Nascimento de Arthur Schopenhauer

Grande filósofo alemão, Arthur Schopenhauer é considerado um dos principais representantes da corrente filosófica idealista

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Larissa Gomes
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Arte: Larissa Gomes

Arthur Schopenhauer, filósofo e influenciador de diversos pensadores contemporâneos, nasceu em 22 de fevereiro de 1788, em Gdansk, Alemanha. Entre as suas obras, está O Mundo como Vontade e Representação, que obteve significativo impacto sobre o pensador Friedrich Nietzsche.

Confira a entrevista com Katia Santos, doutora em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Arthur Schopenhauer?

Katia Santos: Arthur Schopenhauer foi um filósofo alemão nascido na cidade de Gdansk, atualmente parte da Polônia, que viveu de 1788 a 1860. Muitas coisas poderiam ser ditas sobre ele, e existem diversas passagens incomuns na sua biografia, como, por exemplo, o contato que teve com o famoso poeta Goethe durante algum tempo, na sua juventude, o relacionamento complicado com sua mãe, Johanna Schopenhauer, e o impacto que a leitura de sua obra principal, O mundo como Vontade e representação, teve sobre Nietzsche. Mas o que me parece mais interessante destacar em sua personalidade é, em primeiro lugar, que ele tinha um gênio difícil, o que o fez entrar em atrito com muitas pessoas, inclusive próximas e, em segundo, sua obstinação em ser filósofo e em ter sua obra reconhecida.

Diversas passagens da vida de Schopenhauer evidenciam seu temperamento problemático, como o fato de que, após muitos anos de divergências e conflitos, ele rompeu definitivamente com sua mãe e os dois nunca mais conversaram. Johanna Schopenhauer sempre teve dificuldade em lidar com o filho e, embora fosse amante da literatura e da arte, tendo até mesmo publicado algumas obras que se tornaram famosas, ela parecia não compreender do que Arthur falava. O primeiro livro dele, Da quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, que era também sua tese de doutorado, foi desdenhado por ela como sendo um tratado de farmácia.

Ao que tudo indica, a incompreensão era mútua, porque Schopenhauer também não valorizava o que ela escrevia e tinha críticas às reuniões que organizava em sua casa, em Weimar, para receber personalidades do universo literário. Esse seu traço de caráter também é evidenciado no relacionamento tortuoso de Schopenhauer com seu discípulo mais próximo, Julius Frauenstädt, que ele reconhecia como sendo incansável na difusão de suas ideias e a quem chamava de “apóstolo”. Com frequência, Schopenhauer destratava e corrigia Frauenstädt de modo ríspido, e chegou a romper com ele também por muitos anos.
O segundo aspecto que me parece relevante destacar para se entender quem era Schopenhauer é sua atuação filosófica. Desde jovem, ainda na adolescência, ele se inclinou para a Filosofia, mas não teve a aprovação do pai, o rico comerciante Heinrich Floris Schopenhauer, que queria ver o filho dedicando-se ao comércio, como ele próprio. Entre os anos de 1803 e 1805, quando Schopenhauer tinha 15 anos, seus pais o levaram em uma viagem pela Europa, na tentativa de dissuadi-lo da ideia de estudar Filosofia. A estratégia funcionou durante algum tempo, porém, com a morte do pai, ainda no ano de 1805, ele foi liberado da obrigação por sua mãe.

Durante toda a vida de Schopenhauer, a Filosofia foi o principal alvo das suas esperanças e dos seus esforços. Ele escreveu e publicou bastante, ansiando ardentemente em ver sua filosofia conhecida e respeitada, como já eram naquela época as filosofias de Hegel, Fichte e Schelling. Schopenhauer considerava esses filósofos como seus adversários e se referiu a eles, muitas vezes, de modo agressivo. O reconhecimento que ele tanto queria veio apenas no fim de sua vida, a partir de 1851, quando publicou Parerga e Paralipomena, uma série de textos que tratam de questões de interesse geral, mas secundárias e dispersas, não sistematicamente abordadas. Sobretudo, um deles, os Aforismos para a sabedoria de vida, que traz reflexões para a vida prática e é de fato muito interessante, alçou Schopenhauer à fama.

Serviço de Comunicação Social: Qual a corrente filosófica de pensamento de Arthur Schopenhauer?

Katia Santos: Em termos latos, a corrente filosófica de pensamento de Schopenhauer é o idealismo. É assim que ele entende sua filosofia, inclusive, considerando-se o único discípulo verdadeiro de Immanuel Kant (1724-1804). Esse filósofo fundamentou a teoria do idealismo transcendental em uma das suas principais obras, Crítica da razão pura, publicada pela primeira vez em 1781. Na filosofia moderna, a teoria do conhecimento kantiana foi um divisor de águas, e Kant mesmo a considerou uma espécie de “revolução copernicana”, porque inverteu a visão vigente de que o intelecto humano girava em torno dos objetos para uma outra, em que os objetos é que giram em torno do intelecto. Para essa concepção, o mais importante é compreender que o que conhecemos como mundo real e concreto é resultado de uma interação entre estruturas cognitivas, o sujeito cognoscente, e dados internos ou externos, formando assim os objetos. O idealismo transcendental descreve, então, o modo e as engrenagens pelos quais as faculdades cognitivas, que envolvem uma sensibilidade para os dados externos, um entendimento para conceituação e uma razão para estabelecer raciocínios, acabam por construir o mundo que conhecemos. Os objetos são como são, porque as faculdades intelectuais os moldam: se as faculdades fossem outras, teríamos outros objetos com os mesmos dados. Assim, o idealismo descreve a relação entre a experiência e o pensamento.

Schopenhauer admite a base da teoria do conhecimento kantiana, modificando, porém, alguns aspectos importantes. Uma das modificações que ele faz é com relação às estruturas cognitivas do sujeito. Ao tratar do princípio de razão suficiente, que entende ser a forma intelectual responsável por todo conhecimento que possamos ter, ele coloca como base do mundo empírico uma condição diferente daquelas colocadas por Kant. O princípio de razão suficiente é um só, embora tenha quatro raízes (lei de causalidade, princípio do conhecer, princípio do ser e lei de motivação), e traz em si a condição que possibilita o conhecimento e o pensamento em geral.

Schopenhauer achava as faculdades intelectuais discutidas por Kant muito complicadas e até mesmo inócuas, julgando que deviam ser eliminadas para manterem-se apenas as formas do tempo, do espaço e a lei causalidade. Ele entendia que Kant havia ido longe demais ao falar de conceitos puros do entendimento e de uma faculdade da razão quase sobrenatural. O princípio de razão era mais simples e estabelecia que tudo deve ter um fundamento que explique sua existência, seja no mundo físico ou no mundo teórico. As faculdades intelectuais, resumidas em sensibilidade, entendimento e razão, são também atreladas ao princípio. Schopenhauer afirma que elas são os correlatos subjetivos das classes de objetos possíveis, de modo que sujeito e objeto se definem reciprocamente. Em suma, isso quer dizer que um objeto só existe de certa forma porque as nossas faculdades intelectuais o conhecem daquela mesma forma.

Mas, a meu ver, o que torna o idealismo de Schopenhauer mais peculiar é a posição que a chamada “coisa em si” tem no pensamento dele. Para Kant, a coisa em si seria para sempre desconhecida, uma vez que nossas faculdades intelectuais jamais poderiam acessá-la. Atribuir qualquer propriedade à coisa em si seria, na visão kantiana, um abuso, algo como uma inferência lógica falsa, além de ser um uso errôneo do intelecto, que existe para dar a conhecer o mundo empírico. Na medida em que tudo o que pudermos conhecer deverá passar pelas “lentes” do sujeito e suas faculdades, é impossível falar-se de objetos transcendentes, ou em si mesmos, o que equivaleria a saber o que eles são diretamente, sem passar pelo filtro do nosso intelecto. Por isso, Kant se refere a esse objeto transcendente como um X desconhecido, ainda que ele deva sempre estar presente como um pressuposto.

Schopenhauer, por sua vez, acreditava que a coisa em si pressuposta e nunca definida no pensamento kantiano existe e pode ser nomeada. Ele a chamava de Vontade de Vida, e a entendia como um fundamento metafísico do mundo, embora não transcendente e sim imanente a ele. Existe bastante controvérsia sobre o estatuto dessa Vontade no pensamento schopenhaueriano, se ela pode ser tomada como uma substância, se é uma mera atividade, mas o fato é que Schopenhauer atribui diversas características a ela e a toma como sendo, realmente, a coisa em si kantiana. Por exemplo, conforme Schopenhauer a Vontade de Vida é eterna, imutável, está fora do tempo e do espaço e não tem fundamento, sendo ela própria o fundamento de tudo. Nada disso se pode afirmar, porém, da coisa em si como Kant a entendia.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram as principais contribuições de Arthur Schopenhauer para a filosofia atualmente?

Katia Santos: No meu modo de ver, a base para se pensar as contribuições de qualquer filósofo para o pensamento atual é dada pelas influências que teve na História da Filosofia. Assim, as principais contribuições de Schopenhauer que chegam até os nossos dias são aquelas que podem ser sentidas em outros pensadores, os quais, seguindo ou criticando suas principais teses, partiram do que ele pensava e desenvolveram novas filosofias ou ideias. No caso de Schopenhauer, é interessante que, além de filósofos, diversos artistas, como Wagner, Thomas Mann e Proust, foram influenciados por ele, que tem uma filosofia da arte bastante interessante. Não somente a filosofia da arte, mas a própria forma de escrita de Schopenhauer costuma ser cativante, porque é viva, eloquente, cheia de imagens fascinantes. O próprio Nietzsche narra como, quando era jovem, sentiu-se arrebatado pela leitura de O mundo como Vontade e representação, obra que encontrou por acaso em uma livraria. No Brasil, o caso mais emblemático de influência schopenhaueriana na arte é vista na nossa literatura, na obra de Machado de Assis.

Do ponto de vista da Filosofia, talvez a maior influência de Schopenhauer seja uma concepção fundamental que deixou marcas em diversos filósofos e correntes filosóficas contemporâneas. O pensamento de Schopenhauer de que é uma Vontade metafísica, irracional e cega o que se encontra no núcleo do mundo pode ser visto como a raiz de uma concepção contemporânea ampla, que engloba diversas “filosofias da vida” e que, passando por Nietzsche, nega o predomínio da razão na vida humana, contribuindo também com a formação do existencialismo, da hermenêutica e da fenomenologia. Outras influências marcantes sobre pensadores importantes podem ser apontadas, por exemplo, em Horkheimer, um dos principais filósofos da Escola de Frankfurt, que combinou o pessimismo schopenhaueriano com uma base marxista, em Emil Cioran, um filósofo romeno que adotou esse pessimismo como o fundamento de sua visão de mundo, e em Wittgenstein, um dos pais da filosofia analítica, bastante em voga atualmente.

Serviço de Comunicação Social: Quais aspectos da filosofia schopenhaueriana você considera os mais relevantes?

Katia Santos: Do meu ponto de vista, o aspecto mais relevante da filosofia de Schopenhauer é sua ética, porque ela tem como base uma igualdade radical entre todos os seres, incluindo aí os animais. Para Schopenhauer, como eu já disse, o núcleo de tudo o que existe é uma Vontade metafísica, que não é apanágio apenas do ser humano, mas está presente até mesmo no mundo inorgânico. A ética schopenhaueriana é baseada na compaixão, que é, segundo ele, o único sentimento capaz de frear o egoísmo que está na base do ser humano. O egoísmo está na base do ser humano porque cada um, ainda que não saiba disso, tem sua vida voltada para satisfazer a Vontade, que é uma vontade de Vida, isto é, de existir e se afirmar seja como for. Há duas grandes tendências nessa afirmação, que são a de o indivíduo se preservar em vida a todo custo e a de preservar a sua espécie. A preservação do indivíduo, pensada como uma propensão intrínseca, implica sua colocação acima de tudo, a sobreposição de seus interesses ao interesse de todos, isto é, o egoísmo. A preservação da espécie, por sua vez, implica a reprodução e a continuação do indivíduo ao longo do tempo, o que se mostra na tenacidade do impulso sexual em toda a natureza.

A ética de Schopenhauer, que teve influência do hinduísmo e do budismo, enfatiza a origem comum de todos, o destino comum e a necessidade de frear o egoísmo. Para ele, somente a compaixão pode representar esse freio, porque ela é tão forte quanto o seu oposto. Schopenhauer criticou a ética de Kant como sendo formalista, baseada em algo impossível, que seria agir bem por consciência do dever que obriga a todos os seres racionais, e também porque pressupunha que as pessoas agiriam orientando-se por prescrições. A humanidade é o que é, não faz sentido uma ética prescritiva, mas, apesar disso, no mundo realmente existem ações éticas, que são aquelas que têm por base a compaixão, a qual nega a vontade do próprio indivíduo e coloca no lugar a vida e o bem-estar de outro. A compaixão possibilita sentir a dor de outro ser, humano ou animal, impulsionando para a busca do alívio, para a justiça e a caridade. 

Na minha interpretação, essa concepção é boa especialmente no mundo de hoje, no qual uma ideologia capitalista e neoliberal defende uma espécie de “darwinismo social”, em que os mais vulneráveis devem ser deixados à própria sorte. No fundo dessa concepção, está a noção de que a vida em sociedade deve se basear na “lei do mais forte”, e que é justo que os mais fracos pereçam, exatamente porque são mais fracos. Isso realiza uma hierarquização das pessoas típica de uma mentalidade predadora e psicopata, que busca justamente os mais frágeis para abater. Quando, ao contrário, estamos convencidos da radical igualdade de todos os seres humanos ─ o que inclusive se reflete no fato de que as sociedades precisam de todos para existir e prosperar economicamente, e não apenas dos que possuem mais recursos ─, então, fica claro que toda pessoa deve encontrar na sociedade a satisfação das suas necessidades, e que não há justificativas para colocar quaisquer argumentos supostamente técnicos, políticos ou econômicos acima disso.

Essa concepção é boa também porque não diferencia a essência humana da animal, fazendo ver que os animais conhecem o mundo, sentem e sofrem, assim como nós. Schopenhauer, inclusive, entendia que alguém que maltrata um animal não pode ser uma boa pessoa. Para mim, é muito importante reconhecer o animal como um fim em si mesmo, retirar dele a sombra de ser um objeto de que podemos dispor como quisermos, ignorando que sua vida não pertence a nós. Ultrapassar a visão antropocêntrica de mundo pode nos levar a um estágio mais ético da nossa existência, porque pode diminuir, pelo menos, o sofrimento dos animais que é devido à nossa ação. É verdade que, na natureza, existe luta e morte em toda parte. Mas isso não justifica toda a exploração animal realizada pela humanidade de vários modos, como, por exemplo, em atividades de lazer, na moda, na produção de cosméticos e em experimentos científicos. Sem falar na alimentação, que, diariamente, cria e extermina bilhões de animais com grande sofrimento. Se adotamos a ética schopenhaueriana, a compaixão pelos animais nos conduz a aliviar seu sofrimento, não a aumentá-lo exponencialmente.

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Katia Santos é doutora em filosofia pela FFLCH, com pesquisa financiada pelo CNPq sobre a antinomia da faculdade de conhecer, ou paradoxo de Zeller, na obra de Arthur Schopenhauer. Mestra em Filosofia, com pesquisa sobre a contradição aparente na teoria da liberdade, na obra do mesmo filósofo.