redes de solidariedade os fundamentos para usar seu ativismo político. Como contraparte a esse ativismo, inúmeras mulheres e homens subalternizados buscaram, com o apoio de Gama, lutar por direitos na Justiça.

A pesquisa possui um duplo objetivo: mapear a clientela de Gama ao mesmo tempo em que investiga aspectos de sua experiência enquanto advogado abolicionista negro. Para isso, utilizou a trajetória de Gama como “ponto de partida” para alcançar as histórias dos inúmeros sujeitos que compuseram a sua clientela.

"A análise da clientela identificou diversos perfis étnico-raciais (negros e brancos), de gênero (mulheres e homens), de estatuto jurídico (livres, libertos, libertandos e escravizados), crianças, adultos e idosos; além de trabalhadores de variados ofícios e profissões; bem como algumas das estratégias usadas pelo advogado. Encontraram-se também diversos documentos inéditos a respeito de Luiz Gama nos jornais pesquisados", explica o autor da dissertação, Luiz Gustavo Ramaglia Mota. 

Ao fazer uma análise do processo de pesquisa e da realização da dissertação, Mota afirma que "o esforço de pesquisa nas fontes gerou resultado: organizamos tabelas com informações de todos os clientes de Luiz Gama que conseguimos identificar. E a partir dessas ferramentas, foi possível identificar diferentes perfis de clientes, bem como distintas estratégias usadas para se lutar por seus direitos e/ou por liberdade.
 

Texto A pedido
O homem livre, “Ao sr. Luiz Gama”, em Correio Paulistano, A Pedido, 10 fev. 1870, p. 3.

Nesse texto, um autor usando o pseudônimo de "O Homem Livre" desafia Luiz Gama a vir a público a respeito da "Questão Netto". O autor questiona: “Dar-se-á acaso, que já esmorecesse o teu santo zelo?” -- isto é, se Gama não iria se posicionar frente ao caso Netto, dada a sua fama como defensor de escravizados. Logo em seguida, o próprio Gama responde o autor deste texto, em uma espécie de debate público pelos jornais.


"Questão Netto"

Mota comenta que durante a pesquisa foi descoberto ainda informações a respeito de um caso da alforria de mais de 200 escravizados, que levou muita atenção da mídia há alguns meses, sobre o qual ele foi o primeiro a analisar o processo.  

"Além disso, descobrimos um caso até hoje quase nada ou muito pouco estudado: a dita "Questão Netto". O comendador Manoel Joaquim Ferreira Netto era um importante capitalista de Santos e que, quando faleceu, em 1868, deixou uma enorme herança, incluindo fazendas e um cartel com mais de 200 escravizados.

Luiz Gama se envolveu nesse pleito, obtendo importante vitória a favor da liberdade desses sujeitos", conta o pesquisador que alega ter sido interessante descobrir este caso e analisá-lo por meio dos jornais, mesmo não sendo o cerne da pesquisa dele.

A primeira vez que Mota ficou sabendo da "Questão Netto" foi através de um artigo na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (A ABOLIÇÃO em São Paulo. Revista do Arquivo Municipal, 13 mai. 1918, p. 261-272), que trata-se de um testemunho do ex-deputado federal, Antonio Manuel Bueno de Andrada, que participou da campanha abolicionista em São Paulo.

"Após descobrir a "Questão Netto" nesse texto da Revista do Arquivo, passamos a procurar pelo mesmo assunto nos diversos jornais da época, descobrindo um grande número de artigos a esse respeito. Estes eram escritos pelas mais diversas pessoas, desde advogados até pessoas anônimas do povo. Todos queriam dar a sua opinião a respeito dessa “questão-monstro”, como se disse à época. Não é exagero aventar a hipótese, portanto, de que a "Questão Netto" foi um dos principais assuntos da opinião pública de São Paulo, ao fim da década de 1860 e começo da seguinte", destaca Mota.
 

Texto Distincto Redator
GAMA, Luiz. “Distincto redactor”. Correio Paulistano, A Pedido, p. 3, 11 fev. 1870.

No dia seguinte ao texto anterior (acima), Gama responde o "homem livre". Em sua réplica, ele diz que ainda não deu o direito a ninguém de duvidar de sua sinceridade e aferro com que sustenta as causas de liberdade, e “que o tenho feito espontânea e gratuitamente”.

Afirma também que só havia ficado sabendo da "questão Netto" pelo artigo que leu, e que iria promover a manumissão (libertação judicial) deles. Ou seja, assume publicamente o compromisso em favor da liberdade dos mais de 200 cativos do comendador Netto.


Luiz Gama e a Educação Popular

Mota comenta que só ouviu falar do abolicionista pela primeira vez através do movimento estudantil e movimentos sociais que atuavam dentro da Faculdade, na época que ele fazia graduação em História na FFLCH, com o objetivo de provocar a discussão a respeito do racismo institucional e do elitismo nesses espaços.

"Foi a partir de ações como essas que eu, um jovem branco, comecei a prestar mais atenção nas discussões étnico-raciais e também na importância de se estudar e reconhecer a contribuição histórica e cultural da população negra no Brasil. Algo que já vem sendo defendido como bandeira de luta há muito tempo pelo movimento, imprensa e intelectuais negros. Para além dessa importante influência do movimento estudantil, eu também busquei algumas disciplinas e professores que tratavam da questão racial e da história dos negros no Brasil, tanto na História como em Ciências Sociais", ressalta.

Para o doutorado, no futuro, Mota disse que está pensando sobre possíveis objetos de estudos. Como professor de História no Ensino Fundamental (anos finais) da rede pública de ensino  na qual atua desde 2018, na região de Americanópolis, Zona Sul da cidade de São Paulo –, ele se interessa bastante pelo tema da Educação e pensa em juntar dois interesses: Luiz Gama e a Educação Popular, passando também pela História da Educação dos Negros no Brasil.

Na sala de aula, Mota procura trazer a história e a cultura da população negra no Brasil. 

"Nessas sequências didáticas, costumo dedicar algumas unidades para apresentar a trajetória de Luiz Gama (embora não me limite a ele), que incluem desde explanações e discussões a respeito, assistir vídeos e filmes, até a leitura e análise coletiva de documentos escritos por ele. Por exemplo, ao fim de uma sequência didática sobre a importância da Consciência Negra, solicitei aos estudantes que realizassem uma pesquisa sobre personalidades negras, do passado ou presente. Alguns grupos escolheram Luiz Gama como tema, incentivados pelas atividades prévias trabalhadas em sala", revela o pesquisador.
 

Luiz Mota
Mota, recém mestre, é bacharel e licenciado em História pela FFLCH, e bacharel em Relações Internacionais pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Ele tem interesse pelos temas ligados à escravidão e ao movimento abolicionista no Brasil; relações raciais e de gênero; intelectuais negros; e ensino de História - Foto: Arquivo Pessoal 


Doutor Honoris Causa da USP 

Luís Gonzaga Pinto da Gama foi um abolicionista, orador, jornalista, escritor brasileiro e o Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil. Nasceu em 21 de junho de 1830, em Salvador, filho de um fidalgo português, cujo nome nunca revelou, e Luiza Mahín, africana livre da Costa Mina, importante ativista envolvida em diversos levantes dos escravos na Bahia no início do século 19. 

Nascido livre, aos dez anos foi vendido como escravo pelo próprio pai para saldar dívidas de jogo e, com isso, levado para São Paulo, onde, aos 17 anos, aprendeu a ler e escrever. De posse das letras, conseguiu conquistar judicialmente a própria liberdade.

Em 1850, tentou ingressar no curso de Direito da Faculdade de Direito da USP. Negro e pobre, não foi admitido formalmente como aluno. Entretanto, permaneceu nos corredores da faculdade, frequentou diuturnamente a biblioteca e assistiu a inúmeras aulas como ouvinte. 

Luiz Gama adquiriu conhecimentos jurídicos sólidos que lhe possibilitaram atuar na defesa jurídica de escravos. Obteve autorização para atuar como advogado provisionado, tornando-se o maior especialista na libertação de escravos, tendo soltado mais de 500 pessoas e realizado ações também na defesa de pessoas pobres, inclusive imigrantes europeus. 

Paralelamente, atuava como jornalista e literato. Participou dos movimentos contra a escravidão e é reconhecido como um dos principais líderes abolicionistas do Brasil. Nos tribunais, com oratória distinta e domínio das letras jurídicas, lutou arduamente contra a escravidão, o racismo e a desigualdade.

No dia 19 de novembro, recebeu o título de Doutor Honoris Causa póstumo da USP, em cerimônia de outorga realizada no Conselho Universitário. 



(Com informações da Assessoria de Imprensa da USP)