Características da voz podem ser percebidas de forma estereotipada

Pesquisa analisou variações sociolinguísticas e como elas podem influenciar a visão que temos dos falantes

Por
Paulo Andrade
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Foto: Giulia May/Unsplash

Uma pessoa com a voz mais ou menos aguda pode ser percebida por terceiros de diversas formas, seja como alguém mais ou menos escolarizado ou como um homem afeminado e gay, por exemplo. O funcionamento desses rótulos e estereótipos sociais em relação à voz foi tema de pesquisa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A pesquisadora Isabel Pie de Lima e Souza avaliou como entrevistados percebem diferentes tipos de variações sociolinguísticas e como avaliam suas características em relação a gênero e sexualidade.

A autora estudou a percepção sociolinguística de três variáveis: concordância nominal de número (quando falamos “as casas” ou “as casa”, por exemplo); a frequência fundamental da voz soar mais fina ou mais grossa; e a duração do S na pronúncia das palavras. De acordo com a pesquisadora, estudos anteriores mostram que as três variáveis estão ligadas à percepção de gênero e sexualidade. Por exemplo, existe uma percepção estereotipada de que homens gays ou afeminados falam mais fino, ou com um S mais alongado nas palavras.

No experimento, os entrevistados ouviam quatro homens falando e precisavam avaliar o quão gay e afeminado eles achavam que as vozes soavam. Isabel esclarece que a pesquisa não foi sobre “um jeito gay de falar”, mas como as pessoas percebem e entendem as três variáveis em relação a gênero e sexualidade.

Concordância nominal

O orientador do trabalho, Ronald Beline Mendes, docente do Departamento de Linguística, estudou casos em que concordância nominal estava ligada a uma percepção sociolinguística de classe social e escolaridade. Isabel explica que houve um significado social de pessoas que não utilizam a concordância padrão (as casa, por exemplo) serem percebidas como ligadas a classes sociais mais baixas e menor escolaridade.

Na mesma pesquisa, pessoas que usam a concordância padrão (com plurais as casas) foram percebidas como gays e afeminados. Isso despertou o interesse em Isabel: “É um resultado inesperado, que a gente não imaginava que fosse acontecer justamente por causa desse significado mais óbvio ligado à escolaridade”.

Porém, o trabalho de Isabel obteve o resultado inverso. “Os homens foram percebidos como mais gays e afeminados na variante não padrão, ou seja, quando eles não faziam a concordância certinha”. Ela explica que utilizou os mesmos trechos de áudio de seu orientador, mas a pesquisa foi feita com um público diferente, cinco anos depois. Além de um questionário que aprofundou mais a percepção dos entrevistados.

Duração do S

Em relação à duração do S nas palavras, a pesquisadora explica que alguns entrevistados ouviram estímulos em que a letra S era mais curta, tinha 50 milissegundos, e outras pessoas ouviram estímulos em que a duração do S era mais longa, com 70 milissegundos. “E o resultado é que, quando as pessoas ouviam estímulos com a duração mais longa, elas tendiam a perceber o homem ouvido como mais gay e afeminado”.

“Em inglês, inclusive, existe a expressão 'gay lisp', que é um jeito gay de falar o S, que aparece em pesquisas de várias línguas, mas foi mais investigado em inglês. Em português está começando a ser mais estudado por estudos de percepção. O resultado que eu obtive foi na mesma direção”.

Frequência da voz

Isabel estudou também a frequência fundamental, propriedade acústica que costuma estar por volta de 100 hertz para vozes masculinas e 200 hertz para as femininas.

“Uma coisa importante de ter mente é que essa pesquisa toda é sobre pessoas cis, não é sobre pessoas trans. Porque muita coisa seria diferente se fosse sobre pessoas trans. Quando eu falo de valores de frequência base para homem e mulher, estou pensando sempre em pessoas cis”, esclarece.

E, também, os resultados apontaram para homens com frequências aumentadas serem percebidos como gays e afeminados mais vezes.

De forma geral, Isabel acredita que a pesquisa ajuda a entender melhor como funcionam esses estereótipos sociais em relação às variáveis sociolinguísticas. “Isso nos faz mais conscientes em relação a preconceitos, e em como os preconceitos e os estereótipos sociais agem e são criados a partir da linguagem”.

A dissertação de mestrado Percepção de vozes masculinas: efeitos da concordância nominal, da duração de /-s/, da frequência fundamental e de atitudes sobre masculinidade, foi defendida em junho de 2023, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da FFLCH, sob orientação do professor Ronald Beline Mendes, do Departamento de Linguística.